Situações fáticas que nem mesmo passavam pela mente do legislador mais visionário são cotidianas atualmente, e necessitam do estabelecimento de diretrizes básicas para resolver os impasses que surgem vinculados a elas. Contudo, para além da dinamicidade das relações sociais não ser acompanhada pela legislação, que sempre se mostra um passo atrás1, há também as várias circunstâncias em que pode-se atribuir a uma demora de atuação do Poder Legislativo a grande carência de parâmetros para equacionar as questões que recaem sobre certos eventos.
Quando o Código Civil de 1916 foi pensado, lá nos idos do início do século passado, algumas conjunturas que perpassam a vida das pessoas estavam totalmente fora do horizonte, podendo-se dizer o mesmo com relação ao que se deu com o Código Civil de 2002, elaborado no início dos anos 1970. No entanto, quando ele entrou em vigor no início de 2003, algumas das “novidades” que fazem parte do nosso dia-a-dia já tinham um mínimo de consolidação, mas permaneceram ignoradas, causando uma miríade de hipóteses lacunosas a serem analisadas.
Dentre as várias situações que deveriam ter sido inseridas no texto legal mas que o legislador não se deu ao trabalho de positivar está toda a gama de questões atinentes às técnicas de reprodução humana assistida, tendo ele meramente se limitado a trazer três míseros incisos sobre a inseminação homóloga e a heteróloga no artigo destinado a estabelecer os critérios de presunção de paternidade dos filhos de uma mulher casada (art. 1.597 do Código Civil).
Contudo a defasagem do Código Civil, e da legislação como um todo, com relação às várias possibilidade de se atingir o desejo de obtenção de uma prole fora dos limites tradicionais de um casamento, que antigamente era o instituto autorizador para que as pessoas pudessem começar a se dedicar à prática sexual e à busca pela constituição de uma família com filhos, é notória e até mesmo vergonhosa.
Basta se considerar que o primeiro caso de “bebê de proveta” do mundo ocorreu em julho de 1978 em Bristol, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Joy Brown, sendo que, no Brasil, foi em outubro de 1984, com o nascimento no Paraná de Anna Paula Caldeira. Ante a um cálculo bastante singelo pode-se afirmar que, quando do início da vigência do atual Código Civil, já era um fato que datava quase 20 anos a inseminação artificial em solo pátrio.
As discussões sobre o tema ganharam tamanha relevância na sociedade que entre 1990 e 1991 foi transmitida, pela Rede Globo de Televisão, uma novela chamada “Barriga de Aluguel”, com enorme audiência, movimentando a população em geral a pensar na trama em que uma jovem aceitava gestar o filho de um casal que não conseguia engravidar.
Tais considerações servem apenas para demonstrar que o Código Civil de 2002 deveria ter trazido considerações sobre um tema já presente na sociedade. E mesmo já passado mais de 20 anos de sua vigência, o legislador ainda não teve o devido cuidado de, ao menos, ter criado uma legislação específica visando estabelecer um regramento elementar para direcionar a solução dos problemas relacionados à realidade de quem busca ter um filho valendo-se das diversas tecnologias ou ante a uma contratualização de algum dos passos que levam a uma gestação.
Impossível se apreciar as técnicas de reprodução humana sem que o recorte da sexualidade se faça presente, para além da discussão ordinária acerca da gravidez ter decorrido ou não de uma relação sexual, pois é relevante se ter em mente qual a origem do material genético que será utilizado para esse fim.
Vivíamos uma realidade em que a definição da relação entre ascendente e descendente era lastreada por uma solução bastante ordinária na qual a mãe era a mulher que tinha dado à luz àquela criança (Mater semper certa est) e o pai seria o seu marido, em decorrência da presunção de paternidade já mencionada.
Posteriormente, por razões óbvias, já que a manutenção de relações sexuais não ocorria apenas dentro da estrutura de um casamento, se passou a ter a necessidade de criar mecanismos para resolver aquelas hipóteses em que a criança nascia de uma mulher que não estava casada, conferindo-se ao pai a atribuição de manifestar-se, de maneira formal, afirmando ser o genitor daquela criança, por meio do reconhecimento da paternidade.
Contudo atualmente é possível que venhamos a nos deparar com uma realidade capaz de trazer uma multiplicidade de complexidades que podem deixar em grande dificuldade aquele que tenha que equacionar as celeumas que surgem. Muito disso decorre da já tradicional leniência legislativa2 que marca o nosso Estado Esquizofrênico3, a qual, nesse caso concreto, ainda abre espaço para a teratológica atuação do CFM - Conselho Federal de Medicina tratando de questões que estão totalmente fora do seu escopo de atuação4 e que, ainda mais aberrante, acaba levando o próprio Poder Judiciário a acolher tais normativas como fonte do direito5.
