Em outubro de 2024 entrou em vigor no Brasil a lei 14.994/24, também nomeada de pacote antifeminicídio em razão de seu escopo direcionado à proteção contra a violência de gênero, tendo como ponto mais aclamado o fato de ter tornado o feminicídio um crime autônomo (art. 121-A do Código Penal). O delito deixa de ser apenas uma qualificadora no crime de homicídio (antigo inciso IV do art. 121, agora revogado), passando a ter existência em si mesmo enquanto conduta típica.
A lei 14.994/24 mostra-se como um instrumento normativo de envergadura, não tendo se restringido apenas a estabelecer o novo tipo penal do feminicídio, mas também fixando uma pena mais grave para o crime de homicídio quando praticado contra mulher (reclusão de 20 a 40 anos), além de trazer outras considerações em inúmeras circunstâncias em que a vítima é atacada em razão de sua condição de gênero.
Face à toda misoginia que permeia o cotidiano brasileiro e que coloca as mulheres e toda a gama do feminino em uma situação de extrema vulnerabilidade é de suma importância que o Estado confira especial atenção a tal realidade. Nesse aspecto, a apresentação do pacote antifeminicídio é merecedora de toda a felicitação possível.
Contudo há uma perspectiva técnica que envolve o tema e que é elemento nuclear de tudo o que recorrentemente compartilho nesse espaço, e critério basilar dos meus escritos: de que pilar da sexualidade estamos falando? A legislação visa resguardar uma questão atrelada ao sexo, ao gênero, à orientação sexual ou à identidade de gênero?
A dúvida se coloca exatamente ante a contínua confusão existente entre sexo e gênero1 que é apresentada não só pela sociedade como um todo mas também pelo Poder Público2, e que impacta de maneira preocupante na efetiva proteção de quem precisa de especial atenção do Estado.
Em que pese entender que todo o espectro do feminino (enquanto gênero) esteja abarcado pela defesa preconizada pelo pacote antifeminicídio, a forma como a questão é descrita no corpo da lei 14.994/24 pode trazer fortes questionamentos quando se analisa o tema para além da sua superfície.
Durante todo o texto da lei, iniciando na própria ementa, se tem a utilização da expressão “crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, fixando o parâmetro a ser utilizado para a incidência da lei.
Seguindo o nosso marco teórico de que a sexualidade se sustenta em quatro pilares sob o viés jurídico3, é essencial se entender de qual dos alicerces estamos tratando. Com base nessa perspectiva temos que sexo há de ser entendido, em seu sentido estrito, como reflexo da “conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa”4, enquanto o gênero repousa na “expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino)”5.
Ao valer-se da expressão “crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino” o texto faz uma enorme miscelânea conceitual, mas, claramente, ainda que de forma pouco escorreita, conduz a uma proteção tanto da mulher (sexo) quanto do feminino (gênero). Dessa maneira, a lei 14.994/24 alberga a quem tem elementos biológicos associados à mulher, como também a quem expressa socialmente o feminino.
A atecnia demonstrada apenas revela uma vez mais a clara deficiência de letramento do Poder Público acerca das questões atinentes à sexualidade, que reiteradamente trata sexo e gênero como uma única coisa. Qualquer interpretação que aparte da proteção especial, trazida pela lei 14.994/24, quem quer que seja que possa ser considerado sob o espectro da mulher (sexo) ou do feminino (gênero) se mostra equivocada e, muito provavelmente, eivada de preconceito.
Proteger apenas a mulher por ter nascido com uma vagina ou por portar dois cromossomos X exigiria que o agressor, obrigatoriamente, tivesse ciência da conformação física ou acesso a uma análise genética da vítima. Na prática os crimes contra a mulher estão, em larga escala, muito mais vinculados a uma presunção de que aquela pessoa seja uma mulher exatamente pelos caracteres por ela ostentados socialmente.
