Direito Privado no Common Law

O vestido sexy e a análise do poder no Direito: Alguns temas do Critical Legal Studies

O vestido sexy e a análise do poder no Direito: Alguns temas do Critical Legal Studies.

7/12/2020

Introdução

O movimento Critical Legal Studies (CLS) emergiu na década de setenta nos Estados Unidos como uma escola teoria de pensamento jurídico crítico, no contexto da emancipação política de minorias étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual, dentre outras. O CLS atingiu sua maturidade na década de oitenta, tendo sido celebrado em um livro especializado no tema do professor de Stanford, Mark Kelman,1 e também em um artigo seminal do professor Roberto Mangabeira Unger sobre o movimento.2 Os temas da análise do poder no direito na Common Law tem recorrentes por força da influência da CLS.3 Tal temática também possui relevância para o debate jurídico brasileiro, na medida em que o direito é influenciado por assimetrias de poder, hierarquias sociais e dinâmicas culturais relativas à identidade dos sujeitos de poder. O presente artigo apresenta ao leitor brasileiro temas relevantes da CLS a partir do livro Sexy Dressing, do professor Duncan Kennedy, da Harvard Law School.4

Identidade de Grupo

Um tema central do livro consiste no estudo das identidades culturais de grupos de pessoas. A partir de uma perspectiva pós-colonialista sobre a identidade nacional estadunidense e de uma discussão sobre a obra do pensador italiano, Antonio Gramsci, analisa-se a interação de forças hegemônicas e contra-hegemônicas.5 Por um lado, os Estados Unidos se apresenta como sendo uma nação formada por uma heterogeneidade gerenciada, a partir de grupos diversos de imigrantes com origem étnico-racial distinta.6 Por outro lado, a política da organização dos locais de trabalho e do escritório é definida por uma rede complexa de relacionamentos de longo prazo, formada por uma série de alianças e oposições, dependências e confrontações.7 Na visão crítica de Duncan Kennedy, a sociedade é formalmente liberal, mas realmente repressiva, de maneira que é necessária uma ação mais enérgica e radical de defesa dos trabalhadores e das minorias oprimidas nos Estados Unidos do que a tradição liberal.8 Nesse contexto, é exaltado o movimento social das mulheres nos Estados Unidos como uma força política emergente de crítica cultural no contexto da política de gênero.9 A transformação racial decorrente do movimento dos direitos civis também configura um desafio da política social, mas a discriminação continua a operar de inúmeras maneiras, provocando injustiças individuais invisíveis e continuando com o racismo institucional.10

Uma defesa cultural pluralista da ação afirmativa

Com relação ao combate à opressão das minorias, surge uma proposta ambiciosa de ação afirmativa de larga escala para ampliar a participação democrática dos grupos tradicionalmente oprimidos e desenvolver a consciência coletiva a partir da identidade de grupo.11 O ponto de partida para sua argumentação crítica é a desconstrução de um fenômeno classificado como um “fundamentalismo meritocrático cego à cor”, isto é, um sistema de ideias sobre raça, mérito e a organização adequada das instituições acadêmicas.12 Tal sistema seria caracterizado pela atitude de que o mérito é uma questão de valor individual, de modo que pessoas sofrem discriminação quando o seu mérito é avaliado com base nesse fator discriminatório e não de acordo com o valor de suas características individuais.13 Tal discriminação racial é irracional e injusta porque nega ao indivíduo aquilo que lhe é devido conforme os padrões socialmente estabelecidos de merecimento.14 Segundo esse entendimento, as instituições acadêmicas deveriam maximizar a produção de conhecimento através da recompensa e empoderamento do mérito individual, distribuindo oportunidades e honrarias com base em critérios cegos quanto à raça, gênero, classe e quaisquer outros fatores que não estejam relacionados com o valor do trabalho produzido.15 Duncan Kennedy polemiza com esse entendimento, ao defender um aprofundamento dos programas de ação afirmativa, inclusive através da transformação deliberada das estruturas institucionais que possibilite que comunidades e classes sociais compartilhem da riqueza e do poder, ressaltando que as regras da meritocracia em uma economia de mercado não são suficientes.16

