Quando refletimos sobre os indivíduos mais atingidos pela pandemia de coronavírus, imediatamente lembramos de pessoas com problemas de saúde preexistentes e idosos. Contudo, os "trabalhadores essenciais" suportaram uma parte desproporcional desse fardo. Refiro-me àqueles que trabalham em serviços de emergência, saúde, agricultura, alimentação, serviços públicos, energia, transporte, dentre outros. Esses funcionários são geralmente mal pagos, impossibilitados de optar por home-office, inadequadamente protegidos contra riscos do local de trabalho, estando entre os mais devastados pela pandemia. A natureza altamente transmissível do SARS-CoV-2, incluindo a infecciosidade de indivíduos assintomáticos e pré-sintomáticos, significa que os familiares de trabalhadores infectados também estão em risco. De acordo com uma estimativa nos EUA, entre 7% e 9% das primeiras 200.000 mortes de Covid-19 ocorreram quando um indivíduo foi infectado no trabalho e transmitiu o vírus a um membro da família.
Os funcionários que adoecem devido a exposições ocupacionais geralmente têm direito a uma compensação trabalhista variável conforme cada lei estadual norte-americana. Se a doença for uma "doença comum da vida" o funcionário deve provar que foi causada por exposição no local de trabalho, incluindo-se patologias derivadas de uma exposição relativamente súbita e inesperada a germes. Para aliviar o ônus da prova, para funcionários adoecidos no trabalho pela Covid-19, em geral as leis estaduais estabelecem uma presunção relativa de que a infecção da Covid-19 por um trabalhador de saúde ou socorrista é o resultado de exposição ocupacional. Portanto, trabalhadores que se infectam no decorrer do seu trabalho são elegíveis para benefícios previdenciários se puderem estabelecer a fonte de sua doença baseada no emprego. Ocorre que membros da família infectados posteriormente pelos trabalhadores não são elegíveis porque não sofreram lesões no curso do emprego. Todavia, poderiam eles pretender responsabilidade civil na justiça comum?
Nos Estados Unidos forjou-se a teoria do "take home liability". Os processos movidos por membros da família que adoecem depois que seu parente é exposto no trabalho são conhecidos como casos de "Responsabilidade civil levada para casa". Trata-se de uma nova teoria para fornecer um remédio para indivíduos que de outra forma não poderiam obter compensação por sua doença. A sua aplicação paradigmática se deu na responsabilidade pela exposição ao amianto (asbestos cases). Funcionários que trabalharam com amianto na fabricação, construção naval, automotiva e outras indústrias levaram suas roupas contaminadas com amianto para casa onde seus cônjuges, filhos e outros membros da família foram expostos durante a lavagem de roupas ou de outras maneiras, como vestindo as roupas contaminadas enquanto brincavam com seus filhos. A "take home liability" foi exitosamente desenvolvida para fornecer um remédio para as mortes e doenças graves causadas por esta exposição secundária ao amianto no local de trabalho. O fato é que asbestose e mesotelioma são graves doenças respiratórias causadas apenas pela exposição ao amianto, facilitando a prova da causa, sendo que desde 1972 havia normativa reconhecendo o risco de exposição ao amianto, exigindo que os empregadores forneçam roupas de proteção e vestiários para evitar que os funcionários utilizem em casa ou lavem suas roupas contaminadas com amianto.
Nos 50 Estados norte-americanos há uma oscilação legislativa quanto à permissão para o ajuizamento da "take home liability". Até 2020, 16 Estados afirmam que existe um dever dos empregadores perante os familiares das vítimas – autorizando uma demanda por negligência. Em contraste, 13 Estados afirmam que não existe dever porque o dano não é previsível ou não há relação significativa entre o membro da família exposto e o empregador. Dois estados promulgaram legislação que proíbe expressamente a "take home liability", e os 19 Estados restantes ainda não abordaram o problema.
