Uma reflexão sobre a convergência entre a Civil Law e a Common Law.
1. O Espelho Comparativo
Essa é a minha primeira publicação nessa nossa coluna semanal sobre o Direito Privado na Common Law, compartilhada com os estimados colegas de IBERC, os professores Nelson Rosenvald, Thaís Pascoaloto Venturi e Daniel Dias. Dentro da proposta de compartilhamento de experiências e construção de pontes com a perspectiva anglo-americana proporcionada nesse espaço privilegiado de debates pelo Migalhas, o aspecto reflexivo da perspectiva comparada é essencial. Na travessia entre as tradições das famílias da Civil Law e da Common Law, aprendemos muito não somente sobre o direito anglo-americano, mas principalmente sobre nosso próprio direito. Aprendendo sobre outra jurisdição, também aprendemos sobre o direito da nossa própria jurisdição. Um interessante ponto de partida para a reflexão através do espelho comparativo consiste no livro The Civil Law Tradition: An Introduction to The Legal Systems of Europe and Latin America. Escrita em coautoria por John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo, a terceira edição do livro foi fruto do diálogo entre juristas formados nas duas tradições como colegas na Stanford Law School e traz uma visão sobre a Civil Law a partir das lentes da Common Law.
2. As Fontes do Direito
A leitura do livro revela, por exemplo, que o fascínio exercido pelo debate sobre as fontes do direito não é compartilhado pela Common Law. Merryman e Pérez-Perdomo anotam que não existe uma teoria hierárquica e sistemática a esse respeito, mas que as leis, os costumes e as decisões judiciais são consideradas de maneira assistemática1. Tal diferença é atribuída à rejeição do jus commune no continente europeu após o período revolucionário com predomínio do estatismo, nacionalismo, positivismo e da soberania2. Na Inglaterra, ao contrário, o direito comum – ou seja, common law – foi uma força positiva na emergência do Estado-Nação e foi abraçado como símbolo de identidade nacional, não sendo considerada necessária a elaboração de novo sistema jurídico codificado3.
3. Os Códigos e a Codificação
A explicação para o caráter racionalista e sistemático do Código Napoleônico, contudo, teria partido do desejo de que o sistema jurídico fosse simples, direto e não-técnico – evitando-se a necessidade de advogados e de complicações técnicas atribuídas aos profissionais do direito4. Alguns revolucionários franceses também nutriam o desejo de que fosse negado aos juízes o poder de interpretar as leis, por conta da sua experiência anterior com as cortes reais pré-revolucionárias5. Novamente, as diferenças são marcantes com relação à tradição da Common Law, em que existem códigos, mas sem a ideologia revolucionária de ruptura com o passado, sem a pretensão de completude em termos de proporcionar soluções para todas as questões e sem a mesma realidade cultural de definir a base jurídica para qualquer caso no interior do código6.
4. Os juízes
Como consequência dessas diferenças, do desenvolvimento do direito moldado pelos juízes, dos amplos poderes interpretativos e da tradição de controle judicial da atividade administrativa, os magistrados se tornaram figuras de destaque e até mesmo heróis culturais nos países da Common Law7. Logo, para eles, existe mais uma diferença significativa com relação à Civil Law, em que os magistrados são funcionários públicos de carreira formados através da experiência de progressão funcional na magistratura pelo desempenho preciso das funções judiciais como operadores de uma máquina judiciária desenhada e construída pelos legisladores8. Nesse contexto, Merryman e Pérez-Perdomo salientavam que os juízes não seriam heróis culturais na Civil Law, na medida em que o serviço judicial seria burocrático e sua função seria limitada, mecânica e não-criativa9.
5. A Certeza do Direito
O olhar comparativo de Merryman e Pérez-Perdomo ressalta a grande ênfase que a literatura da Civil Law dá para a importância da certeza do direito como espécie de valor supremo, dogma inquestionável e objetivo fundamental10. Na visão dos professores da Stanford Law School, a ideia de que a certeza do direito seja tão proeminente é reflexo da desconfiança com relação aos juízes, tornando o processo de interpretação e aplicação do direito tão automático quanto possível e proibindo que os juízes também façam o direito11. Por outro lado, na Common Law, o ideal de certeza do direito é um dentre um número de valores jurídicos, que eventualmente entram em conflito recíproco, existindo a possibilidade de maior flexibilidade e de juízo de equidade12.
6. A Ciência do Direito
A ideia de que o direito é uma ciência sistemática também é típica da Civil Law, que considera a ciência do direito formada por um corpo integrado de princípios descobertos, que devem ser coerentes com a unidade do sistema jurídico para serem acomodados e que a preservação dos valores sistemáticos deve ser um fator de consideração relevante para a crítica e a reforma do direito13. Merryman e Pérez-Perdomo explicam que para o jurista anglo-americano, é surpreendente que o alto grau de abstração descarte o contexto histórico e factual, que os princípios percam sua concretude e que o cientista jurídico esteja mais preocupado com o desenvolvimento de uma estrutura teórica científica do que com a solução de problemas concretos14. Aliás, o cientista do direito é normalmente um acadêmico, que ocupa na Civil Law o papel de protagonista que o magistrado possui na Common Law15.
