Introdução
"Por que os fornecedores elaboram contratos provendo benefícios de curto prazo e impondo custos de longo prazo? Por que preços iniciais baixos são tão comuns? Por que os telefones celulares são dados de graça, desde que o consumidor assine um contrato de serviço de dois anos? Por que os próprios contratos são tão complexos? Qual é a lógica por trás da formulação de contratos de cartão de crédito e de hipoteca com inúmeras taxas e taxas de juros calculadas por meio de fórmulas complexas?"1
Essas e outras questões são apresentadas e enfrentadas por Oren Bar-Gill, professor de Direito dos Contratos e de análise econômico-comportamental do Direito da Universidade de Harvard, em seu livro Seduction by Contract: Law, Economics, and Psychology in Consumer Contracts.
Nesta obra, o autor apresenta as razões que levam os fornecedores a formularem ofertas como as referidas acima, as suas consequências para o mercado de consumo e como o Direito pode intervir para combater essas práticas.
Apesar de formuladas com base no mercado americano, as questões referidas também poderiam ser levantadas em relação ao mercado brasileiro. Por isso, nesta coluna, apresentarei resumidamente algumas das ideias centrais trabalhadas por Bar-Gill em seu livro.
Forças do mercado e psicologia do consumidor
Segundo Oren Bar-Gill, o design dos contratos de consumo pode ser explicado como o "resultado da interação entre forças de mercado e psicologia do consumidor". Os consumidores são dotados de racionalidade imperfeita: suas decisões e escolhas são influenciadas por vieses e por percepções equivocadas. E mais: os erros que cometem são sistemáticos e previsíveis.2
Os fornecedores, por sua vez, reagem a esses erros. Eles desenvolvem produtos e serviços, formulam cláusulas contratuais e esquemas de precificação para maximizar não o verdadeiro benefício do seu produto ou serviço, mas "o benefício como percebido pelo consumidor de racionalidade imperfeita." O design contratual acaba induzindo os consumidores a adquirirem produtos e serviços que parecem mais atrativos do que eles de fato são. E, então, conclui Bar-Gill que "essa sedução pelo contrato resulta em uma falha comportamental de mercado."3
De acordo com o professor de Harvard, a competição entre fornecedores, por si só, não é capaz de solucionar este problema. Pelo contrário, ela pode até agravá-lo. Isto porque, em mercados competitivos, os vendedores acabam sendo forçados a alinhar o design contratual com a psicologia dos consumidores. Um vendedor mais bem intencionado que ofereça o que ele sabe ser a melhor oferta irá fatalmente perder espaço para um vendedor não tão bem intencionado que ofereça aquilo que o consumidor equivocadamente pensa ser a melhor oferta. Bar-Gill arremata então que a "competição força vendedores a explorar os vieses e percepções erradas dos seus consumidores."4
Muitos dos recursos ou características de design comuns em contratos de consumo podem ser explicados pela interação entre forças do mercado e psicologia do consumidor. A ordem temporal dos custos e benefícios – com benefícios antecipados e custos postergados – está ligada à miopia e otimismo do consumidor. E a complexidade está ligada à "racionalidade limitada, ao desafio de lembrar e agregar múltiplas dimensões de custos e benefícios." Esses dois recursos – postergação de custos e complexidade – servem ao propósito último de maximizar o proveito do produto ou serviço como percebido pelo consumidor de racionalidade imperfeita.5
Custos sociais da falha comportamental de mercado
Oren Bar-Gill revela que a referida falha comportamental de mercado ameaça, em vários níveis, o bem-estar social. Com o crescimento da referida complexidade contratual, eleva-se para o consumidor o custo de pesquisa e comparação das ofertas, o que resulta em entraves ou embaraços à competição.6
Por exemplo, os contratos de telefonia celular são muitas vezes formulados de maneira complexa. Os fornecedores se utilizam de precificações complicadas baseadas em tarifas de três partes – uma taxa mensal fixa, um número de minutos inclusos e uma taxa excedente para minutos usados além do limite do plano. Além disso, eles por vezes complicam ainda mais ao distinguir entre minutos de pico, noturnos e minutos de fim de semana, minutos usados para ligar para uma lista predefinida de "amigos" e minutos usados para ligar para todas as outras pessoas.7
Imagine-se então, propõe Oren Bar-Gill, um consumidor com racionalidade imperfeita tentando escolher entre tais complexos e multidimensionais contratos. "A tarefa é assustadora", a qual "muitos consumidores irão simplesmente evitar", afirma o autor. Mercados não funcionam bem quando os consumidores não vão em busca das melhores ofertas. Na falta de efetiva comparação, os preços elevam-se, o que prejudica os consumidores. Além disso, estes podem não findar pareados com os fornecedores que melhor se adequam às suas necessidades. O resultado é a redução da eficiência de mercado.8
