"The single biggest problem with communication is the illusion that it has taken place"
(George Bernard Shaw)
Dezenas de milhares de pequenas empresas receberão pagamentos de seguro cobrindo perdas com o primeiro lockdown nacional, após decisão da Suprema Corte da Inglaterra favorável a pequenas empresas que recebam pagamentos decorrentes de apólices de seguro por interrupção de negócios. Trata-se do caso Financial Conduct Authority & Ors v Arch Insurance (UK) Ltd & Ors [2021] UKSC 1 (15 January 2021). O veredicto consumou uma vitória histórica, alcançando cerca de 60 seguradoras que venderam produtos semelhantes, sendo que todos os sinistros válidos serão liquidados o mais rápido possível. Para algumas empresas, pode ser uma tábua de salvação, permitindo que sobrevivam à crise do coronavírus. A decisão pode custar ao setor de seguros centenas de milhões de libras.
Do que se trata a decisão? O caso foi claramente uma espécie de "opinião consultiva" fornecida pela Suprema Corte a pedido de um regulador governamental (Financial Conduct Authority) e uma série de seguradoras relacionadas às questões sobre se as apólices de seguro de "business interruption" se aplicam aos custos incorridos pela suspensão/ encerramento de atividades de empresas devido as exigências do lockdown imposto pelo governo do Reino Unido. No lockdown da última primavera, um enorme conjunto de pequenas empresas fizeram reivindicações por meio de apólices de seguro contra interrupção de negócios por perda de rendimentos quando tiveram que fechar. Não obstante a comprovação do pagamento do prêmio anual, muitas seguradoras se recusaram a pagar, argumentando que apenas algumas apólices mais detalhadas possuíam cobertura para eventos sem precedentes, como a Covid-19. Assim, foi acordado que uma seleção de expressões incluídas em apólices deveria ser testada em tribunal, estabelecendo-se os parâmetros para o que seria considerado uma reivindicação válida.
A complexa decisão cobriu questões como cláusulas de doenças – "disease clauses" - se as empresas tiveram acesso negado às suas propriedades e o momento em que se verificou a perda dos ganhos econômicos. A decisão da Suprema Corte fornece orientação confiável para as apólices que estavam em discussão e, potencialmente, para outras semelhantes que não fizeram parte do litígio, alcançando um conjunto mais amplo de 700 apólices, potencialmente afetando 370.000 pequenas empresas, cobrindo os seus principais custos, sobremaneira os alugueis, e os prejuízos de pequenas empresas forçadas a fechar enquanto aguardavam a decisão.
Transcendendo o resultado econômico da decisão, não podemos ignorar a relevante discussão sobre o nexo causal. A maioria dos juízes considerou que, para fins de seguro, a abordagem aceita é perguntar se há “causa imediata” entre o evento e a apólice. A resposta para o contrato de seguro não será a mesma do que a obtida em questões de responsabilidade civil. O conceito de ser "uma causa" é distinto de outra questão, a saber, quais ligações causa-consequência são relevantes no contexto jurídico específico. No ilícito de negligência (o tort mais comum do common law), essa questão é rotulada como "remoteness of damage" (UK) ou “scope of responsibility/liability” (USA). Já na interpretação das apólices de seguro, esta questão separada recebeu o rótulo de: "proximate cause". Assim como nós, os ingleses também sofrem com o tema do nexo causal, existindo uma infindável contenda sobre o que delimita os termos “cause”, “contribution” e "responsibility".
A apólice em jogo diz o seguinte:
"Devemos indenizá-lo em relação à interrupção ou interferência com o negócio durante o período de indenização seguinte:
III. qualquer ocorrência de Doença notificável em um raio de 25 milhas das Instalações;
Período de Indenização significa o período durante o qual os resultados do negócio serão afetados em consequência da ocorrência "
A questão interpretativa crucial posta perante a UKSC era sobre o que "em consequência" significa neste contexto. Deve haver algum tipo de relação entre a doença e a interrupção do negócio. É necessária a interpretação para chegar a algum lugar, não apenas uma identificação do significado comum de "causa" ou "consequência", ou qualquer outra coisa.
