Direito Privado no Common Law

"Quem tem filho barbudo é gato": Super-ricos americanos decidem não deixar suas fortunas para seus filhos

Não é novidade a existência de debate no Brasil em torno da supressão da controversa legítima.

8/11/2021

Ouvi a frase título dessa coluna do meu antigo professor de direito civil, Pablo Stolze, quando ainda cursava a graduação em direito na UFBA - chamada carinhosamente por alunos, ex-alunos, professores e funcionários de "egrégia". Trata-se de ditado popular que significa que "quem tem de cuidar de pessoa já adulta, barbada, é a própria pessoa, não outrem."1

Pablo utilizava esse dizer como uma forma de introduzir a crítica à regra, existente no direito brasileiro, de que "metade dos bens da herança pertence aos herdeiros necessários", como os filhos, conforme prevê o art. 1.846, do Código Civil. Trata-se, como sabido, da figura da legítima.

Nunca me esqueci da frase e aproveito a oportunidade para agradecer ao meu querido professor pelos ensinamentos, que despertaram em mim o gosto pelo direito civil.

Não é novidade a existência de debate no Brasil em torno da supressão da controversa legítima2. Recentes declarações de super-ricos americanos, país onde não existe uma tal imposição jurídica, atiçam essa controvérsia e agitam discussões ainda mais amplas, sobre meritocracia e mesmo sobre grandes fortunas como "maldição" para os herdeiros.

Em uma entrevista a um podcast (Earn you leisure) que ocorreu em julho, o ex-jogador da NBA Shaquille O'Neal, cuja fortuna é estimada em U$ 400 milhões (R$ 2.2 bilhões), declarou que seus seis filhos não herdarão esse patrimônio. “Meus filhos estão mais velhos agora. Eles ficam meio chateados comigo. Não realmente chateados, mas eles não entendem”, afirma O’Neal. “Eu digo a eles o tempo todo. Nós não somos ricos. Eu sou rico." ("We ain't rich. I'm rich.")3

O'Neal diz que deseja que seus filhos sigam seu próprio caminho, assim como ele fez. Como pai, afirma só ter uma regra para com os filhos: a educação. “Vocês têm que ter bacharelado ou mestrado e então se vocês quiserem que eu invista em uma de suas empresas, vocês vão ter que me apresentar" o projeto, disse ele. O'Neal deixa claro aos filhos que eles têm de merecer, pois não vai dar a eles nada de mão beijada.

Em setembro, em entrevista também a um podcast (Morning Meeting), Anderson Cooper, apresentador da emissora CNN cujo patrimônio é estimado em cerca de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão), revelou como o dinheiro destruiu a sua família dinástica e por que não vai deixar nenhum "pote de ouro" para o filho: "Não acredito em passar adiante grandes quantidades de dinheiro. [...] Não estou tão interessado em dinheiro, mas não pretendo passar adiante algum tipo de pote de ouro para meu filho. Vou fazer o que meus pais me disseram: 'sua faculdade será paga, e em seguida você precisa seguir [por conta própria]'."4

Anderson Cooper é descendente dos Vanderbilts, que foram, em sua época, uma rica dinastia americana, "que começou a definhar antes de o apresentador nascer - e sobre a qual ele escreveu um livro."5

O apresentador disse que "cresceu vendo dinheiro ser perdido" pelos Vanderbilts e sempre evitou ser associado à família. Segundo ele, a fortuna do magnata Cornerlius Vanderbilt, erguida ainda no século 19, "foi uma patologia que infectou as gerações seguintes": o dinheiro "não os levou a grandes atos de generosidade ou à criação de fundações duradouras que ajudassem outras pessoas, mas sim ao anseio de entrar para a alta sociedade."6

No Brasil, declarações como essas não poderiam ser convertidas em ações concretas, pois, como sabido, por aqui os filhos, como herdeiros necessários, têm direito à metade dos bens da herança dos pais. Por isso, entre nós, as declarações de O'Neal e Cooper têm apenas o poder de atiçar o debate contra a manutenção da legítima.

Mas as declarações dos dois inserem-se em um debate maior a respeito da destinação das riquezas dos super-ricos, questão que envolve aspectos ligados a responsabilidade social e tributações sobre grandes fortunas. Isso em um período de grande desigualdade social e concentração de renda em todo o planeta7.

Assim, se por um lado, é necessário perceber que quem tem filho barbudo é mesmo gato, essa percepção parece ser apenas um primeiro passo para uma discussão mais ampla e complexa que é como os humanos, detentores de grandes fortunas, podem agir para contribuir para superação da desigualdade e concentração de renda no mundo.

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1 Disponível em: http://folclorevertentes.blogspot.com/2015/10/ditados-parte-5.html.

2 Para um resumo das críticas apresentadas por Pablo e por Rodolfo Pamplona Filho, ver: STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 7, p. 187 ss.

3 Disponível em: https://www.blackenterprise.com/financial-lessons-shaquille-oneal-wants-his-children-to-realize-we-aint-rich-im-rich/.

4 Disponível em: https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/tv/news/anderson-cooper-inheritance-son-wyatt-b1927859.html.

5 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861.

6 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861.

7 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.