Basta considerar que para além de todas as características de inovação surgidas na medicina, temos topado de forma recorrente com discussões que versam sobre a figura da inseminação caseira e da contratualização de relações sexuais com o intento único de geração de filhos. São situações ordinárias onde alguém coleta o esperma de um doador e inocula-o no corpo da mulher com uma seringa (simulando o que ocorre em uma relação sexual) ou em que firmam um acordo em que aquela mulher apenas deseja engravidar, sem que a pessoa com quem ela manteve a relação sexual tenha qualquer vínculo com aquela criança que nascerá, como já trazido anteriormente nessa coluna6.
Se o Poder Público não se dignou a cuidar de hipóteses prosaicas como essas, que não envolvem a aplicação de um elevado grau de tecnologia, é de se imaginar que aquelas mais intricadas passam totalmente ao largo do que é possível se encontrar em nosso ordenamento jurídico.
Nesse sentido trago uma proposição para provocar a análise de todo aquele que queira se debruçar sobre a complexa arte de compreender o direito e aplicá-lo: Se um casal formado por pessoas de gênero distintos não tiver condições de ter filhos e contratar que um homem e uma mulher lhe ofereçam seu material genético para que se fecunde um embrião que será implantado em uma outra pessoa que o gestará, quem serão os pais dessa criança?7
Sob a perspectiva contratual é de se compreender que aqueles que contrataram sejam os pais, contudo muito tem se discutido acerca desse contrato de gestação em substituição e seu valor jurídico. Ainda que não exista legislação expressa sobre o tema, o CNJ prevê a possibilidade de que se faça o registro da criança no nome dos contratantes, afastando a presunção da maternidade e reconhecendo a valia da manifestação de vontade das partes envolvidas (art. 513, § 1º do Código Nacional de Normas – Foro Extrajudicial)8.
Importante se constatar que a previsão indicada apenas acolhe a quem formalizou por meio de contrato escrito a gestação em substituição, haja vista que o registro de nascimento em nome da contratante, e não da parturiente, apenas se autoriza ante a apresentação de “termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação”.
Considerando que o Código Civil prevê que a regra dos negócios jurídicos seja a forma livre, exigindo-se forma especial apenas quando for expressamente determinado em lei (art. 107 do Código Civil), temos aqui o CNJ inovando e legislando sobre algo que não lhe incumbe.
De outra sorte, caso o entendimento for refratário à validade do contrato, entendendo-se pela inadmissibilidade da avença formulada entre aqueles que desejam ser pais e a pessoa que gesta uma criança em seu favor, é possível se concluir pela filiação vinculando a criança e quem a gestou, lastreado ainda no preceito do mater semper certa est que norteia o art. 1.597 do Código Civil. Tanto é assim que a própria previsão do CNJ tem por escopo afastar a obrigatoriedade de inserção no assento de nascimento da criança a informação que consta da DNV - Declaração de Nascido Vivo no campo destinado à mãe, atualmente parturiente9.
Não se pode, por fim, ignorar que se o parâmetro utilizado for o da origem genética daquela criança, os pais não serão nem os contratantes e nem a parturiente, havendo de se estabelecer a vinculação entre aquele que nasceu com quem se constatar serem as pessoas das quais seu DNA se origina. Por mais absurda que possa ser essa afirmação, é premente que não se perca de vista que atualmente quando um homem não se manifesta reconhecendo ser o pai de uma criança é o exame de DNA que tem o condão de fixar a filiação.
Trazidas essas ponderações, nos cabe decidir se o que haverá de prevalecer é o acordo de vontade entre as partes, a previsão legal de que a mãe é quem deu à luz à criança ou a sua ascendência genética. Obviamente que na ausência de conflito entre todas as partes que integram essa situação a solução se faz trivial, contudo o problema se estabelece caso haja uma pluralidade de interessados pugnando pela prevalência da vinculação paterno/materno-filial com aquela criança.
Estabelecido um conflito em decorrência da eventualidade da gestante afirmar que não mais deseja cumprir o contrato e que quer ficar com aquela criança para si, estamos diante de uma situação que já vem sendo objeto de atenção da doutrina e que, particularmente, considero que a prevalência da avença firmada sobre a nova vontade expressada pela gestante é inafastável.
Muito pode ser trazido no que concerne às alterações hormonais sofridas por essa gestante, pelo afeto que possa vir a ter nutrido por aquele feto que está a gestar ou sobre a perspectiva do direito ao seu próprio corpo e uma eventual vulnerabilidade que a levou a aceitar fazer parte daquela gestação em substituição. São variadas as vertentes que podem conduzir os questionamentos porvindouros, contudo o objetivo da presente coluna não se aterá a tais perspectivas.
O aspecto que me motiva aqui não se direciona a resolver o embate entre vários indivíduos desejosos por assumir essa filiação, mas sim quando por qualquer razão os contratantes exaram o seu intuito de rescindir o contrato, negam-se a receber a criança depois que ela tenha nascido ou tenham falecido antes do seu nascimento. Nessas circunstâncias, a quem se impõe da filiação dessa criança?
