Direito Privado no Common Law

As políticas da responsabilidade civil no common law

As políticas da responsabilidade civil no common law.

14/12/2020

Em seu mais recente ensaio - "Key Ideas in Tort Law" (Hart Publishing, 2017), Peter Cane aborda nove ideias fundamentais na responsabilidade civil da Inglaterra. O emérito professor de Cambridge inicia o opúsculo frisando que todos os seus "insights" podem ser resumidos em uma verdadeira grande ideia: a responsabilidade civil é um fenômeno que tanto pode ser compreendido em seu interior – como fonte de orientação quanto a comportamentos desejáveis – como em seu exterior, tomando em consideração o seu caráter normativo e o ambiente político e social em que opera. Por essa perspectiva externa, a doutrina é apenas um aspecto da natureza social da "tort law", sendo a autoridade legal que faculta à responsabilidade civil desempenhar as funções sociais pretendidas. Compreender a doutrina é importante, mas o principal é apreciar o meio e contextos em que a doutrina se incorpora e ganha vida fora do papel. A compreensão do direito em toda a sua riqueza social e doutrinal nos ensina algo sobre a condição humana, sobre o que significa ser humano.

Para o leitor brasileiro, mesmo aquele acostumado ao estudo da responsabilidade civil, o melhor das 136 páginas da obra pode ser encontrado naquilo que é inusitado em nosso contexto: Peter Cane dedica o derradeiro capítulo ao exame dos fundamentos políticos da responsabilidade civil. "The Political Foundations of Tort Law". Em um primeiro olhar a associação entre direito e política é alvo de críticas, não apenas entre nós, que consideramos a responsabilidade civil uma temática restrita a direitos e deveres de indivíduos em suas relações jurídicas - relegando-se a atividade política ao âmbito da sociedade e grupos -, mas também entre respeitados jusfilósofos da Common Law, como Ernest Weinrib, para quem a "Tort law" concerne exclusivamente à justiça corretiva, enquanto a justiça distributiva é o campo da política por excelência. 

A principal missão da política é a distribuição entre os membros da sociedade dos benefícios e pesos da vida em comum. Nesse sentido, explica Peter Cane, a política da responsabilidade civil não se relaciona com a forma pela qual as lides individuais serão resolvidas, porém sobre os princípios e regras gerais que determinam como as demandas serão julgadas e quem serão os vencedores e perdedores. Uma boa ilustração brasileira se extraí da vigência do CDC. Antes de sua vigência, consumidores de produtos defeituosos eram "losers", porém, convertem-se em "winners" com a introdução da imputação objetiva pelo fato do produto e do serviço. Em uma síntese, pode-se afirmar que a responsabilidade civil realiza "justiça conforme a lei", se considerarmos o termo "justiça" como a correção do dano em casos individuais, enquanto o vocábulo "lei" se refere as regras que determinam como o custo de correção dos danos será distribuído.

No instigante debate sobre como idealmente devem ser desenhadas as regras e princípios da responsabilidade civil que serão aplicados aos casos individuais, surgem cinco políticas que pretendem, cada qual a seu modo, justificá-la como um mecanismo de (re)distribuição de riqueza fundada na base do risco.

A política da regulação consiste no uso de normas e instituições de modo instrumental, a fim de influenciar o nosso comportamento como potenciais agressores, minimizando a incidência de danos causados por tais condutas. Tal política gozou de muito prestígio nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 basicamente com a introdução da "minimização dos custos sociais de acidentes", ideia explorada por Guido Calabresi, como forma de trasladação da distribuição do custo do acidente. Ao invés de necessariamente recair sobre o aquele que culposamente causou dano, a lei deveria trasladar o custo para a parte que pudesse evitá-lo ao menor preço. Trata-se de um argumento político, cujo objetivo consiste em produzir uma desejável distribuição de custos e benefícios da vida social associados aos acidentes de tráfico.  Contudo, a aplicação prática de tal teoria resultaria na abolição da responsabilidade civil, partindo-se da premissa de que o "cheapest cost avoider" possa ser a própria vítima. A abordagem regulatória ainda é influente nos Estados Unidos, sendo bastante nos lembrarmos de filmes como A Civil Action (1998) ou Erin Brockovich (2000), cujas estórias exibem a responsabilidade civil sendo adotada como alternativa regulatória para a aplicação de regras de segurança de trabalho e standards de qualidade ambiental, pela via da substituição de ações individuais por um sistema de penalidades e ações coletivas. Nada obstante, "The politics of regulation" recebe pouco suporte em outras jurisdições: parte pelo fato de que estudos empíricos demonstram pouca evidência da capacidade da responsabilidade civil contribuir para a minimização de custos de acidentes e parte pela natural impossibilidade de conciliação entre a responsabilidade civil com um princípio de natureza econômica que suplante o tradicional princípio da culpa.

