Em 2011, um jovem casal que esperava o nascimento de seu primeiro filho mudou-se para um apartamento no Brooklyn. O filho nasceu saudável, mas um ano depois um exame médico de rotina detectou chumbo em seu sangue. Descobriu-se que a poeira da tinta com chumbo no apartamento estava envenenando silenciosamente seu bebê. Nos anos seguintes, ele sofreu atrasos cognitivos significativos, bem como graves deficiências sociais e emocionais. A mãe da criança ajuizou ação indenizatória contra o proprietário, que foi considerado negligente. No cálculo dos danos, uma questão crítica para o júri era quanto essa criança teria ganhado ao longo de sua vida se não tivesse sido contaminada. Como de costume, os experts levaram em consideração o fato de o bebê ser hispânico. Como resultado, suas estimativas de danos foram significativamente menores do que teria sido o caso se o bebê fosse branco. O único detalhe incomum neste caso foi que o juiz federal, Jack B. Weinstein, do Distrito Leste de Nova York, se recusou a permitir tal iniquidade, colocando-se contra toda uma jurisprudência consolidada nos últimos 100 anos.1
Em 2020 a Califórnia proibiu o cálculo de lucros cessantes com base em raça, gênero e etnia. A lei, que é a primeira do tipo – até a presente data não foi replicada em nível federal pela administração Biden - proíbe expressamente reduções de danos por perda de ganhos futuros em casos de lesões corporais e morte por negligência quando essas delimitações forem baseadas em raça, gênero ou etnia. A prática de reduzir indenizações civis para os afro-americanos e outras minorias raciais e étnicas remonta ao início do século 20, quando os juízes o faziam com referência explícita a estereótipos ofensivos. Por exemplo, em Blackburn v. Louisiana Ry. & Nav. Co., a Suprema Corte da Louisiana de 1911 reduziu a indenização por danos a um afro-americano em quase 70%, citando "a conhecida imprevidência da raça negra e a vida irregular que esses travões de cor levam".2 A jurisprudência consolidada també exige que as mulheres justifiquem ambições profissionais para fazer jus a indenizações maiores. Um tribunal rejeitou as evidências de aspirações de uma vida de uma jovem vítima de acidente de se tornar uma veterinária como "puramente especulativa" e "sem base probatória" devido à dificuldade de ingressar na única escola de veterinária da região.3 O mesmo ceticismo não foi demonstrado em casos em que os homens aspiravam a carreiras profissionais semelhantes. Apesar dessa discriminação generalizada em indenizações por danos, as legislaturas estaduais falharam em aceitar qualquer ação significativa para corrigir esse erro.
A Califórnia é há muito uma líder na área de responsabilidade civil. No caso de 1963 de Greenman v. Yuba Power Products, o estado abriu novos caminhos ao impor responsabilidade objetiva aos fabricantes por produtos defeituosos, uma abordagem que foi rapidamente adotada no segundo restatement of torts. Em 1968, o estado novamente abriu o caminho. Em Dillon v. Legg, a Suprema Corte da Califórnia estendeu a viabilidade da indenização em prol do bystander por sofrimento emocional. Esta lista de precedentes não acaba por aqui: inclui ainda Summers v. Tice (1948)4, que estabeleceu responsabilidade alternativa, permitindo que a vítima transfira o ônus da prova da causa de sua lesão para vários réus, mesmo que apenas um deles possa ter sido o responsável. Lembre-se ainda Tarasoff v. Regents of California (1976), que impôs um "dever de avisar” sobre terapeutas para informar terceiros ou autoridades se um cliente representar uma ameaça para si ou para outro indivíduo identificável. Por fim, Sindell v. Abbott Laboratories (1980), estabeleceu a Market share liability5 - doutrina que permite à vítima estabelecer um caso contra um grupo de fabricantes por um dano causado por um produto, mesmo quando o autor não sabe de que réu ele se originou – em razão dedano transgeracional6 rastreável ao DES, um medicamento comercializado para mulheres grávidas, aparentemente para prevenir aborto.7
Atualmente a Califórnia está mais uma vez no pioneirismo das reformas de responsabilidade civil com a conversão da Senate Bill n. 41 em lei,8 proibindo expressamente reduções de danos por perda de ganhos futuros em casos de lesões corporais e morte por negligência quando essas mitigações são baseadas em raça, gênero ou etnia. No sistema de responsabilidade civil de qualquer jurisdição, lucros cessantes pesam bastante na afirmação do dano patrimonial. Quando a vítima fica gravemente ferida a ponto de prejudicar sua capacidade de trabalhar, o provável rendimento perdido deve ser calculado. Naturalmente, advogados, juízes e júris (nos EUA) estimam os ganhos futuros perdidos do demandante, com base no que razoavelmente teria auferido se não tivesse sofrido a lesão. Para auxiliar nessas avaliações, os especialistas muitas vezes contam com tabelas de expectativa de vida e salário - e nos EUA essas tabelas geralmente incluem números diferentes, com base na raça e gênero do demandante. Normalmente, os experts adotam o Bureau of Labor Statistics Current Population Survey, que é atualizado trimestralmente, para determinar os ganhos perdidos projetados. A perda de potencial de ganho é um componente significativo dos danos e pode "fazer a diferença entre um prêmio modesto e considerável".
