Texto de Autoria de Daniel Dias
1. Introdução
Este é o meu texto de estreia na coluna Direito Privado no Common Law, publicada semanalmente no Portal Migalhas, sob coordenação dos colegas Nelson Rosenvald, Pedro Fortes, Thais Pascoaloto e minha. É uma alegria dispor deste novo espaço para poder analisar e divulgar questões jurídicas dos países de common law e suas interfaces com o Direito brasileiro.
Aproveito essa estreia para tratar de tema que me é especialmente caro: a mitigação de danos. O estudo e aplicação deste instituto no Direito brasileiro é marcado por forte influência da mitigation of damages, instituto presente em países de common law. Alguns autores brasileiros defendem, inclusive, que a mitigação de danos seria fruto da recepção da mitigation of damages no Direito brasileiro. Além disso, é bastante comum a referência, entre nós, em doutrina e jurisprudência, à mitigação de danos por meio da expressão em inglês duty to mitigate the loss.
Por conta disso, nessa coluna analiso os institutos da mitigation of damages e da mitigação de danos, apresentando semelhanças e sobretudo diferenças entre eles. A análise tem por focos a noção, os pressupostos e o âmbito de aplicação dos institutos.
2. Noção
Em países do sistema de common law entende-se que o instituto da mitigation of damages é composto de três regras. A primeira delas é conhecida como “regra das consequências evitáveis” (rule of avoidable consequences). A segunda prevê que o lesado pode exigir reembolso por custos razoáveis incorridos ao tentar mitigar danos, independentemente do sucesso de tal tentativa. A terceira regra, também conhecida como “regra das consequências evitadas” (rule of avoided consequences), afirma que o lesante não é responsável por perdas que o lesado conseguiu evitar ou mitigar, independentemente de as circunstâncias do caso indicarem ou não que esse tinha de fazê-lo.1
No Direito brasileiro, o instituto da mitigação de danos não é composto por tantas regras. Diferentemente, o seu conteúdo corresponde essencialmente à primeira das três componentes da mitigation of damages. Entre nós, o conteúdo da mitigação de danos aproxima-se apenas da rule of avoidable consequences – embora não haja identidade, como fica claro pelas diferenças apresentadas abaixo.
No Brasil, a segunda regra do instituto do sistema anglo-americano não goza de autonomia. O lesante responde pelos custos razoáveis despendidos pelo lesado para mitigar danos, porque esse dispêndio não representa dano que a vítima culposamente deixou de evitar.
E a terceira regra (rule of avoided consequences) não encontra plena aplicação no Direito brasileiro. Os casos em que o lesado evita o dano resultante de evento danoso, mesmo sem caber a ele fazê-lo, podem levar a duas soluções. Via de regra, o lesado realmente não terá direito a indenização, por não haver dano. Mas pode acontecer de ele ter sim esse direito, como no caso de ofensa à saúde pela qual o ofendido não consegue mais exercer o seu trabalho habitual, mas, mediante esforço excessivo, consegue desenvolver outra atividade remunerada. Neste caso, apesar de o dano à sua remuneração ter sido evitado ou mitigado, o lesado, por conta desse esforço excessivo, permanece tendo direito à pensão integral no valor da sua remuneração.2
3. Pressupostos de aplicação
Os institutos da mitigation of damages e mitigação de danos apresentam diferenças quanto aos pressupostos de aplicação. A aplicação da mitigação de danos pressupõe a presença conjunta de, entre outros, dois elementos: evento danoso e comportamento imputável do lesado de não evitação do próprio dano.3
Em relação ao primeiro pressuposto, uma primeira diferença entre os institutos pode ser ilustrada por meio do famoso caso americano Rockingham City. v. Luten Bridge Co.: a empresa Luten Bridge Co. foi contratada pelo munícipio de Rockingham para construir uma determinada ponte. Algum tempo depois da celebração do contrato, mas antes que as obras começassem, o município notificou a empresa, declarando a sua vontade de que a ponte não fosse mais construída. Apesar disso, a empresa realizou a obra e ajuizou ação contra o município para exigir o pagamento do valor acordado. O tribunal entendeu que, depois da referida notificação do município, a empresa autora não podia proceder à construção e exigir o preço do contrato, com o seguinte argumento: “É verdade que o município não tinha o direito de resilir unilateralmente o contrato, e a notificação dada ao demandante constituiu inadimplemento da sua parte; mas depois de a autora ter tomado conhecimento do inadimplemento, era seu dever não fazer nada para aumentar os danos que dele decorrem.” Aplicando a rule of avoidable consequences, o tribunal concluiu então que a empresa autora teria a sua indenização limitada às perdas e danos decorrentes do inadimplemento à data da notificação, não abrangendo os demais danos decorrentes da construção que ela podia ter evitado.4
No Direito brasileiro, no entanto, um caso como este não seria solucionado pela aplicação da mitigação de danos, exatamente por falta do pressuposto do evento danoso (inadimplemento contratual). Isso porque o nosso Código Civil autoriza que o dono da obra interrompa a construção a qualquer tempo, “desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra” (art. 623, CC). No Brasil, uma empresa como a Luten Bridge Co. teria apenas direito a essa indenização e não ao valor integral pela execução da obra. Por falta de inadimplemento, as regras gerais de perdas e danos (arts. 402 a 405 CC) simplesmente não teriam aplicação.
