Direito Privado no Common Law

O Alien Tort norte-americano e a responsabilidade civil por ilícitos corporativos contra direitos humanos

O Alien Tort norte-americano e a responsabilidade civil por ilícitos corporativos contra direitos humanos.

20/9/2021

Em minha última participação nesta prestigiosa publicação, em artigo intitulado "Responsabilidade Civil Empresarial por Violações de Direitos Humanos nas Cadeias Globais de Suprimentos" escrevi sobre a recente evolução jurisprudencial na Suprema Corte da Inglaterra, que inovou positivamente no campo das demandas de responsabilidade civil contra as "holdings" em relação às atividades de suas subsidiárias no exterior. A questão principal concerne sobre quando caberá uma lide diretamente contra a empresa controladora por violações de direitos humanos no exterior.

Na coluna de hoje centramos a atenção na recentíssima abordagem norte-americana da temática, cujas origens se encontram no Alien Tort Statute, também conhecida como Alien Tort Claims Act (ATCA), seção do Código dos Estados Unidos que concede jurisdição aos tribunais federais sobre pretensões movidas por estrangeiros por atos ilícitos cometidos em violação do direito internacional. Foi introduzida em 1789, sendo uma das leis federais mais antigas ainda em vigor nos EUA. O ATS foi raramente citado por quase dois séculos após sua promulgação. Contudo, desde 1980, os tribunais interpretam o ATS de modo a permitir que estrangeiros busquem remédios nos tribunais dos EUA para violações de direitos humanos cometidas por corporações outras nações, desde que haja uma conexão suficiente com os Estados Unidos.

Em 17 de junho de 2021, no caso Nestlé USA, Inc. v. Doe, 593 U. S., a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu as bases sobre as quais os demandantes podem buscar reparação nos tribunais dos Estados Unidos por abusos de direitos humanos ocorridos no exterior. Por uma votação de 8-1, o Tribunal considerou que para a aplicação nos EUA do Alien Tort Statute - 28 U.S.C. § 1350 -, os reclamantes devem demonstrar uma conduta doméstica e não apenas uma atividade corporativa geral.

A luz da redação do Alien Tort Statute (ATS) "os tribunais distritais terão jurisdição original para qualquer ação civil movida por um estrangeiro apenas por ato ilícito, cometido em violação da lei das nações ou de um tratado dos Estados Unidos" (25 de junho de 1948, cap. 646, 62 Estat. 934.).

O caso foi apresentado em 2010 no U.S. District Court, Central District of California, por seis indivíduos do Mali que alegam que quando crianças foram sequestrados e traficados para a Costa do Marfim como escravos para a produção de cacau. As empresas americanas Nestlé USA, Inc. e Cargill, Inc, não possuem ou operam fazendas de cacau na Costa do Marfim, mas adquirem cacau de fazendas locais e fornecem a essas fazendas recursos técnicos e financeiros. Os demandantes alegaram que esse arranjo auxiliou e incentivou a escravidão infantil, na medida em que os demandados "sabiam ou deveriam saber" que as fazendas exploravam crianças escravizadas, porém continuavam a fornecer-lhes recursos.  Ou sejam detinham influência econômica sobre as fazendas, mas não a exerceram para eliminar a escravidão infantil. Embora a distribuição de recursos e as lesões tenham ocorrido fora dos Estados Unidos, os demandantes postularam em um tribunal federal norte-americano, tendo em vista que os demandados supostamente tomaram todas as decisões operacionais importantes dentro dos Estados Unidos.

Todavia, considerando que as lesões sofridas pelos demandantes ocorreram no exterior e a única conduta doméstica alegada pelos entrevistados foi a atividade corporativa geral, o Tribunal Distrital rejeitou a pretensão como uma aplicação extraterritorial inadmissível do ATS sob o precedente da SCOTUS, Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co., 569 U.S. 108 (2013), oportunidade em que se deliberou que "a mera presença corporativa" nos Estados Unidos não se afigura conduta doméstica suficiente.1 Nada obstante, na apelação, o Nono Circuito reverteu a decisão do Tribunal Distrital, concluindo que tinha jurisdição para revisar o caso na medida em que a conduta dos demandados era relevante para o foco do ATS, sendo que outras cortes federais já haviam admitido processos de ATS contra corporações dos EUA.

Em razão de um "writ of certiorari" o processo chegou a Suprema Corte para verificação de dois aspectos: se houve alegação suficiente de fatos de conduta interna para apoiar o recurso ao ATS e, se de forma geral, as corporações dos Estados Unidos poderiam ser responsabilizadas civilmente de acordo com o ATS. O SCOTUS reafirmou a decisão de que o ATS não se aplica extraterritorialmente, presunção que não será superada mesmo quando uma empresa dos EUA foi acusada de ter supervisionado suas operações estrangeiras de sua sede, se os atos ilícitos foram cometidos no exterior. "Decisões de financiamento" tomadas nos Estados Unidos em relação à estabelecimentos no exterior são insuficientes para converter o cenário em uma demanda interna.

