Não são poucos os casos em que se pode constatar restrições de acesso aos direitos fundamentais para as minorias sexuais lastrados em parâmetros desprovidos de fundamentação plausível, com manifesta ofensa a premissas fundantes do nosso Estado democrático de direito.
O preconceito por vezes parece consolidar-se como um valor metajurídico que tem o poder de afastar a concessão dos direitos mais nucleares garantidos a todas as pessoas quando destinados a proteger certos grupos1, vulnerabilizando de maneira inadmissível aqueles que necessitam de especial atenção do Estado.
Diversamente do que muitos propagam as minorias gozam de um status nos Estados democráticos de direito que as coloca em condição de grupos merecedores de atuação diferenciada visando propiciar a manutenção da sua existência segundo os preceitos norteadores da cidadania plena, não podendo prosperar uma visão de mundo que segrega e que muitas tenta exterminar todo aquele que não se enquadra no padrão posto2.
Não bastasse essa realidade social que por si só já coloca em risco a presença das minorias sexuais na sociedade ainda somos obrigados a experienciar uma situação bizarra em que até mesmo modelos e formulários têm se sobreposto a lei, especialmente em detrimento dos direitos desse grupo já tão vulnerabilizado.
A alegação de que os formulários configuram-se como parâmetro para decisões pode ser visto, nos últimos tempo, no caso da CNI - Carteira Nacional de Identidade, o chamado novo RG. Questionada a necessidade da aposição do sexo no corpo do documento, como também a concomitância da presença de um campo destinado ao nome e outro ao nome social, o TRF da 1ª região entendeu que a emissão do documento com tais informações seria mantida, pois do contrário poderia ocorrer “uma série de embaraços e transtornos” para a Administração Pública “como um todo e em todas as esferas estatais”, o que ensejaria numa “completa paralisação do serviço de emissão da carteira nacional de identidade" (1022184-25.2024.4.01.0000).
No referido caso é relevante se notar que o próprio Governo Federal manifestou-se inicialmente no sentido de que não prevaleceriam as informações referentes ao sexo e ao nome social na CNI, contudo nem mesmo esse reconhecimento bastou para que o executivo e o Judiciário efetivassem a proteção das minorias sexuais3.
Nessa nossa “pátria do formulário”, na qual o padrão constituído se sobrepõe à realidade dos fatos, recebemos como uma grande notícia toda vez que o Poder Judiciário reconhece algum dos absurdos praticados lastreados nesse equívoco crasso de valorizar um modelo construído em detrimento de todo o arcabouço jurídico existente com o fulcro de proteger a pessoa humana.
O mais recente caso em que pudemos ver o afastamento de uma premissa equivocada constante de modelos e formulários se deu com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 787, que teve o min. Gilmar Mendes como relator e que, por unanimidade, em julgamento ocorrido em 17 de outubro de 2024, reconheceu a “Omissão da União em assegurar acesso adequado à saúde para pessoas transexuais e travestis”, impondo ao Poder Público o dever de garantir o apropriado atendimento médico às pessoas independentemente da informação quanto ao sexo constante de seus documentos.
Partindo-se do pressuposto de que a identidade de gênero (e o seu reconhecimento para fins legais) independe da realização de qualquer intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal prévio (ADI 4275), é evidente que não pode prevalecer qualquer critério que vede o acesso à saúde a quem tenha realizado a alteração de seus documentos em consonância com a sua identidade de gênero4.
Tal afirmação é relevante a partir do momento em que se compreende que há a possibilidade de que homens transgênero venham a engravidar e a dar à luz a uma criança, já que podem manter-se com a capacidade reprodutiva integra mesmo após a sua transição, o que torna necessário o atendimento médico especializado, como com um ginecologista, ainda que apresente em seus documentos a informação de se tratar de alguém do gênero masculino. Da mesma forma que é possível que uma mulher transgênero tenha a necessidade de atendimento por um urologista.
Trata-se de uma constatação lógica baseada simplesmente na constituição física daquela pessoa, algo que vai além de qualquer discussão que tenha a sexualidade como fundo. Não importar se aquela pessoa apresenta documentos que indicam esse ou aquele sexo, ou ostente um determinado gênero, já que o fato que a leva a precisar de um atendimento médico específico há de ser determinado simplesmente pela condição clínica que apresenta5.
Além de especificamente impor que o efetivo acesso ao direito à saúde seja garantido a todas as pessoas independentemente de sua identidade de gênero, o STF, na ADPF 787, manifestou-se quanto aos elementos componentes da DNV - Declaração de Nascido Vivo, vez que o modelo institucionalizado desse documento traz informações em seus campos que podem gerar limitação ao pleno exercício dos direitos pelas pessoas transgênero.