Ao contrário da exposição ao amianto, nos EUA a responsabilidade objetiva pelo produto não é uma teoria jurídica viável para a exposição ao SARS-CoV-2 pelos familiares pois o coronavírus não é um "produto". No entanto, ações de responsabilidade civil com amparo em negligência pelo empregador são em tese viáveis para a "take home liability" no cenário da pandemia do coronavírus. A responsabilidade objetiva aplica-se apenas a atividades anormalmente perigosas, envolvendo um risco previsível e altamente significativo de danos, mesmo quando o cuidado razoável é exercido e a atividade não é de uso comum. É improvável que os tribunais norte-americanos apliquem responsabilidade objetiva à Covid-19, embora seja uma doença mortal e altamente contagiosa. Em um leading case, Doe v. Johnson, a demandante alegou que o réu lhe transmitiu o HIV indevidamente por meio de relações sexuais consensuais. O juiz considerou que não havia precedente para estender a responsabilidade objetiva a este caso. Os riscos de uma infecção sexualmente transmissível poderiam ser reduzidos pelo exercício de cuidados razoáveis e a atividade sexual não é uma atividade inerentemente perigosa. Raciocínio semelhante provavelmente se aplica em um caso de Covid-19.
Portanto, em uma demanda de responsabilidade civil no contexto da exposição domiciliar à Covid-19 com base na negligência do empregador, os familiares do empregado devem provar que o demandado violou um dever de cuidado perante eles. Devem ser avaliados os quatro elementos tradicionais da responsabilidade civil nas diversas jurisdições da common law: dever (duty), violação (breach), nexo causal (causation) e dano (damage).
a) Dever (duty) - A essência de uma indenização com base em negligência é a de que o réu violou um dever para com o autor ao deixar de exercer o cuidado razoável em todas as circunstâncias. Em casos de "take home liability", o empregador é acusado de violar um dever perante o familiar do empregado - pessoa física sem vínculo empregatício com o empregador, em ambiente fora do local de trabalho, envolvendo pessoa cuja identidade ou mesmo existência não fosse conhecida do demandando. Assim, a questão fulcral é se um membro da família de um funcionário é um "demandante previsível", para quem o empregador assuma um dever legal. No precedente Kesner v. Superior Court, o tio de Johnny Blaine Kesner, Jr., George Kesner, um funcionário da Pneumo Abex, LLC, foi exposto a altos níveis de amianto no decorrer de seu trabalho. Johnny Kesner ficou na casa de seu tio cerca de três dias por semana durante seis anos e alegou que ele foi exposto ao amianto através da poeira nas roupas de seu tio, e que essa exposição o levou a contrair mesotelioma peritoneal, do qual morreu. A Suprema Corte da Califórnia, afirmou que os empregadores têm o dever de prevenir a exposição secundária ao amianto dos membros da família de seus funcionários, e a exposição para levar para casa através dos corpos e roupas dos funcionários era previsível.
No contexto da Covid-19, o demandante teria que provar que proteções inadequadas no local de trabalho e a transmissibilidade do SARS-CoV-2 tornariam previsível que os funcionários expostos no trabalho infectassem um ou mais de seus familiares. Como o SARS-CoV-2 poderia se espalhar para vários outros demandantes em potencial, além de membros da família, os réus provavelmente levantariam a possibilidade de uma responsabilidade ilimitada como motivo para rejeitar a demanda da "take home liability". No aludido caso Kesner, o tribunal abordou especificamente esta questão ao considerar que o dever de um empregador se estende apenas aos membros da família de um trabalhador, limitando os demandantes em potencial a uma categoria identificável de pessoas que, como uma classe, têm maior probabilidade de ter sofrido um dano legítimo e compensável.
b) Violação (breach) - a próxima etapa é determinar se o réu violou o padrão de conduta aplicável (standard of care). Nos Estados Unidos a regulação da OSHA (Occupational Safety and Health Administration) é utilizada como prova da conformidade dos empregadores aos padrões de atendimento, mantendo o local de trabalho livre de riscos graves reconhecidos, inclusive fornecendo os equipamentos de proteção individual necessários. Os padrões OSHA são admissíveis mesmo quando o demandante não era um empregado - como alguém visitando o local de trabalho ou um inspetor de segurança. Todavia, como inexistem normas federais da OSHA promulgadas para Covid-19, a admissibilidade de um padrão em litígios indenizatórios depende da lei estadual aplicável aos casos de negligência. Ilustrativamente, em 33 estados, a falha de um empregador em cumprir um padrão OSHA aplicável constitui "alguma evidência" de negligência, com efeito probatório variando entre uma dedução de negligência, uma negligência prima facie ou criando uma presunção juris tantum de negligência. O efeito da negligência per se é a de estabelecer a violação de um dever relevante, porém o demandante ainda é obrigado a provar o nexo causal e os danos, então o demandado terá espaço pra produzir outras defesas.