Sua defesa cultural pluralista da ação afirmativa significa que a competição de comunidades étnico-raciais e de classes sociais nos mercados, burocracias e no sistema político deve ser estruturada, de modo a que nenhuma comunidade ou classe seja sistematicamente subordinada.17 Do ponto de vista prático, as minorias deveriam ser significativamente representadas nas faculdades de direito, na medida em que as comunidades minoritárias não podem competir efetivamente por riqueza e poder sem que intelectuais que produzam certos tipos de conhecimento possam ajuda-los a obter aquilo que eles querem.18 O foco específico do processo de contratação para professores das faculdades de direito decorre do fato de que tais posições não se limitam a distribuir riqueza e poder ao ocupante daquela posição, mas também possuem papel decisivo na produção da ideologia.19 Tal iniciativa resultaria no crescimento de uma cultura jurídica de defesa das minorias e numa mudança de debates, posições e estilos que já foi inclusive indicada pela emergência da Teoria Racial Crítica (Critical Race Theory).20 Para Duncan Kennedy, atualmente existe uma comunidade culturalmente dominante em contato assimétrico com os demais grupos sociais que estão em uma posição de subordinação, de modo que as próprias regras do jogo privilegiam pessoas das comunidades dominantes independente dos recursos que possam trazer como indivíduos para a competição.21

O Vestido Sexy: Abuso Sexual e a Erotização da Dominação

O ensaio intitulado Sexual Abuse, Sexy Dressing, and the Eroticization of Domination também foi responsável pela referência do título do livro sobre o vestido sexy como sendo um símbolo para o poder e a política da identidade cultural.22 Por um lado, a visão convencional defende que o vestido sexy estaria ligado ao abuso sexual porque seria eventualmente sua causa.23 Por outro lado, o discurso feminista argumenta que o abuso sexual é um fator constitutivo do regime patriarcal que é reproduzido pela moda, de modo que é o abuso sexual que causa o vestido sexy e não o contrário.24 Duncan Kennedy se apresenta nesse debate como um homem branco de classe média – não pela perspectiva da vítima, mas de um potencial perpetrador com a esperança de mudança.25

Sua estratégica semiótica de análise do significado da conduta através do código proporcionado por roteiros passa pela interpretação das convenções sociais com relação às ações de cada ator em suas passagens dos roteiros.26 A análise de roteiros possibilita o foco em padrões particulares de conduta com importante significado social e em seus efeitos, a discussão de respostas típicas de mulheres ao abuso, a reflexão sobre medidas preventivas e o desenho de potenciais roteiros para escolha feminina na interação com o perpetrador do abuso.27 Do ponto de vista da análise jurídica, por sua vez, a análise de roteiros permite compreender se os regimes jurídicos relativos aos abusos sexuais proporcionam respostas para apenas uma série limitada de padrões de interação entre o perpetrador e a vítima.28 Em sua análise dos Estados Unidos, Duncan Kennedy considerou que a combinação dos limites do direito formal e as operações do sistema judicial resultavam na possibilidade de que homens perpetrassem abuso sexual de mulheres sem sanção oficial.29

O ensaio explora com profundidade as consequências desse direito que condena o abuso sexual em abstrato ao mesmo tempo em que muitos casos de prática abusiva são tolerados. Nesse sentido, o vestido sexy aparece como parte de um dress code que regula virtualmente todo o espaço social, definindo o grau de sexualidade permitido em cada local, mas sem suprimir a sexualidade feminina ou impor uma moralidade puritana.30 De acordo com o discurso convencional, a usuária do vestido sexy violaria esse código, modificando sua vestimenta, acrescentando uma carga sexual à sua roupa e provocando reações masculinas.31 De acordo com o discurso feminista, foram os próprios homens que construíram socialmente suas reações de excitação e coagem as mulheres para atender seus desejos e fetiches.32 O estudo de caso do vestido sexy proporciona uma análise original sobre o poder no direito.

A Análise do Poder no Direito

Além dos ensaios sobre ação afirmativa e sobre o abuso sexual, o livro Sexy Dressing contém um capítulo teórico sobre a análise do poder no direito.33 Inspirado pelo realismo jurídico de Robert Hale, Duncan Kennedy revisita a tese de que as regras de propriedade, contrato e responsabilidade civil são as ‘regras do jogo da disputa econômica’ e empoderam de maneira diferenciada e assimétrica o poder de barganha dos grupos sociais sobre os frutos da cooperação para a produção.34 Importante, além de resolver disputas de maneira que as pessoas consideram mais ou menos justa, as regras jurídicas possuem uma função distributiva, além de outros usos e efeitos (como legitimação, racionalização e apologia, dentre outros).35 Embora sejam aplicadas genericamente a todos os atores, as regras podem ser analisadas pelo seu impacto sobre as possibilidades dos jogadores.36 Uma transformação em um grande número de regras básicas em favor de uma das partes modificaria a relação de equilíbrio parcial e o resultado marginal decorrente do poder de barganha das partes.37