Por entender ser contrato de gestação em substituição indiscutivelmente válido, e sem a possibilidade, a princípio, de qualquer sorte de rescisão, sustento como inevitável o dever dos contratantes de assumirem a paternidade da criança gestada. Poderíamos lançar como situação limítrofe, que ensejaria um maior aprofundamento técnico, a discussão quando a gestante toma atitudes durante a gravidez que podem colocar em risco a perfeita saúde do bebê que está gestando, o que, de per si, abre espaço para se debater quais os limites que podem ser impostos contratualmente para essa gestante.
Seja como for, de início, entendo que, com o nascimento da criança gestada, não há que se falar de qualquer discricionaridade em favor dos contratantes, os quais podem ser compelidos, até mesmo judicialmente, a registrar o bebê, fazendo valer a avença firmada pelas partes.
Arrependimento, dissolução do relacionamento dos contratantes, cessação do interesse de ser pai/mãe, uma eventual gravidez da contratante, ou qualquer outra razão não são bastantes para eximir os que procuraram a gestação em substituição do dever de assumir a paternidade.
Nesse diapasão tenho como plausível a possibilidade da propositura da ação de investigação de paternidade com o fim de que seja judicialmente determinado que os contratantes assumam a paternidade daquela criança nascida em decorrência da gestação em substituição, lastreada no contrato firmado entre as partes.
Conjuntura que pode se revestir de contornos um tanto mais delicados é aquela em que os contratantes venham a falecer antes do nascimento da criança que está sendo gestada. Entendendo-se que o contrato segue inalterado com a morte dos contratantes, quando do nascimento dessa criança é possível se determinar que seja realizado o reconhecimento de sua paternidade/maternidade post mortem, com os contratantes figurando como pais, fixando-se que competirá a um tutor a responsabilidade de cuidar daquela criança, a quem será garantido todos os direitos sucessórios.
Caso se entenda, noutro sentido, que se trata de um contrato que gera uma obrigação personalíssima, corre-se o risco de se concluir que a estipulação firmada estará rescindida ante a morte dos contratantes. E nesse exato ponto é que surge a grande preocupação que pauta o presente texto: será a gestante obrigada a ficar com a criança, impondo-se a ela o dever de ser mãe mesmo que esse nunca tenha sido o seu desejo, já que sua gravidez é decorrente exclusivamente de um negócio jurídico? Poderia se argumentar que essa situação seria algo equivalente a um “risco do negócio” que sobre ela recairia?
Esse desenho apresentado está plenamente permeado de um recorte de sexo enquanto pilar da sexualidade, vez que como apenas mulheres, em sua acepção estrita biológica, por terem útero, podem gestar, o ônus do não cumprimento do contrato tem um claro marcador sexual.
Evidente que poderíamos discorrer sobre a natureza do contrato, a necessidade da presença de certas cláusulas para mitigar tais riscos ou ainda as variáveis admissíveis caso o contrato para a gestação em substituição tenha sido escrito ou não, se é possível a cessão desse contrato ou a assunção da posição contratual pelo falecimento de um dos contratantes, questões que serão objeto de artigo científico posterior. No presente momento a finalidade desejada é fazer com que aqueles que tem se dedicado a estudar esse tema tenham sua atenção voltada para esse recorte.
Negar a validade do contrato como uma premissa, de maneira genérica, especialmente após a gestação em substituição ter se consubstanciado de fato, pode gerar uma consequência extremamente prejudicial a uma mulher, cabendo até mesmo se aventar a possibilidade que o julgamento com perspectiva de gênero venha a ser levado em consideração em tais circunstâncias.
Antes de uma visão romantizada ou revestida de uma tecnicidade parcial é indispensável que se coloque em primeiro plano a autonomia que lastreou a convenção firmada entre as partes, não se fazendo escolhas ao sabor dos ventos e dos interesses que se busca atender em cada momento, prezando por uma linearidade de raciocínio lógico-jurídico.
Como a legislação, nesse caso, sequer foi elaborada, é primordial que as discussões que venham a pautar o tema não se esqueçam de ponderar que, uma solução que não sopese todos os eventuais riscos, pode acabar por culminar em uma nova modalidade de mãe-solo, ainda mais cruel do que as que já assolam nossa sociedade.
Que a proteção da mulher não seja mais uma vez ignorada pelos nossos tribunais. Que o Poder Legislativo não relegue a mulher, mais uma vez, a uma condição de arrimo familiar, especialmente considerando que a gestação se originou de um contrato.
Que, ao menos dessa vez, a mulher receba a proteção de que é merecedora.
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1 Orlando Gomes. Direito e desenvolvimento. 2 ed., rev. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 4-5.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Acesso à reprodução humana assistida por homoafetivos e transgêneros. In:
MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). Direitos reprodutivos e planejamento familiar. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023. p. 220
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 77.
7 Parte das questões aqui analisadas foi objeto de discussão com os alunos da UFBA que integram o LABFAMS (Laboratório de Investigação de Direito da Família e Sucessões), grupo de estudo sob minha coordenação.
8 § 1.º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.