As tabelas baseadas em raça e gênero são comuns: uma pesquisa de 2009 conduzida pela National Association of Forensic Economics descobriu que 44% dos entrevistados afirmaram que contabilizam raça e 92% que contabilizam gênero ao projetar os salários futuros de uma criança lesada por um ilícito. Evidentemente, o uso de tais tabelas pode resultar em prêmios significativamente mais baixos para mulheres e pessoas de cor. Uma análise de 2016 do Washington Post9 descobriu, por exemplo, que o uso dessas tabelas significaria que, em demandas idênticas envolvendo lesões idênticas, uma demandante afro-americana de 20 anos obteria apenas US$ 1,24 milhão em salários futuros perdidos, enquanto sua contraparte masculina branca auferiria US$ 2,28 milhões - quase o dobro - mesmo mantido constante o nível de escolaridade dos dois demandantes.
Essas tabelas baseadas em raça e gênero são cada vez mais controversas. Os seus defensores argumentam que quaisquer disparidades nos ganhos futuros projetados são um sintoma de problemas sociais persistentes - não a causa. Eles também afirmam que os ganhos futuros perdidos devem ser estimados com a maior precisão possível. Cálculos precisos, em sua opinião, exigem a consideração de uma gama de características, incluindo raça e gênero. Nada obstante, esta prática é particularmente problemática no cálculo de indenizações para crianças vítimas que ainda não trabalharam ou não alcançaram um determinado nível de escolaridade, na medida em que especialistas são mais propensos a levar em consideração gênero e raça, em detrimento de fatores individualizados, como capacidade acadêmica, ética de trabalho, aspirações profissionais ou realização educacional.
Os críticos das tabelas respondem que tais disparidades são discriminatórias, arbitrárias e podem violar a Quinta e a Décima Quarta Emendas10. O uso de estatísticas baseadas em raça para calcular a compensação viola o devido processo legal e o direito de propriedade porque não é cientificamente aceitável em uma população heterogênea categorizar pessoas com base na raça, uma construção social fictícia e mutável. Em vez disso, as disparidades entre "raças" estão associadas a diferenças socioeconômicas e tendem a diminuir significativamente quando os fatores socioeconômicos são controlados. Consequentemente, estatísticas baseadas em raça são inerentemente não confiáveis e seu uso em um tribunal para privar alguém de seu direito à indenização constitui ação estatal arbitrária e irracional e, portanto, uma negação do devido processo.