A interação entre forças de mercado e psicologia do consumidor criam, portanto, uma falha de mercado, a qual impõe custos ao bem-estar social. A questão que se coloca, então, segundo Bar-Gill, é se a regulação jurídica poderia ajudar. Como resposta, o autor enfoca a técnica regulatória dos deveres de informação (disclosure mandates).9
Por deveres de informação mais eficazes
Em relação aos deveres de informação, Oren Bar-Gill chama atenção para o fato de que os já existentes e reconhecidos focam sobremaneira em informações relativas às características do produto ou do serviço: o que eles são e o que fazem. Ele, por sua vez, propõe que seja dada maior atenção à divulgação de informações relativas ao uso do produto ou serviço: como eles serão utilizados pelo consumidor.10
Em um contexto de escolha racional, a divulgação de informações relativas ao uso do produto ou serviço pode ser tido como dispensável. Afinal, pode-se esperar que consumidores racionais prevejam os seus futuros padrões de uso de maneira razoavelmente precisa ou, ao menos, que conheçam os seus padrões de uso melhor do que os fornecedores.11
A conclusão não é a mesma, todavia, quando se trabalha com uma perspectiva mais prática e realista, em que os consumidores são detentores de racionalidade imperfeita. Estes consumidores têm frequentemente uma percepção rasa e equívoca dos seus próprios padrões de uso futuro. Ilustrativamente, Bar-Gill formula as seguintes perguntas: "você sabe o quanto você fala no seu celular? Quantas mensagens você manda e recebe? Quantos megabytes de dados você usa? Você [sabe] quanto você vai pegar emprestado no seu cartão de crédito? Quão rápido você quitará o seu saldo devedor? Se você irá algum dia requisitar um adiantamento de dinheiro? Quão provavelmente você irá faltar com um pagamento e incorrer em taxa de atraso?"12
Em face disso, conclui o autor que "o consumidor de racionalidade imperfeita pode se beneficiar substancialmente da divulgação de informação relativa ao uso do produto – informação que vendedores, como as empresas de telefonia celular e emissores de cartão de crédito, fazem questão de saber."13
Além disso e por fim, como indica a racionalidade imperfeita dos consumidores, para ser efetiva, a regulação de deveres de informação deve seguir uma de duas estratégias: de um lado, informações simples que têm os próprios consumidores como destinatários. O objetivo aqui é desenvolver informações agregadas e unidimensionais que facilitem a comparação entre produtos ou serviços concorrentes. Por exemplo, as empresas de telefonia móvel seriam obrigadas a divulgar o custo anual total de uso de um celular. E a divulgação combinaria tanto informações relativas a características do serviço em si quanto informações ligadas ao seu uso. O custo anual do serviço de telefonia combinaria então informações ligadas às taxas do serviço com informações ligadas ao padrão de uso do consumidor. Divulgações simples e agregadas como essa auxiliariam consumidores de racionalidade imperfeita a fazerem escolhas melhores.14
Por outro lado, as divulgações poderiam ter como destinatários não os consumidores, mas sim intermediários mais sofisticados. Dessa maneira, as informações poderiam ser mais amplas e complexas. Imagine-se, por exemplo, um consumidor interessado em trocar de empresa de telefonia móvel e um intermediário que possa ajudá-lo a encontrar o melhor plano para as suas necessidades. O intermediário já dispõe das informações sobre os planos oferecidos pelas empresas presentes no mercado. Mas, como o plano ideal depende dos usos e necessidades de cada usuário, falta ao intermediário as informações sobre os padrões de uso do consumidor em questão. A empresa atual deste consumidor, por sua vez, tem estas informações. A solução, portanto, seria impor a essa empresa a obrigação de divulgar eletronicamente essa informação para que o consumidor possa encaminhá-la para o intermediário. Com esses dados, este estaria enfim em condições ideais para poder oferecer ao consumidor a melhor orientação possível.15
*Daniel Dias é professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.
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1 BAR-GILL, Oren. Seduction by Contract: Law, Economics, and Psychology in Consumer Contracts. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 1.
2 BAR-GILL, op. cit., p. 2.
3 BAR-GILL, op. cit., p. 2.
4 BAR-GILL, op. cit., p. 2.
5 BAR-GILL, op. cit., p. 2.
6 BAR-GILL, op. cit., p. 3.
7 BAR-GILL, op. cit., p. 1.
8 BAR-GILL, op. cit., p. 3.
9 BAR-GILL, op. cit., p. 4.
10 BAR-GILL, op. cit., p. 4.
11 BAR-GILL, op. cit., p. 4.
12 BAR-GILL, op. cit., p. 4.
13 BAR-GILL, op. cit., p. 4.
14 BAR-GILL, op. cit., p. 4-5.
15 BAR-GILL, op. cit., p. 5.