Assim como no direito brasileiro, a causalidade é um pressuposto básico de responsabilidade civil no common law, seja quando o demandado pessoalmente causou o dano - impondo-se uma conexão causal entre a sua conduta e o dano - como também quando existe coautoria "joint tortfeasors", ou nas hipóteses de "vicarious liability", nas quais surge a responsabilidade indireta de algumas pessoas por conduta de outras que estão sob a sua subordinação legal ou contratual. Em qualquer caso, na Inglaterra, a causalidade factual demanda o "but-for test", uma pesquisa hipotética daquilo que aconteceria se o demandado não tivesse praticado um dado comportamento. Conforme o "but-for test" uma conduta é a causa de um dano quando, se não fosse por tal conduta, o dano não teria se verificado. Se a resposta ao teste for negativa, então a ação causou o dano.
Porém, a SCUK mostrou que nem sempre o "but-for test" é decisivo. Se o teste fosse seguido à risca, a cláusula de interrupção de negócios em relação à "doença", seria interpretada como tendo o significado de que a seguradora somente indenizaria pelos efeitos dos casos da Covid-19 que ocorrem dentro do raio especificado dentro das instalações seguradas - em torno de 25 milhas. Contudo, a reclamação dos segurados foi sobre as regras governamentais de fechamento de negócios, que obviamente afetaram toda a Inglaterra. Quer dizer, ao considerar qualquer caso singular de Covid-19, pode-se dizer que esse caso foi a causa das regras de lockdown? Em outras palavras, nenhum exemplo individual da doença pode ser considerado uma causa ("but-for") das regras de fechamento do governo. Se, como as seguradoras afirmam, o teste relevante ao considerar as medidas do governo tomadas em março de 2020 consiste em perguntar se o governo teria agido da mesma forma na suposição de que não houve casos de Covid-19 no raio de 25 milhas das instalações do segurado, mas todos os outros casos em outras partes do país ocorreram como de fato ocorreram, a resposta deve, em relação a qualquer apólice em particular, ser que provavelmente teria agido da mesma maneira.
Portanto, o ponto fulcral era se os casos específicos abrangidos pela cláusula "causavam" o dano. Tendo em mente que esta era uma questão de seguro e não de responsabilidade civil, a maioria dos julgadores abordou o caso através das lentes da teoria da "over-determined causation" - cujo exemplo clássico é o do caçador atingido por duas balas ao mesmo tempo, sendo que cada uma delas o teria matado. Um caso hipotético que foi discutido em argumentação oral, remete a 20 indivíduos que se combinam para empurrar um ônibus de um penhasco. Suponha que seja mostrado que apenas, 14 pessoas teriam sido necessárias para produzir esse resultado. Não se poderia dizer então que a participação de um determinado indivíduo era necessária ou suficiente para causar a destruição do ônibus. No entanto, parece apropriado descrever o envolvimento de cada pessoa como a causa da perda. Se considerarmos o teste "but for" como um limite mínimo que sempre deve ser ultrapassado se X for considerado uma causa de Y, alcançaríamos à conclusão absurda de que nenhuma das 14 ações causaram a destruição do ônibus.
O raciocínio é útil pois foi discutido – e aceito - que toda a Grã-Bretanha poderia ser coberta por cerca de 20 círculos de raio de 25 milhas. Suponhamos que a empresa X se encontra no círculo Y e que o governo não teria introduzido o lockdown se apenas um círculo tivesse Covid-19, mas o faria se, digamos, 13 círculos apresentassem o vírus. Então, sob esta abordagem, para mostrar que o COVID no círculo Y foi a causa do lockdown, tudo o que se precisa fazer é mostrar que o círculo Y é um elemento necessário de um conjunto suficiente (12 outros círculos e o círculo Y) que levou ao lockdown.
Nenhum caso de Covid-19 foi necessário para a ação do governo que levou à interrupção dos negócios, mas cada caso gerou uma contribuição real para a prevalência da doença que desencadeou essa ação, mesmo se essa prevalência fosse excessiva (ou seja, havia mais casos do que aconteceria foram necessários para acionar essa ação, de modo que nenhum caso fosse necessário sozinho).