Objetivamente se infere qual é o sexo de uma pessoa (na perspectiva biológica) pelo fato de estar ela expressando aspectos associados ordinariamente àquele sexo, e não pela constatação do sexo em si. Se conclui por qual é a configuração física e genotípica da pessoa em razão dos caracteres de gênero que ela demonstra.
Inquestionável que o aspecto biológico atrelado ao sexo é pertinente para a análise do tema, objetivando a proteção especial de alguém que experiencia uma maior vulnerabilidade em razão do seu corpo expressar aspectos vinculados ao feminino. Contudo o ódio que norteia as condutas criminosas contra tais pessoas se assenta nas características exteriorizadas dessa condição de mulher (critério biológico), ou seja, no gênero.
No universo jurídico, podemos atribuir boa parte da responsabilidade pela dificuldade de se compreender com clareza a distinção entre sexo e gênero ao equivoco técnico já relatado nessa coluna com relação à informação consignada na DNV - Declaração de Nascido Vivo, e consequentemente no RCN - Registro Civil de Nascimento e na certidão de nascimento, no campo destinado ao sexo. No espaço destinado a indicar o sexo (homem/macho, mulher/fêmea ou intersexo) o modelo elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde no anexo II da portaria 116/09 indica dois termos concernentes ao gênero (feminino ou masculino, na perspectiva binária, além de um “ignorado” que seria direcionado aos casos de pessoas intersexo)6.
Entre os inúmeros desdobramentos desse equívoco podemos constatar que transgêneros e pessoas não-binárias, em razão do impacto social da presença desnecessária de tal informação nos documentos, tem pleiteado a alteração da informação constante desse campo nos documentos7.
Retomando a apreciação específica do texto da lei 14.994/24, é de se assinalar que ao “definir” o nome a ser dado ao novo tipo penal de “Matar mulher por razões da condição do sexo feminino” valeu-se daquele que já vinha sendo utilizado para tal conduta, qual seja, feminicídio. Tal escolha, preferindo feminicídio a “mulhericídio”, não é inconsciente, revelando que o crime se ancora na primazia da perspectiva do gênero, já que a motivação está baseada no que é expressado pela mulher, seguindo os moldes estabelecidos na origem do termo fimicide, cunhado por Diana Russell e Jill Radford8.
Restando inequívoco que as condutas tipificadas pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) têm na misoginia ou menosprezo face a condição feminina seu lastro, é premente se entender que o fator aglutinador dos comportamentos previstos nessa lei está na premissa de que o agente do ilícito atua segundo uma percepção de que ele possui uma superioridade em face dessa vítima.
No cerne da motivação do agente está a concepção de poder, nesse caso direcionado ao controle dos corpos alheios e à regulação da sexualidade9, como é recorrente em sede de crimes sexuais.
Conclui-se, portanto, que é inteligência inafastável que toda vez que a lei 14.994/24 replica a expressão “crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino” em verdade está referindo-se a crimes que sejam motivados pelo fato de a vítima possuir um elemento ligado ao feminino, não apenas vinculando-se ao fato de ter ela nascido com uma vagina, ovário, útero, trompas, etc, ou por ter o cromossomo sexual XX.
Disso decorre uma considerável gama de consequências técnicas que não podem ser ignoradas, como a de que estão acolhidos sob os preceitos estabelecidos pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) toda pessoa que expresse o feminino, o que inclui mulheres (cromossomo XX) e pessoas do gênero feminino (cisgênero ou transgênero)10. Necessariamente também se aplica aos homens transgênero (pessoas a quem se atribuiu o sexo mulher/fêmea ao nascer mas que não se reconhecem como do gênero feminino), quando a motivação do crime esteja na premissa de que aquela pessoa possui ou possuiu aspectos sexuais externos associados ao feminino, como nos casos de pânico trans11.