O segundo pressuposto é o do comportamento imputável de não evitação do lesado. Sob influência da dogmática desenvolvida no sistema anglo-americano, a doutrina brasileira tem defendido a adoção do critério da razoabilidade.5 Esse é o critério previsto, por exemplo, pela Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacionais (CISG), segundo o qual o credor tem de adotar “medidas razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento” (art. 77).
Esse critério é, porém, analiticamente pobre. Nele estão concentrados, sob uma bitola única de “razoabilidade”, juízos distintos: o de violação de incumbência (análogo da ilicitude) e o de culpa (previsibilidade e evitabilidade do dano). Além disso, a própria verificação se em um determinado caso o credor tinha ou não a incumbência de agir para evitar o dano, desdobra-se em três critérios: a conduta exigível precisa ser apta, necessária e adequada para evitar o dano.6 No curto espaço dessa coluna é possível apenas ilustrar a complexidade das questões envolvidas na análise desses critérios. Por exemplo, uma medida de evitação do próprio dano é desnecessária quando o bem jurídico do credor já está suficientemente protegido pelo devedor. Nesse caso, a evitação do dano recai exclusivamente em seu campo de responsabilidade. Essa delimitação tem especial relevância prática quando o devedor assumiu contratualmente em face do credor a responsabilidade exclusiva de proteger os bens jurídicos e interesses do credor, ou quando essa responsabilidade resulta da finalidade do contrato.7
4. Âmbito de aplicação
Em relação ao âmbito de aplicação, a mitigation of damages é aplicada também a casos sobre os quais a mitigação de danos não incide pelo fato de, apesar de terem sido preenchidos os seus pressupostos, a sua aplicação ser afastada pela incidência de regramento mais específico. Por exemplo, em caso de mora do credor, a aplicação da mitigação de danos é restringida pela incidência do regramento mais específico presente no art. 400 do CC.
Um bom exemplo para ilustrar essa questão é um caso real que, no Direito inglês, deu azo à aplicação da rule of avoidable consequences. O autor havia sido contratado para transportar uns cavalos a uma determinada cidade e entregá-los em local a ser designado pelo réu. Na data combinada, o demandante chegou à cidade, mas o réu demorou seis horas para informar o lugar da entrega. Durante esse período, os cavalos permaneceram em pé, ao ar livre, o que elevou a temperatura corpórea dos animais e acabou levando-os à morte pouco tempo depois. O transportador ajuizou ação pedindo indenização, mas o tribunal julgou o pedido improcedente sob o argumento de que havia sido insensatez do autor em deixar os cavalos nas referidas condições.8 O fundamento da decisão foi a mitigation of damages: uma vez que o transportador poderia ter evitado a morte dos cavalos mediante comportamento tido por razoável, ele não teria direito de ser indenizado.9
No Brasil, um caso como esse levaria à mesma conclusão de irresponsabilidade do contratante pela morte do cavalo. A fundamentação, porém, seria diferente, não sendo necessário recorrer à mitigação de danos. Nesse caso, a morte do cavalo é dano decorrente de mora do credor, uma vez que o transportador havia feito tudo o que devia, mas o contratante faltou com a sua parte, impedindo aquele de cumprir sua obrigação e gerando a situação que levaria à morte dos animais. Nesse caso, a irresponsabilidade do contratante teria por base o fato de no Brasil o credor em mora não responder pelos danos a que sua mora dá causa. Não seria, portanto, necessário recorrer ao instituto de mitigação de danos para justificar a conclusão de que o credor em mora não responderia pela morte do cavalo.
