Direito Privado no Common Law

O Direito Privado na Common Law

O Direito Privado na Common Law.

10/8/2020

Texto de autoria de Nelson Rosenvald

The liberty, the unalienable, indefeasible rights of men, the honor and dignity of human nature, the grandeur and glory of the public, and the universal happiness of individuals, were never so skillfully and successfully consulted as in that most excellent monument of human art, the common law of England (John Adams).

Esta é a primeira publicação de nossa coluna semanal: O Direito Privado na Common Law. A coordenação compartilhada com os amigos Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís Pascoaloto Venturi não é aleatória. Em graus variados, compartilhamos vivências de doutorado, pós-doutoramento ou como professores visitantes em instituições de ponta na Inglaterra e Estados Unidos. Assim, internalizamos um modo plural de compreensão do Direito Privado que se reflete naquilo que escrevemos e ensinamos aos nossos alunos, e que aqui se concretizará pela publicação de um texto semanal por cada coordenador. Afinal, várias vozes permitem um debate refinado, que jamais seria possível se esta coluna se reduzisse a um monólogo. Agradecemos ao Migalhas pela concessão deste espaço privilegiado de diálogo com o leitor para que possamos construir pontes com a doutrina e cortes estadunidenses, britânicas e das demais jurisdições da common law. Pretendemos explorar convergências e divergências tanto no âmbito do direito civil - contratos, responsabilidade civil, propriedade, família – como no direito do consumidor, societário, empresarial e, igualmente, naqueles modelos há muito trilhados na tradição anglo-americana (como o Law and Economics), porém timidamente discutidos no Brasil.

Praticamente 1/3 de todas as pessoas vivem em locais aonde a lei é fortemente marcada pela "Common Law". Esse é o legado da Grã-Bretanha do período em que foi a maior potência colonial do mundo. A célebre expressão "Common Law" recolhe três significados: a) um direito comum para todos os ingleses, que no medievo substituiu o sistema de esparsas normas locais; b) um sistema fundamentalmente baseado em decisões judiciais ao invés da lei e dos costumes; c) o conjunto de países que seguem não apenas a lei inglesa substantiva e processual, mas também o seu sistema judicial, a estrutura das profissões jurídicas e o estilo de pensamento jurídico. Destaca-se o fato de que as decisões dos outros países eram em última instância sujeitas à confirmação em Londres, o que acabou gerando uma uniformidade de longo alcance do direito, através da "commonwealth".

Em um mundo globalizado ainda cabe a dicotomia "common law" x "civil law"? Talvez, o mais apropriado para os tempos atuais é substituir a clássica dualidade pelo sutil contraste entre o direito Inglês e as várias jurisdições da Europa continental, por 2 razões: a) a expressão genérica "civil law" se refere a um número de diferentes tradições jurídicas, situadas nas famílias "romanística", "germânica" e "nórdica". Em alguns aspectos, as divergências entre as três famílias são mais significativas do que a própria polarização "civil law" x "common law"; b) as próprias jurisdições da "common law" são bastante heterogêneas. Notadamente, há uma profunda distinção estrutural entre o direito inglês e o direito norte-americano. Essa diferença é tão pronunciada, que se por um lado faz sentido cogitar de uma tradição anglo-americana no sentido histórico, qualquer insinuação sobre um direito anglo-americano é equivocada. Ilustrativamente, em sede de responsabilidade civil, nos EUA a maior parte das reparações é fruto de decisões do júri, sendo os "punitive damages" comumente aplicados. Já na Inglaterra, as indenizações são determinadas por juízes e tribunais, sendo os "exemplary damages" (nomenclatura inglesa para os "punitive damages") aplicados em hipóteses restritas, definidas em precedentes.

Especificamente com relação ao direito inglês, alguns fatores determinam até hoje o seu peculiar estilo legal. Primeiramente, instituições especialmente características como o "trust", deveres fiduciários, e a doutrina da "consideration". O princípio da liberdade contratual é venerado, havendo um forte ceticismo contra o viés funcionalista do Estado social ou mesmo da "law and economics". O coração do sistema jurídico reside na "legal certainty", que deve ser promovida mesmo que em detrimento da justiça substancial em um caso individual. A ideia da codificação nunca teve muitos adeptos, pelo ceticismo diante do método de submeter inteiras áreas do direito ao império de regras abstratas. Uma exceção foi Jeremy Bentham, que via os códigos como perfeito remédio para combater a tradição inglesa que ele reputava como arcaica, assistemática e inacessível ao cidadão.