Em sua análise do poder no direito, Duncan Kennedy destaca o importante papel para a vida econômica das permissões para causar prejuízos a terceiros, salientando que toda competição é uma produção legalizada de danos, tal como a greve de trabalhadores e o boicote de consumidores.38 Conforme sua lição, "a invisibilidade das regras jurídicas básicas advém do fato de que quando os legisladores não fazem nada, parecem não ter nada a ver com o resultado".39 Contudo, como uma série de danos é proibida juridicamente, a inércia também possui um caráter de política pública e o direito é sempre responsável pelo resultado, ao menos no sentido abstrato de que poderia ter sido diferente.40 Sempre que existir um sistema jurídico, a escolha de qualquer conjunto de regras jurídicas básicas é também uma escolha de um conjunto de resultados distributivos, seja com muitas ou poucas regras.41 Além de estarem sujeitas a um equilíbrio instável, as regras jurídicas são influenciadas pelos fatores constantes de mudança provenientes do contexto e da evolução do conjunto existente de materiais jurídicos na medida em que novas situações aparecem.42 O sistema jurídico define as fronteiras do comportamento em milhares de situações em que não existem normas sociais internalizadas sobre o que é certo ou errado, funcionando como um mecanismo institucional legitimador que exerce força normativa sobre o cidadão e simultaneamente cria e reflete consenso.43 Na prática, cabe ao poder judiciário a responsabilidade pela definição das regras básicas e, no fundo, tal tarefa consiste em um processo decisório distributivo.44 Em síntese, o direito é decisivo na constituição do poder de barganha das pessoas através do domínio da vida privada e pública.45

Considerações finais

A análise do poder no direito foi colocada no centro do debate da academia estadunidense pelo movimento CLS, tendo pautado a agenda de pesquisadores em outros países da Common Law. Ao longo de suas cinco décadas, mesmo sem a pretensão de se tornar mainstream, o pensamento jurídico crítico teve impacto profundo sobre o direito. Particularmente no caso do direito privado, o papel do sistema jurídico no reequilíbrio de assimetrias de poder influenciou o surgimento de novos ramos do direito destinados a proteção de minorias. Além da teoria antidiscriminação, da ação afirmativa horizontal e do combate ao abuso sexual, surgiram inúmeras regras jurídicas protetivas. Contudo, roteiros de conduta de empresas e indivíduos nem sempre incorporam a boa fé, o dever de cuidado e a razoabilidade esperada para a proteção dos direitos dos vulneráveis. Cabe à academia o papel de fomentar o debate sobre o papel do poder no direito e aos seus operadores a missão de interpretar as regras jurídicas básicas de modo a desconstruir as assimetrias de poder injustas e opressoras. Até quando a lógica convencional do vestido sexy será reproduzida no discurso jurídico e vítimas serão injustamente apontadas como culpadas pelos danos sofridos para que os responsáveis não tenham que cumprir com suas obrigações? Até quando serão reproduzidas tais injustiças?

__________

1 KELMAN, Mark. A guide to critical legal studies. Harvard University Press, 1987.

2 UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983.

3 KENNEDY, Duncan. Legal education and the reproduction of hierarchy: a polemic against the system. NYU Press, 2007.

4 KENNEDY, Duncan. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995.

5 KENNEDY, Duncan. Radical Intellectuals in American Culture and Politics, or My Talk at the Gramsci Institute. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995.

6 Idem, página 14-15.

7 Idem.

8 Idem, p. 29.

9 Idem, p. 30-32.

10 Idem, p. 32-33.

11 KENNEDY, Duncan. A cultural pluralist case for affirmative action in legal academia. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995.

12 Idem, p. 34-35.

13 Idem, p. 38.

14 Idem.

15 Idem, p. 38-39.

16 Idem, p. 40-41.

17 Idem, p. 41.

18 Idem, p. 41.

19 Idem, p. 41-42.

20 Idem, p. 43.

21 Idem, p. 51.

22 Além de ser publicado como um capítulo do livro, o texto foi publicado anteriormente como um artigo acadêmico também: KENNEDY, Duncan; ABUSE, Sexual. Sexy Dressing and the Eroticization of Domination’(1992). New England Law Review, v. 26, p. 1309.

23 KENNEDY, Duncan; ABUSE, Sexual. Sexy Dressing and the Eroticization of Domination. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995.

24 Idem, p. 126.

25 Idem, p. 128-129.

26 Idem, p. 133.

27 Idem.

28 Idem.

29 Idem, p. 136-137.

30 Idem, p. 162.

31 Idem, p. 165-166.

32 Idem, p. 167.

33 Além de ser publicado como um capítulo do livro, o texto foi publicado anteriormente como um artigo acadêmico também: KENNEDY, Duncan. The stakes of law, or Hale and Foucault. Legal Stud. F., v. 15, p. 327, 1991.

34 KENNEDY, Duncan. The stakes of law, or Hale and Foucault. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995. 

35 Idem, p. 84.

36 Idem, p. 85.

37 Idem, p. 89.

38 Idem, p. 91.

39 Idem.

40 Idem.

41 Idem, p. 92.

42 Idem, p. 93.

43 Idem, p. 107.

44 Idem.

45 Idem, p. 124.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.