Um outro exemplo das diferenças de aplicação entre os institutos brasileiro e anglo-americano é o caso Parker vs. Twentieth Century-Fox Film Corporation que nos EUA levantou o debate sobre a incidência da mitigation of damages. No caso, uma atriz famosa foi contratada por um grande estúdio para atuar no papel principal em uma produção musical que seria filmada na Califórnia. O contrato previa ainda que a atriz teria poder de aprovação em relação ao diretor e ao roteirista do filme. Meses após o contrato ter sido assinado, o estúdio comunicou à atriz que o filme não seria mais produzido e ofereceu a ela o papel de atriz principal em outro filme, um drama do “tipo faroeste” que seria filmado na Austrália. Além disso, nesse novo filme, o diretor e roteirista não teriam de ser aprovados pela atriz. Insatisfeita, ela rejeitou essa proposta e ajuizou uma ação em face do estúdio, por meio da qual objetivava obter o valor acordado para atuar no filme que não seria mais produzido. O estúdio alegou em defesa que a autora não fazia jus a nenhuma retribuição, porque ela teria deliberadamente deixado de mitigar o próprio prejuízo ao ter desarrazoadamente recusado a oferta para atuar no papel principal do filme de faroeste.10
Contudo, no Direito brasileiro, a mitigação de danos não seria aplicável a um caso como esse, em virtude das regras específicas da extinção do contrato de prestação de serviço. À luz do nosso Código Civil, em face da recusa da atriz em renegociar os termos do contrato, o estúdio não teria outra saída que não a de despedi-la sem justa causa. E como não havia ainda nenhuma retribuição vencida, uma vez que a execução do contrato ainda não havia se iniciado, de acordo com o art. 603 do CC, a atriz poderia exigir o valor correspondente à metade da retribuição prevista no contrato a título de perdas e danos. Esse é um caso de “prefixação” legal do valor das perdas e danos.11
Ou seja, esta regra corresponde a uma decisão do legislador, fruto da ponderação dos interesses das partes envolvidas: de um lado, o interesse do tomador do serviço em não obter uma prestação que ele não mais quer que seja cumprida e em não pagar o valor integral do contrato, uma vez que não obterá, ao menos não integralmente, a prestação do serviço; de outro lado, o interesse do prestador de serviço de ser indenizado, uma vez que contava que iria prestar o serviço e receber o valor acordado. Ao estabelecer que a indenização é no valor de metade da retribuição não vencida, o legislador fez a acomodação que entendeu mais justa e que contemplaria da melhor maneira os interesses envolvidos. Já se sabia que, mesmo sem prestar o serviço, o prestador de serviço receberia indenização. Mas é exatamente por que ele não presta o serviço que ele recebe apenas metade. Não se deve, portanto, querer afastar a “ponderação” do legislador para reduzir ainda mais o valor da indenização do prestador de serviço, sob o argumento de que ele poderia ter celebrado contrato com terceiro, ou mesmo aceitado proposta diversa do contratante, e assim evitado o próprio dano.
5. Conclusão
Os institutos da mitigation of damages e mitigação de danos aproximam-se pelo fato de ambos preverem a irressarcibilidade do dano evitável pelo lesado. Contudo, para além dessa proximidade mais geral, as diferenças são muitas.
Em primeiro lugar, a mitigação de danos assemelha-se apenas à primeira das três regras componentes da mitigation of damages, que é a rule of avoidable consequences. Além disso, diversos casos que são solucionados nos países de common law por meio da aplicação da mitigation of damages não o seriam no Brasil pela mitigação de danos. As diferenças, detalhadas acima, são em geral de duas ordens: relativas aos pressupostos de incidência e ao âmbito de aplicação.
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2- Para mais detalhes, ver: Daniel Dias. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 321 ss.
3- Para mais detalhes, ver: Dias, op. cit., p. 263 ss.
4- Rockingham City. v. Luten Bridge Co., 35 F.2d 301, 302 (4th Cir. 1929).
5- Entre outros, ver: Christian Lopes. Mitigação dos prejuízos no direito contratual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 202 ss.
6- Em termos mais amplos, ver: Dirk Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit des Geschädigten im Privatrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 311.
7- Os seguintes casos julgados na Alemanha são bons exemplos de aplicação desse critério da necessidade: um cliente contratou um advogado para ajuizar ação em seu favor, mas o advogado perdeu o prazo e a pretensão do cliente prescreveu. O cliente processou então o advogado para obter indenização. Em juízo, o advogado alegou que o seu cliente havia concorrido culposamente para o próprio dano por não ter impedido a consumação da prescrição da sua própria pretensão, uma vez que ele era legalmente habilitado para tanto. O BGH (Bundesgerichtshof, correspondente ao nosso Superior Tribunal de Justiça), todavia, não acatou essa alegação, sob o argumento de que o exercício oportuno da pretensão, segundo o propósito do contrato de prestação de serviços advocatícios, recai no exclusivo campo de responsabilidade do advogado. Em outro caso, o BGH decidiu que um hospital que assumiu os cuidados de um paciente psiquicamente doente e com risco de cometer suicídio não poderia se valer da alegação de culpa concorrente do lesado, se o paciente se ferisse em uma tentativa de suicídio. Isso porque a finalidade desse contrato de tratamento é exatamente a de retirar do paciente a preocupação com a não materialização do risco de suicídio. Estes casos são citados por Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 378. Vale esclarecer que, na Alemanha, a situação de não evitação culposa, por parte do lesado, do próprio dano decorrente de evento danoso imputável a terceiro corresponde a caso de culpa concorrente (§ 254, BGB).
8- Vertue vs. Bird, 1677, p. 200.
9- Edward Farnsworth, Contracts, 2004, § 12.12, p. 778-779.
10- Parker v. Twentieth Century-Fox Film Corp., 3 Cal.3d 176 (1970).
11- Nesse sentido, ver: Maurício Sheinmam, in Comentários ao Código Civil brasileiro, vol. VI, 2009, p. 359.