Como exposto no manual dos Direitos Transgênero que acabo de publicar, ainda antes da transformação do feminicídio em crime autônomo, “a proteção da lei visa atender toda a amplitude do conceito atrelado ao feminino, seja quanto a sua manifestação física/genital (sexo), seja na sua acepção sociocultural (gênero), autorizando a imposição da qualificadora quando o homicídio tenha como vítima tanto quem possui genitália tradicionalmente associada à mulher (mulheres cisgênero e homens transgênero) como também a quem performe o gênero feminino (mulheres cisgênero e mulheres transgênero)12.
Em uma hermenêutica que pode gerar arrepio a muitos chego até mesmo a ponderar que se o bem jurídico protegido é o feminino seria admissível se pensar na aplicação de todos os parâmetros estatuídos no pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) em favor de um homem vitimado por violência doméstica que vive um relacionamento com alguém do mesmo sexo/gênero e que exerce o papel do feminino nessa relação.
Finda a análise da vítima que o pacote antifeminicídio busca resguardar é premente se fazer uma crítica acerca de um aspecto que já nos motivou anteriormente na presente coluna, que é a proteção das mulheres de forma geral, como uma coletividade e não apenas de maneira individualizada.
O pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) perdeu uma enorme chance de tipificar as condutas misóginas praticadas contra as mulheres e o feminino de forma geral, persistindo a inexistência de cominação legal específica com relação a atos dirigidos contra a coletividade feminina.
Ao traçar novas linhas com relação aos “crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino” trata dos crimes contra a honra, prevendo a majoração da pena, por exemplo, no caso de injúria cometida com tal motivação, cominando a aplicação da pena em dobro (art. 141, § 3º do Código Penal). Persiste a lacuna em relação à misoginia contra a coletividade das mulheres e ao feminino como um todo, já que o texto da lei 14.994/24 restringe-se a tratar apenas de tais condutas direcionadas a uma pessoa individualizada.
A omissão que sustenta a ADO 26, que, a partir da concepção social de raça, aplica o crime de racismo para os casos de homofobia e transfobia13, permite que se conclua também pela verificação do mesmo tipo penal para a misoginia direcionada a todas as mulheres, como sustentei na coluna na qual discorri sobre o empresário que disse “Deus me livre de CEO mulher”14.
A concepção de sexismo enquanto um elemento passível de ser compreendido como raça em sua dimensão social não é uma novidade em si, tendo sido abordada em estudos antropológicos, nos quais até mesmo se sustenta que a conexão sexismo/racismo se justificaria "na medida em que o sexismo também se apoia em uma definição física e biológica da mulher”15.
Evidente que a subsunção de tais condutas ao crime de racismo não é a solução mais adequada, contudo os elementos componentes do tipo penal, ao firmar a raça (que juridicamente não é o mesmo que cor)16 como um dos parâmetros para a sua aplicação, ao lado de outros como etnia, religião ou procedência nacional, deveria nos conduzir mais a uma discussão acerca do nome dado ao crime.
Se o tipo penal descrito no art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89) fosse meramente denominado de “discriminação” ou qualquer outra expressão que socialmente não fosse atrelada ao que tradicionalmente se vincula às lutas raciais no Brasil a situação seria menos conturbada.
Indubitável que as conquistas da população negra pautaram a elaboração da legislação e é plenamente compreensível a busca pela manutenção de toda a simbologia que está associada ao crime de racismo para pretos e pardos, contudo esse aspecto não pode ser suficiente para se impedir que outras pessoas venham a se beneficiar da proteção descrita na lei Caó (lei 7.716/89).
Tentar restringir que quem não é negro venha a valer-se do que está ali descrito constitui uma manifesta afronta aos preceitos constitucionais mais basilares, além de representar uma exclusão indevida de cidadãos da proteção legal, em afronta à vedação de proteção insuficiente, o que reveste-se de contornos ainda mais preocupantes em se tratando de um grupo tão vulnerabilizado quanto o das mulheres e daquelas que expressam o feminino.
Mesmo ciente da árdua luta que pessoas negras seguem travando em nossa sociedade, a perspectiva que conduz a presente análise não tem qualquer intenção de trazer apagamento ou minoração da relevância de sua batalha. O intuito é apenas garantir a efetiva proteção às mulheres e ao feminino como um todo, ainda mais quando em muitos momentos essas guerras travadas contra as maiorias subjugadoras são convergentes.