Escrevendo pela maioria, o juiz Clarence Thomas explicou que os estatutos dos EUA só se aplicam à extraterritorialidade onde houver uma indicação clara e afirmativa de que a conduta relevante para a adoção do Alien Tort Statute ocorreu nos Estados Unidos. Ademais, A ATS concede aos tribunais federais jurisdição para ouvir reclamações apresentadas por um estrangeiro apenas por um ilícito civil cometido em violação da lei das nações ou de um tratado dos Estados Unidos.  Quer dizer, em princípio, retomou-se o caso Sosa v. Alvarez-Machain, 542 US 692 (2004), no qual o Tribunal considerou que o ATS era um estatuto jurisdicional que não criava nenhuma nova causa de ação além das reivindicações envolvendo três delitos principais que eram comumente aceitos como violações do direito internacional quando o ATS foi decretado no século XVIII: (1) ofensas contra embaixadores; (2) violação de condutas seguras e (3) pirataria. Os tribunais só poderiam exercer discrição judicial para reconhecer uma nova causa de ação, que não seja para essas três originárias, em circunstâncias restritas.

Segundo Thomas, consoante a estrutura de duas etapas (two-step framework) da Suprema Corte para analisar questões de extraterritorialidade, primeiramente presume-se que uma lei se aplica apenas internamente e indaga-se se o caso oferece uma indicação clara e afirmativa que refuta a presunção. Tanto em Nestlé como no precedente Kiobel, o ATS não refuta a presunção de aplicação interna. Não se admite a criação de uma "cause of action" pelo judiciário, sob pena de invasão de atribuição do parlamento. Adentrando na segunda etapa, quando a lei não se aplica extraterritorialmente, os demandantes devem estabelecer que a conduta relevante para o enfoque do estatuto tenha ocorrido nos Estados Unidos, mesmo que outra conduta tenha se verificado no exterior.  Vale dizer, reiterando-se o que havia sido decidido em RJR Nabisco, Inc. v. European Cmty., 136 S. Ct. 2090, 2101 (2016), considerou-se que o ATS só se aplica nos Estados Unidos quando “the claims touch and concern the territory of the United States with sufficient force to displace the presumption”. Todavia, quase todas as condutas que os demandantes afirmam ter auxiliado e estimulado o trabalho forçado - fornecendo treinamento, fertilizantes, ferramentas e dinheiro para fazendas no exterior - ocorreram na Costa do Marfim.

Malgrado tenham alegado os demandantes que decisões operacionais importantes foram tomadas nos Estados Unidos, o Tribunal as considerou como alegações de atividade corporativa geral - atividade comum à maioria das empresas - sem uma conexão suficiente ao ilícito alegado. Como o Tribunal colocou: "The presumption against extraterritorial application would be a craven watchdog indeed if it retreated to its kennel whenever some domestic activity is involved in the case". ("A presunção contra a aplicação extraterritorial seria de fato um cão de guarda covarde se recuasse para seu canil sempre que alguma atividade doméstica estivesse envolvida no caso"). Assim, a SCOTUS culminou por reverter a decisão do Nono Circuito, no sentido que os demandantes haviam suficientemente defendido uma causa de ação.

Uma observação: A Suprema Corte não definiu o significado dos conceitos indeterminados "mera presença corporativa" ou "atividade corporativa geral". O Tribunal não se aprofundou nos meandros da relação matriz-subsidiária (incluindo como eles são considerados nas áreas sobrepostas de direito em outras jurisdições), e o que o escopo de tais "decisões operacionais" poderia significar para diferenciar entre uma atividade corporativa geral em oposição a um limite superior de atividade. O Tribunal também não discutiu o que é a "devida diligência" ou o dever legal de cuidado da controladora corporativa em relação à subsidiária quanto a tornar a conduta comissiva ou omissiva da subsidiária diretamente imputável à controladora ou, pelo menos, torna-la negligente por não cumprir suas próprias responsabilidades legais independentes sob sua devida diligência para com a subsidiária e suas partes interessadas. O Tribunal também focou exclusivamente sua lente interpretativa para reivindicações de ATS nos tribunais dos Estados Unidos, sem considerar a trajetória mais ampla da interpretação das responsabilidades de devida diligência da empresa-mãe sobre subsidiárias em jurisdições estrangeiras, como o Reino Unido em casos históricos de Vedanta v. Lungowe e como Okpabi v. Royal Dutch Shell decidido pela Suprema Corte do Reino Unido, em litígios de direitos humanos.

Contudo, e tão importante quanto: a Suprema Corte não resolveu a segunda questão que lhe foi posta, qual seja, se a ATS isenta as corporações de pretensões judiciais de ATS. Neste particular, 5 dos 8 ministros que conduziram o ponto de vista majoritário consideraram que, a priori, as corporações não são imunes a processos nos termos da ATS. O juiz Gorsuch pontuou que o ATS nunca fez distinção entre demandados pessoas naturais e jurídicas e que as ações por atos ilícitos contra corporações dos EUA e outras entidades legais, como navios, há muito são reconhecidas nos Estados Unidos. Da mesma forma, a juíza Sotomayor afirmou que não há razão para isolar as corporações nacionais da responsabilidade por violações da lei simplesmente porque são pessoas jurídicas e não naturais.