A segunda vertente consiste na política da compensação. Em contraste a Calabresi, o Professor Terence Ison assume que a compensação das vítimas – e não a minimização dos custos de acidentes – seria a primeira função da lei de delitos. Contudo, a implicação prática dessa abordagem é tão radical quanto a de Calabresi, pois na prática o académico canadense propõe a substituição da responsabilidade civil por um sistema universal de compensação "no-fault", baseado na provisão de um seguro social para doenças e lesões que causem deficiências e morte, independente de relutado ser atribuível a uma conduta danosa de outrem. Em 1974 foi introduzido na Nova Zelândia um sistema universal análogo ao proposto por Ison, cobrindo a maior parte das lesões acidentais (enquanto em outros países, como o Brasil, limitou-se ao setor de acidentes de trânsito). Pode-se dizer que no século XXI essa espécie de solução securitária para lidar com injúrias pessoais tem sido rejeitada, pois enquanto na década de 70 os debates políticos focavam em como substituir a tort law, o cerne da discussão atual consiste em como conviver com ela, resolvendo os seus mais significativos problemas.

Adiante, surge a política da responsabilidade. De acordo com ela, a responsabilidade civil somente (re)distribuirá recursos equitativamente, se os riscos também o forem. Tal e qual a política regulatória, a política de responsabilidade se atém a distribuição de riscos. Lado outro, tal e qual a política de compensação, a política de responsabilidade mira na distribuição de recursos. Porém, ela se distingue de ambas, pois enquanto as anteriores são unilaterais, a política da responsabilidade tende a ser duplamente distributiva: distribui riscos e recursos. A sua trajetória nos últimos 50 anos é ilustrada pelo trabalho do acadêmico inglês Patrick Atiyah. No livro "Accidents, compensation and the law" (1970), ele se posiciona pela abolição da responsabilidade civil para lesões pessoais, por considerá-la uma ferramenta regulatória ineficiente além de mecanismo compensatório extremamente oneroso e igualmente injusto, por distribuir recursos de forma aleatória entre grupos distintos de vítimas, naquilo que em obra posterior denominou Damages Lottery (1997). Para Atiyah o maior problema da responsabilidade civil seria a sua inclinação em favor de vítimas as expensas de ofensores, consequentemente distribuindo de forma injusta os riscos de danos e recursos entre os dois grupos. Criou-se uma "cultura de culpa" pela qual a primeira reação das pessoas a qualquer adversidade é a de culpar outrem - ao invés de se assumir responsável por sua própria saúde e segurança - convertendo a responsabilidade civil e a seguridade social em sistemas de dependência. Nesse espirito, o professor da Universidade de Oxford propôs a substituição do seguro de responsabilidade civil por um novo regime, pelo qual potenciais vítimas tomariam para si o encargo de se segurar contra danos (first-party insurance) causados por terceiros ao invés de se beneficiar de um seguro de responsabilidade civil contra terceiros (third-party insurance).

Basicamente, Calabresi, Ison e Atiyah são abolicionistas. Eles comungam a ideia de que a responsabilidade civil é um mecanismo deficiente para lidar com os problemas sociais derivados da proliferação de danos individuais e, para tanto, buscam substitui-la por regimes que alcançariam de forma mais satisfatória aqueles objetivos que cada qual considera como prioritários, sejam eles, a prevenção de acidentes, a compensação universal e a autorresponsabilização.

Como alternativa à radical proposta de abolição da "tort law", surgem os reformistas. Ilustrativamente, para alcançar o objetivo regulatório, os reformistas sugerem a ampliação do uso dos punitive damages, com a finalidade de enviar a potenciais ofensores uma sinalização mais forte do que aquela normalmente emitida pela simples compensação de danos, ou facilitando o acesso coletivo a ações em que diversos consumidores podem responsabilizar um fornecedor de produto defeituoso ou um poluidor, reduzindo custos e gerando publicidade. Já os reformistas que acreditam na finalidade compensatória, tendem a persuadir os legisladores à criação de novas categorias de indenização (tal como se deu no Brasil com a afirmação do dano existencial na reforma trabalhista) ou então a aumentar a quantificação das indenizações. Uma resposta neoliberal consiste na defesa de tetos e pisos indenizatórios, particularmente para desencorajar demandas de baixo valor, desproporcionalmente custosas para serem levadas adiante, bem como encorajar as pessoas a encontrar alternativas às demandas indenizatórias para protegê-las contra o risco de acidentes pessoais.