A proteção de uma não minora a proteção da outra. Negar acesso à plenitude das garantias legalmente existentes sob a alegação de que foi um dado grupo que laborou para o surgimento da legislação, deixando à deriva quem precisa de proteção, jamais pode ser uma diretriz a nortear quem sente todas as mazelas da opressão, subjugação e discriminação.
Pugno, por fim, que pessoas negras, mulheres, homossexuais, transgêneros, aliados, e leitores de todos os espectros absorvam o que apresento aqui com a mente aberta, pautados meramente pelas linhas elementares dos Direitos Humanos e de nosso Estado Democrático de Direito. Se quiserem traçar objeções, que elas seja jurídicas e não ideológicas, sob pena de que ao defender seu ponto de vista você estará perpetuando uma realidade de discriminação contra outro grupo.
Ninguém com um mínimo de consciência social nega que a misoginia é um dos grandes problemas a assolar nosso país. Então qual a sustentação para uma vedação de aplicação da lei a uma situação fática que está nos seus limites de atuação?
Preocupante que a busca pela proteção mais ampla possível à mulher nas bases aqui propostas encontre objeção de mulheres e negros. Mas sigo provocando: se o “nome” dado ao tipo não fosse racismo ou injúria racial, a refração à ideia aqui expressada seria a mesma? Se ao lado de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, que constam do art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89), estivessem presentes expressões como “sexo”, “gênero” ou “sexualidade” haveria alguma dúvida quanto a sua aplicação em casos de misoginia?
Apenas para aplacar a ira que o presente texto certamente fará nascer nos penalistas, já ressalto que não se está aqui tratando de analogia ou mesmo interpretação extensiva, mas tão somente de hermenêutica lastreada na compreensão dos termos apostos na legislação, bem como seus objetivos.
Então, desafio a quem chegou até aqui à reflexão: Se o próprio STF já reconheceu que a expressão raça constante da lei comporta a sua dimensão social (ADO26), que abarca dados grupos vulnerabilizados e subjugados em razão de elementos da sexualidade, por que é tão difícil garantir essa proteção às mulheres e ao feminino?
É premente se aceitar que é necessário se usar todas as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento jurídico em favor da proteção dos grupos que sofrem preconceito e discriminação em razão de quem são. O Poder Público expressa claramente, com o pacote antifeminicídio (lei 14.994/24), que a mulher e o feminino necessitam de uma atenção especial, não podendo a leniência legislativa17 expressada por nosso Estado Esquizofrênico18, mais uma vez patente, permitir que a misoginia, que abre fissuras em nosso tecido social, siga incólume.
A proteção da mulher e do feminino há de ser exercida de forma ferrenha e plena, com todas os instrumentos possíveis, ainda que possam desagradar outras pautas ou gerar incomodo.
O foco há de ser sempre a proteção das minorias e de quem padece de uma realidade de vulnerabilidade em nossa sociedade. A luta há de ser sempre pela ampliação dos instrumentos protetivos dos que mais precisam, nunca a sua redução.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 – 321, 2021, p. 309-310.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. Intersexolidade e intersexualidade da pessoa intersexo: confusão e invisibilidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 147–165, 2023
7 Disponível aqui.
8 RUSSELL, Diana E. H.; RADFORD, Jill. Femicide: The Politics of Woman Killing. New York: Twayne Publishers, 1992.
9 Michel Foucault. História da sexualidade 1: A vontade de saber, Rio de Janeiro: Graal, 1999.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 242.
11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245.
12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245.
13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 230.
14 Disponível aqui. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/415941/racismo-e-o-deus-me-livre-de-mulher-ceo
15 WIEVIORKA, Michel. El espacio del racismo. Barcelona, Paidós, 1991. p. 27.
16 Disponível aqui.
17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.
18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.