Evidentemente, destaca-se o direito inglês como sendo um "judge-made law", pois por séculos a função de criação da lei era deixada aos tribunais. A ideia do direito como um sistema harmônico nunca teve prestígio na Inglaterra, pois lá o raciocínio jurídico sempre se baseou em um procedimento indutivo ao invés de uma dedução com base em amplos princípios. Esta forma de pensar principia nos bancos da faculdade, com apelo ao método socrático: as aulas são na maior parte um locus de discussão, e não de monólogo expositivo, com análise crítica de casos e contraste com casos análogos. Quando a prática legal e o ensino do direito são puramente empíricos, o raciocínio jurídico se move do "particular para o particular" e nunca a partir do caso particular para princípios gerais de onde a decisão daquele caso será solucionada. Um bom exemplo é a ausência de um princípio geral da boa-fé, como guia para a solução de casos individuais. Diferentemente, no direito inglês esse papel é exercido por um conjunto de doutrinas legais específicas, funcionalmente equivalentes a várias características da versão continental do princípio ("estoppel", "duty to mitigate").

Max Weber pontuou a enorme influência exercida pelos mais prestigiados advogados sobre o estilo legal de toda uma sociedade. Na cena inglesa, os mais notáveis causídicos nunca foram professores ou funcionários públicos, mas exclusivamente praticantes da advocacia, que não apenas desempenham atividades diárias nos tribunais, como também exercem o monopólio da educação jurídica dos jovens profissionais. Tradicionalmente, os advogados deixam de lado a teorização e se dedicam à produção de listas de contratos e ações que sejam uteis para atender as necessidades particulares dos litigantes. Os livros sobre Direito Contratual são substancialmente compostos de excertos de casos já decididos, esmiuçados os seus fatos principais, argumentos das partes e a lógica subjacente à decisão. Em reforço, a perspectiva remedial de formatação do direito material e o apelo ao "private enforcement" demonstram a fé inabalável no protagonismo do indivíduo para materializar o conceito de "efetividade" e solucionar suas questões jurídicas.

Com base na experiência angariada ao longo dos últimos séculos, o que impressiona o observador estrangeiro não é apenas a cuidadosa análise dos fatos e dos casos individuais, mas a clara deferência jurisprudencial às necessidades do comércio. Os tribunais da Inglaterra e Estados Unidos estão prontos para compreender as demandas dos contratos internacionais e o modus operandi dos homens de negócio. A confiança em princípios e cláusulas gerais pode negligenciar o fato de ser o contrato a lei adotada pelas partes e, portanto, direitos devam ser analisados tendo como ponto de partida as cláusulas nele consubstanciadas, seja conforme a expressa gestão de riscos antecipada pelos contratantes ou, em sua falta, pelo preenchimento das lacunas conforme os standards desenvolvidos por homens com reputação comercial para contratos da mesma natureza, na extensão necessária para que se descubra a alocação de riscos típica de contratos semelhantes.

Fato particularmente relevante neste período de pandemia é o de que, partindo da premissa de que "contract is for the parties, not for the courts", a tradição da common law não comunga com juízes que intervêm no contrato para adequá-lo à alteração das circunstâncias que rompem a sua base objetiva, ou magistrados que impõem às partes uma fase de renegociação contratual. Todos os sistemas jurídicos modernos enfatizam que de certa forma um contrato é um "agrément", e esta é a regra nas jurisdições da common law. A peculiaridade é a de que cada contratante é uma espécie de garante de sua promessa e será responsabilizado por uma indenização por seu eventual descumprimento - "breach of contract". Para sistemas nos quais inexiste um principio geral de agir conforme a boa fé, a renegociação ou a revisão são aspectos comerciais que concernem exclusivamente aos contratantes. Não por outra razão, a London Court of International Arbitration (LCIA), é amplamente reconhecida como o principal centro de arbitragem internacional do mundo.

Atualmente há uma clara convergência entre a "common law" e a "civil law". Os aprimoramentos jurídicos do último quartel do século XX alteraram tanto o direito inglês como o direito europeu continental, de forma a criar uma grande convergência. O nascimento de uma doutrina jurídica, tornou o direito inglês mais acadêmico, em um ambiente em que o legislador intervém para trazer maior racionalidade as decisões dos juízes (ilustrativamente, no direito ambiental há uma proliferação de regras legislativas).

Por outro lado, a influência doutrinária na Europa continental é declinante e a influência do judiciário cresce enormemente, havendo maior espaço para o método indutivo e um saudável pragmatismo para o enfrentamento de problemas reais. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e a common law com a jurisprudência: eles gradualmente se aproximam, mesmo em suas técnicas e métodos legais. A realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. Basta mencionar o ingresso da teoria dos precedentes Judiciais no ordenamento jurídico brasileiro como método obrigatório para fundamentação da decisão e garantia de estabilidade, coerência e integridade do sistema normativo. É claro que subsistem diferenças significativas com a logicidade da common law, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas se torna cada vez mais insustentável.

A coluna já é uma realidade. Espero que semanalmente possamos apresentar temas instigantes e atuais, propiciando uma rica interlocução do direito privado brasileiro com o universo da common law.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.