Direito Privado no Common Law

Casamentos platônicos entre amigos: uma nova forma de expressão familiar?

Casamentos platônicos entre amigos: uma nova forma de expressão familiar?

4/10/2021

O Jornal The New York Times noticiou recentemente um fenômeno interessante acontecendo nos EUA: amigos que estão levando suas amizades a um outro patamar: o do casamento.1

Não, não se trata de amigos que, no curso da amizade, apaixonam-se e decidem se casar. Nisso não há nada de novo ou peculiar. O fenômeno envolve pessoas que são muito amigas, normalmente melhores amigas, e que, por conta disso, decidem subir juntas ao altar. Ou seja, elas decidem casar-se pela amizade e como amigas. Após o casamento, a relação segue sem envolver, por exemplo, paixão, sexo ou romance.

Por outro lado, não se trata de um arranjo desambicioso, de dois grandes amigos que decidem viver juntos apenas a experiência da cerimônia de casamento. Ou de duas amigas que querem morar juntas para dividir as contas da casa. Muito menos de um impulso de dois amigos que, após uma noitada de curtição, casam-se irrefletidamente, como volta e meia é noticiado a respeito de casais em Las Vegas.

Os casamentos platônicos em questão envolvem amigos que sobem ao altar e que sinceramente juram nunca abandonar uma ao outro, seja "na saúde ou na doença". A reportagem cita, entre outros, o caso de Jay Guercio e Krystle Purificato. Em novembro de 2020, elas usaram vestidos de noiva, caminharam pelo corredor, trocaram alianças e compartilharam seu primeiro e único beijo. E Krystle mudou inclusive seu sobrenome para Guercio.

As amigas se conheceram em 2011 e decidiram se casar em setembro de 2020. Elas são gays e estão abertas a sair com outras pessoas, mas não entre si. Elas dormem na mesma cama, mas seu relacionamento não envolve contato sexual.

Elas se casaram porque queriam ser jurídica e socialmente reconhecidas como uma família. "Queríamos que o mundo soubesse que somos a parceira de vida da outra no mundo e que pudéssemos lidar com as questões jurídicas de maneira apropriada", disse Jay. "Somos um casal, uma unidade e parceiras para a vida toda." Jay afirma ainda que o casamento delas é estável, duradouro e não tem condicionantes.

Não há ainda dados estatísticos sobre casamentos platônicos entre amigos. Não se sabe ao certo quantas pessoas vivem em relacionamentos desse tipo, inclusive porque muitas pessoas que estão neles não se manifestam publicamente a respeito. Mas surgiram recentemente diversos fóruns de discussão, no Reddit e em comunidades menores de pessoas assexuais e aromânticas, o que sugere que esse arranjo pode envolver uma porção maior da população de casados do se poderia inicialmente pensar.

Especialistas consultados pela reportagem trazem ponderações interessantes. Segundo Nick Bognar, terapeuta de casamento e família, é preciso "reconhecer que realmente normalizamos relacionamentos românticos monogâmicos heterossexuais a ponto de estigmatizar outros tipos de relacionamentos". Para Nick, esse tipo de casamento deve provavelmente ocorrer com frequência, "mas as pessoas não falam muito sobre isso, porque seus relacionamentos são invalidados por outras pessoas quando são vistos como não sendo parte da norma social."

Analisando historicamente, nota-se que o casamento mudou bastante ao longo do tempo. Antigamente era um arranjo econômico. Na atualidade, transformou-se em um relacionamento que abrange praticamente todos os aspectos da vida, disse Indigo Stray Conger, terapeuta sexual e de relacionamento. Nesse contexto, os casamentos hoje em dia envolvem uma dose enorme de expectativa dos cônjuges, pois eles esperam um do outro que satisfaçam todas as suas necessidades, sejam sociais, psicológicas e econômicas.

Os casamentos platônicos acabam levantando "uma questão interessante relacionada a quais elementos são mais importantes em um casamento e o que os parceiros teoricamente devem atender para que os casamentos sejam bem-sucedidos", disse Jess Carbino, especialista em relacionamentos que trabalhou para os aplicativos de namoro Tinder e Bumble.

Não se tem notícia de fenômeno análogo no Brasil, mas pode-se presumir que há um número considerável de casais por aqui nessa situação. Mas, pelo Direito brasileiro, um casamento como esse teria pleno valor jurídico? À luz das regras legais, pode-se questionar, por exemplo, se esses amigos quando casam estariam estabelecendo uma "comunhão plena de vida", como prevê o Código Civil (art. 1.511). Além disso, se no curso da relação estariam sendo respeitados os deveres de ambos os cônjuges, como "I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos" (art. 1.566).

Já em uma primeira análise, esse tipo de casamento parece ter plena eficácia jurídica no Brasil. Em comparação com os casamentos tradicionais, falta, ao que parece, principalmente os elementos romântico, sexual e monogâmico. Ocorre que esses elementos não são indispensáveis para constituição de "comunhão plena de vida". Ou melhor, os relacionamentos hetero-monogâmicos, que envolvem relação sexual entre um homem e uma mulher, não são a única forma de "comunhão plena de vida".

Hoje em dia reconhece-se uma ampla liberdade dos cônjuges para construir o seu próprio modelo de família: "Ao prever que 'o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges' [art. 1.511], estabelece-se que os próprios nubentes podem compor os termos da essência da relação familiar [...]. Assim, fica a critério dos nubentes a possibilidade de eles mesmos construírem o próprio modelo familiar, dentro dos parâmetros de realização que lhes são próprios, já que o art. 1.513 do Código Civil prevê a proibição a 'qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família'. Dentro desse espaço de liberdade garantido pelo legislador, a comunhão de vida 'deve ser construída pelos nubentes de forma íntima e privada, sem a intervenção do Estado, ao eleger certos efeitos ou impor determinados direitos e deveres aos nubentes, à revelia de seus projetos pessoais'."2

Assim, defende-se que os cônjuges teriam a liberdade para afastar, por exemplo, os deveres previstos de fidelidade recíproca e de coabitação. Por outro lado, ainda são reconhecidos alguns limites à liberdade de estipulação dos nubentes. Persistem como imperativas as regras do casamento baseadas no princípio da solidariedade familiar, como o dever de mútua assistência. Esse elemento, contudo, não está sendo colocado em xeque pelos casamentos entre amigos.

Os casamentos platônicos entre amigos parecem se inserir em um movimento mais amplo do ser humano em busca de uma maior liberdade de expressão da sua individualidade e em prol de uma maior pluralidade e diversidade nas formas de se relacionar. Respondendo à pergunta do subtítulo deste texto, os casamentos platônicos entre amigos podem até não ser uma forma nova, mas certamente constituem uma forma de expressão de família.

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1 From Best Friends to Platonic Spouses. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2021.

 

2 Gustavo Tepedino; Ana Carolina Brochado Teixeira. Fundamentos do direito civil, vol. 6: direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, cap. 2.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.