Se, por um lado, o caso Nestlé, indica que a Suprema Corte estreitou o âmbito jurisdicional do ATS e, que em princípio, a América corporativa pode se tranquilizar quanto à impossibilidade de indiscriminada sujeição à responsabilidade por danos puramente extraterritoriais, não se pode negar que permanece aberta a via para que empresas americanas sejam eventualmente responsabilizadas civilmente nos EUA por reivindicações de ATS com fundamento mais substancial. Embora as opiniões desses cinco juízes não sejam vinculativas, acabam por revelar a disposição da Corte sobre a questão dois. O texto e o propósito do ATS, bem como a longa e consistente história de responsabilidade corporativa em atos ilícitos, demonstram que, no mínimo, a SCOTUS não encerrou categoricamente ações judiciais de ATS contra corporações dos Estados Unidos e que pretensões de responsabilidade civil por violações extraterritoriais ainda podem ser apresentadas contra empresas.2

Apresar desta "brecha jurídica", o mais preocupante no caso Nestlé é que uma corporação dos EUA pode evitar a responsabilidade de ATS, mesmo se tiver conhecimento real de que seus vínculos offshore violam o direito internacional. Contanto que a conduta doméstica da empresa norte-americana em relação à violação consista em não mais do que atividade corporativa geral, a empresa norte-americana provavelmente estará imunizada de demandas de ATS. Este padrão "pós-Nestlé" é temerário, porque reduz incentivos de mitigação de danos por parte das corporações dos EUA cujas atividades internacionais violam direitos humanos, envolvendo abusos trabalhistas (no limite da escravidão), danos ambientais3 e crimes de guerra. Doravante, essas empresas podem reconhecer abertamente essas violações, nada fazer para impedi-las e ainda evitar a responsabilidade ATS sob a nebulosa alegação de que a conduta corporativa nos Estados Unidos não se deu fora do "curso normal dos negócios", definição que permanece aberta a futuras interpretações judiciais.4

__________

1 No artigo intitulado, The Supreme Court and the Alien Tort Statute: Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co, Ingrid Wuerth critica a decisão de Kiobel: "The ATS in general and Kiobel in particular have engendered much hand-wringing, some of it shrill. Those who favor the decision lament the lower court opinions and law professors who ignored the presumption against extraterritoriality for so long, thereby permitting this unique and pernicious form of American exceptionalism. Those opposed to the decision lament the corporate and individual human rights abuses that may now go entirely unaddressed. And then there is the seemingly-unending lack of certainty about the statute, which now focuses on detailed parsing of the opinions in Kiobel, especially those of Justice Kennedy and the majority”. In, Vanderbilt University Law School Public Law and Legal TheoryWorking Paper Number 13-26.

2 Bem percebe John H. Knox no artigo: The Ruggie Rules: Applying Human Rights Law to Corporations que: "At a minimum, these duties require states to avoid interfering with human rights themselves. However, that is not all that human rights law requires. It has long been clear that human rights may be abused by non-state actors. Slavery, terrorism, and violence against women are among the countless historical and modern examples. International law does not ignore the threats that private actors pose to the enjoyment of human rights but, with very few exceptions, it does not directly impose duties on them to refrain from such abuses. Instead, it requires each state not only to respect human rights itself, but also to take steps to protect rights from interference by non-state actors. States are required not just to refrain from slavery, for instance, but also to bring about its "complete abolition" "throughout their jurisdiction". The UN Guiding Principles on Business and Human Rights (Radu Mares ed., 2012), Wake Forest Univ. Legal Studies Paper No. 1916664, Available at SSRN. Disponível aqui.

3 Eric Posner defende a sua extensão à grave questão climática em Climate Change and International Human Rights Litigation: A Critical Appraisal: "ATS litigation has been distinctive because it has produced awards and even payment of damages (in settlements); so today it is the most prominent and effective means for litigating international human rights. If a plausible claim can be made that the emission of greenhouse gases violates human rights, and that these human rights are embodied in treaty or customary international law, then American courts may award damages to victims". In Chicago, John M. Olin Law & Economics Working paper n. 329.

4 Tal como conclui Doori C. Song em U.S. Corporate Liability Under the Alien Tort Statute After Jesner v. Arab Bank, PLC “Furthermore, domestic corporate liability under the ATS would incentivize U.S. corporations to undertake better due diligence efforts to prevent the occurrence of human rights violations. To avoid liability, corporations would identify risks in their supply chains and work closer with suppliers to minimize adverse human rights impacts.To promote transparency and good faith, corporations would also be encouraged to conduct compliance audits and disclose their findings.270 Furthermore, domestic corporations subject to ATS suits would have an incentive to withdraw from host states and business relationships that cause, create, or are directly linked to adverse human rights impacts.271 Holding U.S. corporations accountable under the ATS would result in greater overall due diligence efforts”. Disponível aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.