Neste sentido, uma análise desenvolvida pela Professora Martha Chamallas – uma das mais prolíficas estudiosas do tema - demonstra que a persistência da confiança judicial em tabelas baseadas em raça, etnia e gênero demanda ação estatal para fins de proteção igual, porque "é impossível separar o uso das estatísticas do padrão legal subjacente no caso, na medida em que nenhum princípio do direito constitucional está mais firmemente arraigado do que o princípio antidiscriminação conforme aplicado a classificações raciais explícitas. O uso de dados baseados em raça falha no nível rigoroso de escrutínio estrito exigido para passar na avaliação constitucional".11
Em reforço, as tabelas reforçam rígidas barreiras raciais e étnicas, pois não levam em consideração o progresso futuro que poderia ser feito durante a vida do demandante, perpetuando estereótipos negativos que diminuem o valor do indivíduo e deixam de levar em conta o potencial humano. A erradicação das tabelas significaria a interrupção da perpetuação da discriminação do passado e o afrouxamento de seu controle sobre o futuro das vítimas. Exemplifique-se com uma menina negra de 3 anos gravemente ferida em um acidente de carro. Mesmo que esta criança não tenha sofrido discriminação no local de trabalho, e mesmo que a discriminação diminua ao longo de sua vida, as projeções sobre seus ganhos futuros irão incorporar os níveis de discriminação racial e sexual sofridos por mulheres negras que vieram de gerações anteriores. O resultado é que a compensação da menina será manchada não apenas pela discriminação, mas também por um nível de discriminação racial e sexual que ela provavelmente não enfrentaria.
Os críticos também observam que ao esvaziar as indenizações por danos contra mulheres e minorias, as tabelas prejudicam o acesso desses demandantes ao advogado no início do litígio. A final, advogados aceitam os casos com base em honorários de contingência (contingency fee basis). Dada essa forma de financiamento, os advogados só aceitarão casos se a provável indenização por danos for grande o suficiente para fazer o litígio valer a pena; quanto maiores os danos prováveis ??de um cliente em potencial, mais "vale a pena" seu caso.
Some-se a tudo isto o perverso cálculo de custo-benefício. A prática fornece justificativa econômica para a desvalorização dessas comunidades, o que resulta na adoção de comportamentos mais imprudentes por parte dos infratores, pois os “custos” percebidos dessa conduta são menores. Em termos pragmáticos, o uso de dados de raça e etnia em cálculos de indenização incentiva as empresas a colocar suas fábricas e operações em comunidades de baixa renda, ou de cor, onde eventuais compensações por danos patrimoniais e processos por homicídio culposo serão menos custosos do que se os danos ocorressem em locais onde a comunidade fosse predominantemente branca.12 Embora esse incentivo financeiro raramente seja explícito, a estatística demonstra uma desproporcional concentração de depósitos de resíduos perigosos em comunidades minoritárias.
Embora a constitucionalidade de tais tabelas seja objeto de debates há muito tempo, a controvérsia tomou vulto nos anos recentes. Em 2018, o Comitê de Advogados para Direitos Civis publicou um relatório pedindo reformas legislativas para evitar o uso de tais tabelas.13 Em 2019, dezesseis das organizações de direitos civis mais proeminentes do país - incluindo a ACLU e a NAACP - publicaram uma carta14 solicitando à National Association of Forensic Economists que congelem o uso de tabelas baseadas em raça e gênero, que se baseiam na "premissa flagrantemente falha de que as vidas das pessoas de cor e das mulheres valem menos do que as dos homens brancos".
Curiosamente, um dos raros casos de esforços de reforma federal bem-sucedidos em proibir o uso de raça ou gênero nos cálculos de danos se deu justamente no notório caso do Fundo de Compensação de Vítimas de 11 de setembro, projetado para fornecer uma alternativa compensatória sem discussão de culpa para litígios de responsabilidade civil em prol de familiares de mortos e feridos. O special master Kenneth R. Feinberg adotou tabelas neutras quanto à raça e gênero "para evitar qualquer preconceito em supostos padrões de vida profissional no futuro e para garantir consistência".15
A expectativa é que a Suprema Corte finalmente se pronuncie sobre o tema, ou que, paulatinamente, as legislações estaduais se inspirem na iniciativa da Califórnia. Claramente uma concretização da função promocional da responsabilidade civil.
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1 G.M.M. v. Kimpson United States District Court, E.D. New York. Jul 29, 2015 116 F. Supp. 3d 126 (E.D.N.Y. 2015). O juiz Weinstein Enfatiza a importância da "miríade de fatores que afetam a capacidade de um indivíduo de realizar seu potencial". Descreve ainda os danos causados a crianças pequenas pelo chumbo e a exposição desproporcional de famílias de baixa renda e minorias.
