Direito Privado no Common Law

Por um equilíbrio entre a restrição e a liberdade contratual: as regras supletivas "aderentes" ("sticky default" rules) como uma via intermediária às regras imperativas e supletivas no Direito dos Contratos

Por um equilíbrio entre a restrição e a liberdade contratual.

22/2/2021

As regras contratuais são geralmente classificadas dicotomicamente como, de um lado, cogentes ou impositivas (mandatory) e, de outro, supletivas (default), sendo as primeiras inalteráveis e as últimas alteráveis pela vontade das partes. Ian Ayres, professor da Faculdade de Direito de Yale, propõe uma categoria intermediária: a "sticky default" rule, aqui traduzida como regra supletiva aderente ou "regra-padrão aderente"1. No texto desta coluna, apresento resumidamente essa interessante e alternativa figura de regulação contratual.

O fundamento usual para restrições impositivas à liberdade contratual é a proteção das pessoas dentro (paternalismo) ou fora (externalidades) do contrato. Ayres defende então que, quando as preocupações relativas às externalidades e ao paternalismo não são suficientes para justificar regras cogentes, os legisladores poderiam, por vezes, administrar e amenizar essas preocupações criando padrões aderentes, usando o que ele chama de regras “impeditivas” de alteração ("impeding" altering rules), as quais seletivamente obstam a modificação das regras supletivas, aumentando artificialmente sua dificuldade.2

Propriamente concebidas, as regras supletivas aderentes representam uma categoria intermediária entre as regras supletivas e as regras imperativas tradicionais. As primeiras tentam maximizar a autonomia privada. Os padrões aderentes, em oposição, tentam impedir algumas partes que, se não fossem pelas regras "impeditivas" de alteração, teriam optado por afastar a regra supletiva. Utilizando-se das regras supletivas aderentes, os legisladores querem impedir que algumas partes privadas alcancem resultados contratuais específicos. E, finalmente, as regras impositivas ou cogentes visam impedir todas as partes de alcançarem certos desfechos contratuais.3

Os padrões aderentes são, como afirma Ayres, metaforicamente uma espécie de "estação intermediária" no caminho para as normas cogentes. São regras quase impositivas que tentam produzir um obrigatório equilíbrio de separação, por meio do qual apenas um número reduzido de contratantes opta por consequências legais que os legisladores desfavorecem. Em comparação com as regras impositivas, os padrões aderentes, com suas regras impeditivas de alteração, garantem às partes contratantes maior liberdade. Mas, em comparação com as regras supletivas tradicionais, os padrões aderentes restringem a liberdade negocial das partes.4

É razoável, afirma Ian Ayres, questionar por que o legislador preferiria padrões aderentes a regras impositivas. Afinal, se o legislador está preocupado com externalidades negativas ou com a capacidade das partes contratantes de se protegerem de certos tipos de regulação que se afastem do regramento padrão, por que não simplesmente proibir de todo a contratação desses resultados tidos por desvantajosos? A resposta é, segundo Ayres, a heterogeneidade. As partes contratantes podem obter benefícios individuais diferentes com as contratações, podem produzir montantes distintos de externalidades, ou podem ainda gerar preocupações paternalistas heterogêneas. Afirma, então, que "heterogeneidade desses tipos pode produzir contextos nos quais é eficiente erguer barreiras impeditivas que desproporcionalmente permitem o afastamento da regra padrão onde há maiores benefícios privados, menores externalidades negativas, ou menores preocupações paternalistas." O objetivo das regras impeditivas de alteração é, portanto, bloquear desproporcionalmente o afastamento das regras supletivas mais socialmente problemáticas, ao mesmo tempo em que não impede as alterações socialmente menos problemáticas.5

Após apresentar um exemplo numérico para demonstrar a superior eficiência das regras supletivas aderentes em comparação com as normas supletivas e imperativas tradicionais6, Ian Ayres analisa as possíveis aplicações da estratégia desses padrões. Entre outros exemplos, afirma que "uma maneira direta de os formuladores de políticas induzirem o tipo de equilíbrio de separação buscado é impor diferentes regras de alteração a diferentes tipos de contratantes." Assim, "ao impor formalidades mais pesadas como pré-requisito para a contratação, a lei pode tornar mais difícil para os jovens ou os menos sofisticados alcançarem certos fins contratuais." Regras de alteração personalizadas que tratam diferentes contratados de maneira distinta podem tornar os padrões mais aderentes para subconjuntos de preocupação.7

No Brasil, a doutrina praticamente ainda não atentou para a figura das regras supletivas aderentes e o seu potencial para a regulação contratual.8 Nada obstante, apesar da falta de um maior reconhecimento e tratamento teórico, é possível identificar na legislação brasileira manifestações desse tipo de regra. Um exemplo, constante na Lei de Arbitragem, é a garantia do acesso ao poder judiciário. Por relevantes razões, o legislador quer manter o judiciário acessível a todos os jurisdicionados. E isso leva a que nutra uma certa reserva em relação às cláusulas compromissórias, por elas terem o efeito de "fechar" em parte para o contratante a "porta" de acesso ao judiciário. Nos contratos de consumo, em relação aos quais preocupações paternalistas são mais fortes, o legislador foi bem rigoroso e, por meio de regra cogente tradicional, simplesmente vedou a previsão de "utilização compulsória de arbitragem" (art. 51, VII, CDC). Contudo, em relação a contratos de adesão que não sejam de consumo, em relação aos quais as preocupações paternalistas existem mas são mais brandas, o legislador previu apenas a seguinte regra "impeditiva" de alteração: "Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula." (art. 4.º, § 2.º, Lei de Arbitragem). À luz dessa previsão, a possibilidade de acesso ao judiciário figura como um padrão aderente, cujo afastamento é possível, mas o legislador dificultou ao exigir dos contratantes a observância de formalidades adicionais.

A regra supletiva aderente merece maior estudo e divulgação em nosso meio. Caso bem apreendida e aplicada, tem o potencial de ser uma via para melhor conciliação de relevantes princípios tradicionalmente em tensão, como a liberdade negocial, de um lado, e a tutela da parte vulnerável, de outro.

*Daniel Dias é professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

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1 Bruno Bodart traduz "sticky default rules" como "regras-padra~o aderentes" (BODART, Bruno. Uma análise econômica do direito do consumidor: como leis consumeristas prejudicam os mais pobres sem consumidores. Economic Analysis of Law Review, v. 8, n. 1, p. 125, jan.-jun., 2017).

2 AYRES, Ian. Regulating Opt-Out: An Economic Theory of Altering Rules. The Yale Law Journal, vol. 121, p. 2084, 2012.

3 AYRES, op. cit., p. 2087.

4 AYRES, op. cit., p. 2087-2088.

5 AYRES, op. cit., p. 2088.

6 AYRES, op. cit., p. 2088 e ss.

7 AYRES, op. cit., p. 2093.

8 BODART, op. cit., p. 125.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.