Introdução
Na última coluna iniciei a discussão sobre se a "corresponsabilidade" do lesado seria aplicável ou não em âmbito contratual. Como foi explicado, nos EUA a doutrina tem refletido sobre esta questão. O instituto da corresponsabilidade (comparative negligence) se popularizou no campo da responsabilidade civil extracontratual (tort law), mas a mesma mudança tem demorado a ocorrer no Direito Contratual. Foi apresentado artigo de Ariel Porat, no qual este autor analisa as dificuldades e benefícios de reconhecimento da figura no direito contratual americano1.
Na presente coluna vamos enfrentar a questão à luz do direito brasileiro. Como sabido, a corresponsabilidade do lesado é instituto consagrado em âmbito extracontratual, previsto expressamente no art. 945, do Código Civil. A questão a analisar é se, em âmbito contratual, é possível reconhecer como juridicamente relevantes situações em que devedor e credor concorrem culposamente para o evento danoso, de modo a haver uma corresponsabilidade entre as partes e consequente redução do valor da indenização do lesado.
Nesta empreitada, vamos primeiramente verificar se já há manifestações da corresponsabilidade do lesado no direito brasileiro e, em seguida, analisar possíveis obstáculos ao reconhecimento do instituto.
Expressões da corresponsabilidade do lesado no direito contratual
Feita uma varredura nas principais leis e na jurisprudência do STJ, verificou-se que já existem manifestações reconhecidas de corresponsabilidade do lesado no direito brasileiro. De um lado, na Consolidação das Leis do Trabalho encontra-se previsão legal acerca de situação, no contrato do trabalho, em que empregador e empregado concorrem culposamente para a rescisão do contrato: "Art. 484. Havendo culpa recíproca no ato que determinou a rescisão do contrato de trabalho, o tribunal de trabalho reduzirá a indenização à que seria devida em caso de culpa exclusiva do empregador, por metade."
Além disso, encontram-se pelo menos duas decisões do STJ em que há referência expressa à aplicação da corresponsabilidade do lesado ("culpa concorrente") ao campo contratual: REsp 1615977/DF, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 27/09/2016, DJe 07/10/2016 e REsp 1581075/PA, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 19/03/2019, DJe 22/03/2019.
Possíveis obstáculos; superação
Há dois possíveis obstáculos para o reconhecimento da corresponsabilidade do credor. O primeiro é a concepção tradicional segundo a qual o credor não responde pelos danos que a sua mora causar ao devedor. Por todos, podemos ilustrar essa posição pela pena de Clóvis Beviláqua: "o Codigo Civil brasileiro, seguindo a doutrina do alemão, obriga-o, somente, a pagar as despesas de conservação, porque não associa á móra accipiendi a culpa. Se ocorrer algum damno ao devedor, depois da mora do credor, este não responderá por ele, se lhe não tiver dado causa por acto seu."2
Este obstáculo encontra-se superado, todavia. A percepção sobre a situação jurídica do credor alterou-se ao longo do século XX. Se no início do século passado imperava entre a noção de que o credor era inteiramente livre em relação ao pagamento do devedor, atualmente vigora na doutrina3 e na jurisprudência4 percepção distinta: a de que, com base na boa-fé (art. 422, CC), o credor tem o dever de cooperar com o devedor no pagamento. Há ainda a posição daqueles que veem o credor como titular da incumbência ou ônus jurídico de cooperar, sob pena recaírem sobre si certas desvantagens jurídicas5.
Concordamos que o credor tem sim o dever de cooperar no adimplemento. O art. 422, do CC, impõe a ambas as partes contratantes o dever de guardar a boa-fé. E esta previsão é incompatível com o agravamento da posição do devedor, ou com a criação de complicações para o seu adimplemento.
O segundo possível obstáculo é a percepção binária e mutuamente excludente a que o direito contratual está acostumado a trabalhar: se a inexecução foi culposa, o devedor responde integralmente por perdas e danos. Por outro lado, se o credor tiver dado causa ao inadimplemento, não terá havido inexecução culposa e, portanto, o devedor está inteiramente livre de qualquer responsabilização.
Esta percepção pode ser exemplificada com a percepção tradicional de que não é possível haver simultaneamente mora do devedor e do credor6. De fato, a princípio, essa pode parecer a conclusão correta. Segundo o art. 394, do CC, considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não recebê-lo no tempo estabelecido, entre outras situações. Com efeito, em um primeiro momento, é até intuitivo pensar que só é possível haver a configuração de uma ou de outra situação – ou o devedor ou credor que dá causa à não efetuação do pagamento –, mas nunca os dois conjuntamente.
Aprofundando a análise, verifica-se, contudo, que, na realidade, é sim possível haver situações em que tanto o devedor quanto o credor concorrem culposamente para um mesmo evento danoso, como, por exemplo, o inadimplemento do devedor. Na coluna anterior apresentei três casos trabalhados por Ariel Porat. Por conta de limitações de espaço, vamos retomar e analisar aqui apenas um deles, mas as conclusões são generalizáveis.