7. A Convergência entre Civil Law e Common Law
A esta altura, o leitor certamente se questiona sobre essas diferenças. É que existe no direito brasileiro tendência crescente de valorização dos precedentes judiciais, inclusive usados com maior frequência para uniformização das decisões judiciais. Certos casos são decididos a partir de normas jurídicas extraídas de uma construção interpretativa que transcendeu os limites da codificação. Atualmente, o público conhece o nome de Ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros magistrados que se tornaram figuras proeminentes. Também se percebe cada vez mais o caráter mitológico da ideia de certeza do direito – problematizada pela complexidade da sociedade, pelas mutações do direito e pela possibilidade de juízos baseados na ideia de justiça ou de eficiência. A perspectiva dogmática da ciência do direito convive com a visão pragmática do direito como experiência, técnica para solução de conflitos e o realismo jurídico.
De fato, existe uma tendência de profundas transformações e de convergência entre a Civil Law e a Common Law por conta de influências recíprocas. No final do livro, Merryman e Pérez-Perdomo se referem à transformação simbolizada pelo declínio da codificação e pelo fortalecimento das constituições16. Em termos de decodificação, tem proliferado o surgimento de leis especiais, de regimes jurídicos especializados e de microssistemas jurídicos cujo conteúdo difere ideologicamente das provisões do Código Civil e pode mesmo parecer incompatível com ele17. Tal declínio do papel do Poder Legislativo coincide com o crescimento da atividade regulatória, normativa e decisória da administração pública, tendo o direito administrativo se tornado um ramo do direito distanciado da sua fonte legislativa e cujos efeitos atingem direta e profundamente a vida dos cidadãos18. Além disso, o panorama do direito na Civil Law foi transformado profundamente pelo tratamento dado às constituições como fonte normativa superior do direito e o aumento de oportunidades para se questionar a constitucionalidade de atos legislativos e outros atos oficiais19. Com relação a esse ponto, Merryman e Pérez-Perdomo se referem ao fato de que o fortalecimento das constituições pode ser analisado como uma forma adicional de decodificação, eis que os Códigos Civis não exercem mais a função de lei primordial e constitutiva das relações jurídicas na sociedade e que tal função teria saído da mais privada de todas as fontes de direito privado – o Código Civil – para a mais pública de todas as fontes de direito público – a Constituição20.
No caso brasileiro, a fragmentação do Código Civil se sobressai com a proliferação de regimes jurídicos próprios em matéria trabalhista, agrária, urbanista, consumerista, de propriedade intelectual, além de inúmeras legislações especiais. Além disso, não somente com o advento das agências regulares, mas também com o crescimento da atividade administrativa estatal, verificou-se uma ampliação da abrangência e do alcance do direito administrativo sobre a vida do cidadão. Finalmente, com o advento da Constituição de 1988 e as transformações no âmbito do Direito Civil Constitucional desde então, verifica-se também o predomínio da constituição como a lei primordial e constitutiva das relações jurídicas na sociedade brasileira. Tais fenômenos não ocorreram de maneira isolada no direito brasileiro, mas como parte de um processo histórico que promoveu transformações análogas em outros países da Civil Law.
8. Considerações Finais
A observação do espelho comparativo pode ser bastante rica, não somente para o nosso aprendizado sobre a Common Law, mas também sobre a Civil Law. É que o estudo comparado tem como ponto de partida a compreensão de si próprio e de seu próprio sistema jurídico. Por outro lado, vivemos um momento de intensa interação e trocas de experiência entre acadêmicos. Assim, características apresentadas como de uma das famílias podem se tornar simplificações conceituais e não corresponder à complexa realidade das influências recíprocas entre Civil Law e Common Law.
Nesse sentido, The Civil Law Tradition: An Introduction to The Legal Systems of Europe and Latin America fornece um bom ponto de partida para a reflexão sobre a tendência de convergência atual e sobre a importância do aprofundamento do estudo comparado. A compreensão do direito como experiência permite uma reflexão sobre seus rumos, discussões sobre reformas, inovações e mutações do direito. Esse espelho comparativo certamente será ocupado com uma série de novas colunas com imagens e reflexões relevantes para o nosso direito a partir da comparação com a experiência anglo-americana.
*Pedro Fortes é professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e promotor de Justiça no MP/RJ. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi professor visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.
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1 John Merryman e Rogelio Perez-Perdomo, The Civil Law Tradition: An Introduction to the Legal Systems of Europe and Latin America. Stanford University Press, 3ª edição (2006), p. 26.
2 Idem, p. 23.
3 Idem.
4 Idem, p. 29.
5 Idem, p. 30.
6 Idem, p. 33.
7 Idem, p. 34.
8 Idem, p. 36.
9 Idem, p. 38.
10 Idem, p. 48.
11 Idem, p. 48.
12 Idem, p. 49-50.
13 Idem, p. 63.
14 Idem, p. 65.
15 Idem, p. 66.
16 Idem, p. 152.
17 Idem.
18 Idem, p. 156.
19 Idem, p. 157.
20 Idem, p. 158.