c) Nexo causal (causation) - Para que a responsabilidade seja imposta, a conduta negligente do réu deve ser a causa factual do dano sofrido pelo autor. Nos casos de exposição por "take home liability" há duas partes para o nexo causal. Primeiramente, a negligência do empregador deve ser a causa da infecção do funcionário. Como o SARS-CoV-2 é tão prevalente na comunidade, pode-se afirmar que o funcionário pode ter sido infectado de outras maneiras, como em locais públicos, no transporte público ou em reuniões públicas ou privadas. Em segundo lugar, a infecção do membro da família deve ter sido causada pela exposição ao funcionário infectado. Aqui, novamente, o membro da família também pode ter sido infectado por exposição a outros indivíduos. O fato é que a causalidade é mais problemática para a Covid-19 do que para a exposição ao amianto, porque a exposição ao coronavírus é mais comum e se dá em mais ambientes do que a exposição ao amianto.
O primeiro processo de "take home liability", movido em agosto/2020 pela filha de Esperanza Ugalde, de Illinois, resultou da alegação de que Ugalde morreu de Covid-19 que seu pai contraiu na fábrica de processamento de carne da Aurora Packing Co. Uma segunda demanda, também em Illinois, tem como autora Miriam Alvarez Reynoso, que contraiu COVID-19 de seu marido, um montador de peças, e teve lesões graves em múltiplos órgãos enquanto cuidava de seu marido. O proprietário da empresa afirmou que, mesmo antes da pandemia de Covid-19, os funcionários utilizavam rotineiramente máscaras por causa da poeira e também luvas, e que o empregado adoeceu antes de qualquer outra pessoa. Discussões como estas demonstram que a cadeia causal será o maior entrave às indenizações. Assim, indaga-se: demandantes terão que mostrar que as empresas não implementaram medidas de segurança - o que levou o trabalhador a adoecer e infectar um familiar - e que o trabalhador tomou precauções para não adoecer por meio de outras fontes?
A experiência do common law indica que não se exigirá que o demandante prove a sequência exata das exposições quando a negligência do réu consistir na violação de algum regulamento de segurança. Em tais circunstâncias, o tribunal dificilmente poderá ignorar o fato de que o dano poderia ter sido evitado se houvesse o devido cuidado por parte do réu. Também entram em cena questões de políticas públicas, incluindo responsabilidade moral, prevenção de danos futuros e disponibilidade de um seguro.
d) Dano (damage) - O demandante deve provar que a negligência do réu resultou em um dano legalmente reconhecido. Em casos de "take home liability" por amianto, os tribunais têm aplicado os princípios tradicionais da responsabilidade civil, embora muitos dos casos de apelação tenham sido decididos com base no reconhecimento de que se tratam de interesses merecedores de tutela pelo sistema. Porém, no contexto da Covid-19 os casos quase certamente seriam instaurados por familiares de funcionários que adoeceram gravemente ou por seus herdeiros em caso de morte. Os demandantes bem-sucedidos poderão inserir dentre os danos compensáveis a perda de renda, despesas médicas e indenização por dor e sofrimento (pain and suffering). Punitive damages são extraordinariamente admissíveis se a conduta do empregador foi intencional, arbitrária ou evidenciou um claro desprezo pelos direitos dos funcionários ou de seus familiares.
O fato é que trabalhadores essenciais inadequadamente protegidos e mal pagos e suas famílias sofrem excessivamente com a pandemia. Sua luta para sobreviver clínica e financeiramente muitas vezes é negligenciada em razão do protagonismo político do debate sobre a necessidade de medidas de saúde pública em confronto com a defesa das liberdades econômica e pessoais. Fundamental, nada obstante, é o efeito dissuasório da potencial responsabilidade civil sobre empregadores em suas obrigações para com seus trabalhadores. Se a preocupação sobre a possibilidade de indenização por danos para os familiares falecidos ou doentes de seus trabalhadores motivar alguns empregadores recalcitrantes a melhorar as condições de trabalho, ações de responsabilidade civil por "take home liability" serão responsáveis por salvar vidas.
*Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.