O caso é o seguinte: X é um subempreiteiro e Y é um empreiteiro. Eles celebram contrato para que X realize as obras e para que Y pague parcelas em diferentes fases da construção. Em determinado momento, X argumenta que atingiu uma dessas etapas de pagamento e, portanto, tem direito a uma parcela. Na verdade, X não tem este direito, uma vez que não cumpriu um requisito adicional estipulado no contrato. X não está ciente dessa exigência suplementar por causa de um descuido de sua parte. Y recusa-se a pagar, afirmando que, nos termos do contrato, não é obrigado a fazê-lo e não fornece qualquer outra explicação. X, então, interrompe a execução da obra, causando prejuízo a Y. Somente depois de um mês, durante o qual Y obstinadamente se recusou a se encontrar com X, Y explica a X por que ele não tinha direito ao pagamento7.
Sob uma perspectiva atual, não há razões para não conceber que tanto a conduta de X quanto a de Y concorrem culposamente para o evento danoso (inadimplemento de X) e os danos daí decorrentes. Há inadimplemento culposo de X, na medida em que foi ele quem interrompeu indevidamente a obra. Mas há também inexecução culposa de Y, uma vez que este estava ciente do desconhecimento da outra parte sobre seus direitos e deveres e podia facilmente esclarecê-la.
Segundo o art. 422, do CC, ambas as partes devem agir conforme a boa-fé. Dentre outros deveres, a boa-fé objetiva impõe deveres de informação, os quais, segundo bem leciona Menezes Cordeiro, "obrigam as partes a trocar todas as informações necessárias, de modo a que [...] se verifique, no cumprimento, a necessária colaboração entre as partes e, pelo que tange ao devedor: o cumprimento opere em termos satisfatórios, de acordo com o programa obrigacional em execução." Cordeiro complementa que "os deveres de informação recaem sobre a parte que detenha o conhecimento da matéria. Naturalmente, eles poderão ser mais intensos, perante uma parte débil. Não dependem, porém, de explícitas perguntas: nem isso faria sentido pois, em regra, só pergunta quem sabe."8
No caso concreto, como visto, o credor Y tinha conhecimento da ignorância de X e podia facilmente orientá-lo. Por conta da boa-fé, conclui-se que ele deve fazê-lo. Y não pode omitir-se e assim tirar deliberadamente vantagem do descuido da outra parte. Por outro lado, a inexecução de Y não desnatura a de X, na medida em que foi este quem interrompeu indevidamente a obra. Para esta conclusão, não se pode perder de vista que era de X a responsabilidade a aferição, interpretação e cumprimento de suas obrigações nos termos do contrato. Este seria, portanto, um caso ilustrativo de corresponsabilidade do credor lesado, em que ambas as partes concorreram culposamente para o evento danoso e, consequentemente para os danos daí decorrentes.
E como fica, neste caso, a fixação da indenização? A melhor solução é aplicar, por analogia, o art. 945, do CC, que prevê o critério do confronto da gravidade da culpa de ambas as partes.
Conclusão
A figura da corresponsabilidade do lesado é aplicável no direito contratual brasileiro. Deve-se notar, em primeiro lugar, que este reconhecimento não é de todo inovador, pois a figura já vem sendo aplicada pelo STJ e encontra expressão específica no art. 484, da CLT.
Além disso, os possíveis obstáculos ao reconhecimento do instituto revelaram-se suplantáveis. De um lado, não vigora mais a ideia tradicional de que o credor seria titular apenas de direitos, e não também de deveres. Com base no art. 422, do CC, hoje é predominante o entendimento de que o credor tem o dever acessório, fundado na boa-fé, de cooperar no pagamento com o devedor.
De outro, é também superável a percepção binária de que ou há responsabilidade integral do devedor ou, havendo concurso do credor, estaria excluída a culpa daquele, com a sua consequente irresponsabilidade. Como se verificou, é sim possível que a conduta culposa de ambas as partes concorra para o evento danoso. E, em uma situação como essa, deve-se reconhecer a corresponsabilidade de ambos pelos danos decorrentes. Como consequência, a indenização do credor lesado deve ser reduzida, com fundamento na aplicação, por analogia, do art. 945, do CC, devendo ser fixada com base no confronto da gravidade da culpa do devedor e do credor.
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1 V. DIAS, Daniel. A "corresponsabilidade" do credor no Direito Contratual - Parte I Disponível aqui. Acesso em: 10 jun. 2021.
2 BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v. 4. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1943, p. 113.
3 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 425.
4 REsp 1494386/PA, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 04/02/2020, DJe 19/05/2020.
5 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 118-119, comentando a regra do art. 400 do CC/2002, observa que "esse "dever" de cooperação constitui, na realidade, um ônus jurídico, cuja conseqüência prática é um regime jurídico peculiar para a mora creditoris, sendo desnecessária, até mesmo, a culpa do credor para a sua caracterização."
6 Sobre esta questão, ver: TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 328, referindo-se a "mora recíproca".
7 V. DIAS, op. cit., 2021.
8 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil, vol. VI. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2019, p. 515-516.