Direito Privado no Common Law

"É lícito pagar com moedas de um centavo sujas de óleo", diz autoridade americana. Mas será mesmo?

"É lícito pagar com moedas de um centavo sujas de óleo", diz autoridade americana. Mas será mesmo?

19/4/2021

Na pacata cidade de Peachtree, no Estado da Geórgia (EUA), o dono de uma oficina mecânica, insatisfeito com o pedido de demissão de seu empregado, decidiu pagar o seu último salário, no valor de U$ 915,00, em moedas de 1 centavo. As 91.500 moedas, que pesavam aproximadamente 227 kg, foram deixadas à noite na entrada da casa do ex-funcionário. As moedas estavam cobertas por um óleo pegajoso e fétido, provavelmente fluido de direção hidráulica. Por cima da pilha de moedas havia ainda o contracheque com a mensagem "fuck you" escrita à mão.

Este caso foi recentemente noticiado pelo tradicional jornal The New York Times1. A matéria apresenta uma foto da pilha de moedas:

(Imagem: Divulgação)

O caso ganhou notoriedade quando a namorada do ex-empregado postou dois vídeos sobre o incidente no Instagram. Desde então "o casal atraiu a simpatia de milhares de pessoas, que também mantêm relações tensas com seus empregadores em meio à pandemia."

O casal conta que passou algumas horas transportando as moedas para a garagem em um carrinho de mão, subindo a encosta íngreme da entrada da casa para a garagem. No processo, as rodas do carro foram danificadas pelo peso das moedas. Eles precisaram ainda limpar os centavos para poder jogá-los em uma máquina de contar moedas. Espalharam-nas em um tanque grande com detergente, vinagre e água. Mas não deu certo. Eles então descobriram que, para remover a solução gordurosa, precisavam limpar cada centavo individualmente. O casal levou cerca de duas horas para limpar US$ 5 em moedas de um centavo.

O ex-empregador foi procurado por uma emissora americana e disse que não conseguia se lembrar se tinha deixado as moedas na entrada da casa de seu ex-funcionário, mas complementou: "Não importa – ele foi pago, isso é tudo que importa".

O ex-funcionário pensou em ajuizar uma ação contra o ex-empregador, mas não o fez por entender que o que acontecera podia não ser ilegal do ponto de vista técnico. Eric R. Lucero, um porta-voz do Ministério do Trabalho dos EUA, foi questionado por e-mail se empregadores podem pagar a empregados em moedas de 1 centavo sujas com óleo e ele respondeu que "não há nada nos regulamentos que dite em que moeda o funcionário deve ser pago."

Diante dessa resposta, o jornal The NY Times noticiou o caso, dizendo que este tipo de pagamento "não é tecnicamente ilegal, de acordo com o Ministério do Trabalho", mas que isso "não significa que seja OK, de acordo com os novos fãs do Instagram do ex-funcionário."

O caso e a resposta da autoridade americana convidam à reflexão sobre a licitude da conduta do ex-empregador. Afinal, é mesmo lícito pagar dívida de quase mil dólares com moedas de 1 centavo sujas de óleo? Vamos responder a essa pergunta à luz do direito americano e brasileiro.

Partindo do direito brasileiro, constata-se que também aqui não há regra expressa que exclua expressamente a possibilidade de pagamento com moedas de 1 centavo sujas de óleo. O Código Civil prevê apenas que "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal" (art. 315). E a CLT dispõe que "a prestação, em espécie, do salário será paga em moeda corrente do país." (art. 463).

Seria então lícito este tipo de pagamento por falta de regra expressa que clara e diretamente o proíba? A resposta é negativa. Não se pode esquecer do fundamental princípio da boa-fé, positivado, entre outros dispositivos, no art. 422 do Código Civil: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

Desse princípio extrai-se, dentre outros, os deveres de lealdade, que vedam que uma das partes contratantes agrave ou onere desnecessariamente a posição da outra. E foi precisamente isso o que ocorreu no caso: ao pagar a dívida com quase mil moedas de 1 centavo sujas de óleo, o devedor colocou o credor em uma situação desnecessariamente mais onerosa. Basta pensar em todo o esforço do ex-funcionário necessário para poder fazer uso do dinheiro pago, como transportar as moedas, armazená-las, limpá-las, contá-las e trocá-las por cédulas maiores ou depositá-las em conta bancária.

De acordo com o Direito brasileiro, este pagamento é, portanto, flagrantemente ilícito, por violar a boa-fé. E nos EUA? Na ausência de norma expressa que vede o pagamento em moedas de 1 centavo, especialmente se sujas de óleo, o princípio da boa-fé seria aplicável também lá, tornando o pagamento ilícito?

A resposta parece-nos positiva. Apesar de tradicionalmente ter havido maior resistência da comunidade jurídica americana, sobretudo quando comparado com o desenvolvimento nos países do civil law, a noção de good faith (and fair dealing) é atualmente reconhecida e relevante para o direito contratual norte americano. Foi primeiramente incorporada ao Uniform Commercial Code: "Section 1-304. Obligation of Good Faith: Every contract or duty within this act imposes an obligation of good faith in its performance and enforcement." E também codificada pelo American Law Institute nos Restatement (Second) of Contracts: "§ 205. Duty of Good Faith and Fair Dealing: Every contract imposes upon each party a duty of good faith and fair dealing in its performance and its enforcement."

Retomando, então, a provocação presente no título da presente coluna, pode-se concluir que a conduta do ex-empregador de pagar ao ex-empregado com quase mil moedas de 1 centavo sujas de óleo é ilícita, tanto pelo Direito brasileiro quanto pelo americano.

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1 Disponível aqui. Acesso em 14 abr. 2021.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.