Essas reflexões nos remetem ao quarto aspecto das políticas da responsabilidade civil: A política da legislação. Para Peter Cane, o termo "politics" não envolve apenas a distribuição de riscos e danos, mas também a distribuição de poder, sobretudo o poder de legislar, que deve ser balanceado entre o congresso e os juízes. Nem o parlamento e tampouco o judiciário possuem isoladamente os recursos para criar as normas necessárias a satisfazer a "insaciável" demanda social. Esse delicado equilíbrio foi redefinido na Inglaterra nos últimos 50 (cinquenta) anos, pois se o common law é um típico processo criativo a partir da decisão de casos individuais, paulatinamente o legislador intervém por meio de estatutos para trazer maior racionalidade as decisões dos juízes, o quê demonstra a crescente influência dos políticos nas grandes atualizações legais, em detrimento do tradicional papel exercido pelos juízes. Em geral os abolicionistas são tolerantes com as intervenções parlamentares, enquanto os reformistas defendem que legisladores somente podem interferir quando juízes por si só forem incapazes de aperfeiçoar o sistema. Um notável exemplo dessa batalha por espaços é o debate legislativo sobre projetos de lei que objetivam dificultar a obtenção de indenização por vítimas de acidentes pessoais (alegando que o pêndulo entre potenciais ofendidos e ofensores oscilou nos últimos tempos demasiadamente em favor daqueles), com base na revisão de pressupostos da responsabilidade civil como o ilícito, nexo causal e as excludentes utilizáveis por potenciais causadores de danos. Um dos argumentos utilizados pelos que se contrapõem às reformas legais é o de que os próprios magistrados podem alcançar resultados semelhantes, sem a intervenção do legislador.

Em contraposição, a influência do judiciário cresceu enormemente na Europa e no Brasil. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e o common law com a jurisprudência: a realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. É claro que subsistem diferenças significativas, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas, torna-se cada vez mais insustentável.

Na Inglaterra nenhuma das quatro políticas mencionadas vem recebendo destaque nos últimos vinte anos. Ao invés da preocupação com os objetivos, conteúdo, ou a própria discussão sobre a existência da responsabilidade civil, o foco tem sido a política do litígio e o "acesso à justiça".  Demandas de responsabilidade civil são custosas, consumindo tempo. Ao contrário do pagamento de indenizações pelos demandados aos demandantes, as demandas em si consumem recursos de serviços profissionais e do sistema judiciário. Na Inglaterra dos anos oitenta, a regra básica era a de que as despesas legais do litigante vencedor seriam suportadas pelo derrotado, que na prática transferia ao seu segurador não apenas a indenização pelos danos pessoais, como também as despesas processuais. Porém, uma significativa proporção de demandantes tinha direito a uma "legal aid", uma espécie de pagamento da seguridade social para a cobertura de custos legais, fundamental para o funcionamento do sistema de responsabilidade civil. Se obtivesse êxito, o demandante teria que restituir uma parcela da indenização ao fundo de assistência jurídica; caso derrotado, normalmente nada pagaria. Contudo, a partir dos anos noventa e até hoje, duas tendências se afirmaram em termos de acesso à justiça: a revisão das regras processuais para a redução dos custos dos litígios e acomodação de acordos extrajudiciais e a gradual redução da assistência jurídica para ações derivadas de acidentes pessoais. Em substituição, aplica-se a "conditional-fee arrangement", pela qual advogados fornecem serviços a demandantes cuja remuneração é condicionada apenas à vitória, eliminando o peso dos custos iniciais do processo e o pagamento de custas se a demanda fracassar. Essa fundamental alteração criou uma nova indústria legal, as chamadas "claim management companies" que fornecem à parte uma série de serviços essenciais – advogados, médicos, experts em seguros – para a resolução de litígios, seguindo a premissa do "no-win, no fee-basis".

A disponibilidade e o custos dos serviços legais são questões políticas que envolvem a distribuição de ônus e bônus da vida em sociedade, formando parte inseparável da história da responsabilidade civil pois sem os serviços jurídicos provavelmente haveriam poucas demandas indenizatórias no setor extracontratual. A resolução de disputas não é certamente uma importante doutrina de responsabilidade civil, mas provavelmente é a mais visível.

*Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do MP/MG. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.