2 30 54 So. 865, 869 (La. 1911).
3 Gilborges v. Wallace, 379 A.2d 269, 276-278 (N.J. Super. Ct. App. Div. 1977), sustentando que, embora a falecida, uma menina de dezesseis anos, havia expressado interesse ao longo da vida em se tornar uma veterinária, não havia nenhuma prova de que ela provavelmente teria se tornado uma estudante de veterinária ou graduada, porque não havia nenhuma escola de veterinária no estado de Nova Jersey e apenas uma no estado da Pensilvânia, com a consequente séria dificuldade de um aluno de New Jersey obter admissão em tal escola.
4 Dois réus atiraram por negligência na direção do autor e apenas uma das balas causou o prejuízo à vítima. No interesse da justiça, o caso da queixosa inocente não é derrotado porque ela não pode provar qual das partes foi a causa real (but-for cause) de seu dano.
5 A doutrina é exclusiva dos Estados Unidos e distribui a responsabilidade entre os fabricantes de acordo com sua participação no mercado para o produto que deu origem ao dano ao reclamante.
6 Fenômeno pelo qual o dano é transmitido de ascendentes a descendentes com consequências traumáticas para estes.
7 O dietilestilbestrol (DES) é uma forma sintética do hormônio feminino estrogênio. Foi prescrito para mulheres grávidas entre 1940 e 1971 para prevenir aborto, parto prematuro e complicações relacionadas à gravidez. Em 1971, pesquisadores associaram a exposição pré-natal (durante o útero) ao DES a um tipo de câncer do colo do útero e da vagina chamado adenocarcinoma de células claras em um pequeno grupo de mulheres. Logo em seguida, a Food and Drug Administration (FDA) notificou médicos de todo o país que o DES não deveria ser prescrito para gestantes. O medicamento continuou a ser prescrito para mulheres grávidas na Europa até 1978. O DES agora é conhecido por ser um desregulador endócrino, uma das várias substâncias que interferem no sistema endócrino e causam câncer, defeitos de nascença e outras anormalidades do desenvolvimento.
8 Disponível aqui. A lei entrou em vigor em 1/1/2020. A votação final para o projeto no plenário da assembleia foi 78-0, demonstrando a força do argumento.
9 Disponível aqui.
10 5. Emenda: "Nenhuma pessoa poderá responder por um crime capital, ou outro crime infame, a menos que em uma apresentação ou acusação de um Grande Júri, exceto em casos surgidos nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço real a tempo de Guerra ou perigo público; nem qualquer pessoa estará sujeita à mesma ofensa e por duas vezes com risco de vida ou integridade física; nem será obrigado em qualquer processo criminal a ser testemunha contra si mesmo, nem ser privado da vida, da liberdade ou dos bens, sem o devido processo legal; nem a propriedade privada será levada ao uso público, sem justa compensação". 14. Emenda: "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou fará cumprir qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis".
11 Martha Chamallas, Questioning the Use of Race-Specific and Gender-Specific Economic Data in Tort Litigation: A Constitutional Argument, 63 Fordham l. rev. 73, 105 (1994); see also id. "When the court allows an expert to testify as to the plaintiff’s future earning capacity, it makes a determination of relevancy and an implicit judgment about the substance of the common law of damages."
12 Embora a presença de uma empresa em uma comunidade de minoria racial possa aumentar as oportunidades de emprego e um melhor desenvolvimento econômico, esses benefícios são neutralizados se a empresa não cumprir os regulamentos de segurança ambiental e a comunidade sofrer com problemas de saúde onerosos e caros. Martha Chamallas, Civil Rights in Ordinary Tort Cases: Race, Gender, and the Calculation of Economic Loss, 38 loy. I.a. eu. rev. 1435, 1441 (2005).
13 Disponível aqui.
14 Disponível aqui.
15 O Relatório Final não menciona "raça". No entanto, o Mestre Especial usou as tabelas combinadas "Todos os Homens Ativos" para calcular os ganhos futuros de todos os requerentes. Disponível aqui.