A Suprema Corte foi persuadida pelo argumento de que, para uma boa construção das apólices de seguro, expressamente desencadeadas por doenças notificáveis (um pequeno conjunto das doenças humanas mais perigosas ou infecciosas, incluindo a SARS), a cláusula indenizatória deveria ter contemplado doenças que saiam do raio em questão e que a principal via de interrupção de negócios seria por meio da intervenção da autoridade pública em resposta à doença. Sendo esse o caso, a causa próxima que as partes pretendiam que fosse satisfeita, foi atendida pela ligação entre as ocorrências locais e a resposta nacional aos casos em todo país, mesmo que o teste "but-for" não tenha sido satisfeito. Ou seja, as partes não teriam pretendido que o teste fosse aplicado às ocorrências locais, mas apenas ao conjunto maior do qual elas fazem parte. Então, a apólice deve contemplar que o risco segurado (doença dentro do raio ou, em outras cláusulas, resposta da autoridade pública à doença) não concorre com outras consequências da fortuito subjacente (a própria Covid-19), o que significa que devem ser tratados como um único conjunto. As cláusulas de 25 milhas dão cobertura porque a sua natureza é para doenças que estarão dentro e fora da área e afetarão os negócios por meio de ação de autoridade pública ao reagir à doença generalizada.
Um outro aspecto que impacta no processo interpretativo dessas cláusulas envolve um questionamento das seguradoras sobre o exame dos contratos de "forma padronizada", sem que se levem em conta a matriz factual particular entre as partes. Ilustrativamente, tenhamos em conta um restaurante que pleiteie a cobertura segurada diante da pandemia. E quanto a outras contribuições para o fechamento ou prejuízo do restaurante? Pensemos em um restaurante que de qualquer maneira teria fechado (ou teria sua receita reduzida), porque seu "chef estrelado" estava prestes a sair, e assim o faz. Por que o evento da saída do chef estrela (não coberto pelo seguro) seria diferente do evento de todos os casos de Covid-19 fora do raio de 25 milhas (igualmente não coberto pelo seguro)? Ou então, se um restaurante não teria nenhuma receita de qualquer maneira, mesmo sem as restrições, porque é um péssimo restaurante. Aqui, claramente, não haveria prejuízo. Tratando-se de uma indenização contra a interrupção dos negócios, o contrafactual é o como estaria o restaurante se não tivesse havido interrupção. Consequentemente, se o estabelecimento fosse de péssima qualidade ou o chefe de cozinha tivesse ido embora de qualquer maneira, a indenização é menor do que se ele tivesse gerado uma alta receita e lucro.
A indagação é se a indenização refletirá a situação do restaurante que estivesse operando no mundo real, sem o impedimento de acesso, mas com o resto dos efeitos do Covid-19, ou sem o impedimento de acesso e sem os efeitos do Covid-19? A Suprema Corte interpretou as apólices com base na segunda alternativa. Portanto, é uma abordagem sutil de como as partes devem ter pretendido que a causalidade se aplicasse. Suprime-se o contrafactual da causa original (doença) e tudo que dela decorre, não apenas o "risco segurado" em sua acepção estrita.
Quanto ao conceito de causa, a Suprema Corte considerou que o risco segurado (por exemplo, um caso COVID dentro do raio geográfico relevante) foi uma causa da ação governamental. Ou seja, reconheceu-se que o conceito de ser 'uma causa' no direito privado é mais amplo do que ser um fator necessário (como no “but for test”), independentemente do contexto. Um fator é a causa de uma lesão se, sem ele a lesão não existiria ou uma contribuição real para um elemento dos requisitos positivos para a ocorrência da lesão não existiria.
A SCUK considerou que o risco segurado era uma causa de ação governamental e que não era intenção das partes que o vínculo de causa próxima entre esta causa e a ação governamental também fosse necessária. As partes devem ter contemplado doenças fora da área relevante; e isso indicou que o teste de causa próxima que as partes pretendiam exigir foi satisfeito pela ligação entre as ocorrências locais e a reação nacional, mesmo que o "but for test" não fosse satisfeito porque parece contrário à intenção negocial da cláusula, tratar de casos não segurados de doença notificável que ocorra fora do âmbito territorial da cobertura, privando o segurado de uma indenização por interrupção também causada por casos de doença que a apólice pretende cobrir.
Vê-se que tanto sob o viés teórico como o prático o nexo causal é um tema espinhoso em qualquer quadrante.