Já teci nessa coluna algumas considerações sobre os problemas da DNV6, sendo certo que há muito o que se questionar sobre a qualidade e adequação do modelo atualmente vigente.
Na ADPF 787 o STF debruçou-se a analisar a informação que compõe o campo destinado a indicar os aspectos atinentes ao nascimento, mais especificamente à relação existente entre aquele que nasceu e a pessoa que deu a luz, bem como aos que figurarão como seus genitores.
Antes mesmo de discorrer com maior vagar sobre o conteúdo da decisão proferida na ADPF 787 pelo STF é primordial se destacar como a compreensão dos elementos que compõem a sexualidade segue sendo um dos maiores problemas quando da discussão de questões vinculadas ao tema, sendo recorrente que tribunais se equivoquem ao defini-los.
Isso também ocorre na presente ADPF que, ressalte-se, tem por fundamento específico analisar aspectos vinculados à sexualidade, o que faria se pressupor que a decisão estaria alicerçada nos mais escorreitos e técnicos conceitos acerca do que encerra a ideia de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Todavia não é isso o que se pode constatar na prática.
Acessando-se a decisão se verifica que, ao mencionar “transexuais e travestis” como pessoas que devem ter a si garantido o acesso à saúde, o STF os define como “pessoas que não se identificam com o sexo com o qual nasceram”.
Uma das minhas cruzadas em meus escritos e como pode ser constatado em vários dos textos constantes dessa Coluna, sexo e gênero são aspectos distintos e que precisam ser devidamente separados para que não se incorra em equívocos técnicos7. Da mesma sorte, reiteradamente expresso qual há de ser a correta compreensão do que venha a ser a transgeneridade, condição que alberga tanto transexuais quanto travestis, e que há de ser entendida como a condição experienciada por aquela pessoa que “não se entende como pertencente ao gênero que era esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento”8.
Chega a ser desolador constatar a maneira como a transgeneridade é tratada pelos nossos tribunais, a ponto de o descuido ser tamanho que o comunicado oficial do STF, destinado à “informação à sociedade”, chega a grafar de forma equivocada a palavra transexual (transsexual). É uma falha que não se pode admitir, ainda mais quando consignada em um documento elaborado pela mais alta casa do Judiciário nacional, e destinada a dar ciência à população como um todo de sua atuação naquele caso concreto.
Retomando a análise do conteúdo da decisão proferida na ADPF 787, com relação ao que consta da DNV, entendeu-se que o “princípio da igualdade impõe que o poder público respeite as identidades de todas as pessoas (arts. 3º, IV, e 5º, caput, da CF/88). Assim, as declarações de nascido vivo (DNVs) devem usar os termos ‘parturiente/mãe’ e ‘responsável legal/pai’, que contemplam todas as identidades de gênero, incluindo pessoas transexuais e travestis”.
Mais uma vez é preocupante constatar que uma questão que se manifesta como óbvia precise chegar ao STF para ser reconhecida apenas por versar sobre temas atinentes à sexualidade9, em uma clara demonstração de como a dominação cisheteronormativa vigente tenta (e consegue) impor à sociedade preceitos equivocados, exigindo que as minorias sexuais tenham que muito laborar para conseguir fazer valer o que é inconteste para as demais pessoas.
A obscuridade que toma conta desses olhares conservadores é tamanha que faz com que a ciência mais elementar e consolidada seja ignorada e questionada, ressuscitando dúvidas já de muito superadas, conferindo a elas uma nova roupagem capaz de ludibriar os incautos e aqueles que desejam que suas perspectivas discriminatórias sejam confirmadas.
A questão posta é, essencialmente, a de adequação de um modelo usado de forma nacional e que se mostra inadequado. Chamar a pessoa que deu a luz à criança de parturiente e não de mãe se mostra coerente não apenas sob a perspectiva das pessoas transgênero mas também atende a um outro parâmetro que permeia nossa sociedade, que são as hipóteses de reprodução humana assistida, especialmente quando se pensa na figura da gestação em substituição.
Pela própria essência do que constitui a figura da gestação em substituição10 é evidente que aquela pessoa que pariu a criança não é a mãe daquele bebê, não sendo nem mesmo necessário se embrenhar em discussões referentes a sentimento ou afeto. Tal modalidade de gestação tem uma natureza contratualizada, de sorte que a expressão “mãe” não guarda conexão com a relação existente entre a parturiente e aquela criança.
É indispensável que se consolide a ideia norteadora de que não podem os formulários elaborados e utilizados de forma geral pelo Poder Público fomentar a discriminação, haja vista que uma DNV na qual conste “mãe” no campo que haveria de ser destinado à parturiente pode encerrar em si uma série de dificuldades, promovendo uma segregação e institucionalizando uma discriminação atentatória as diretrizes basilares do nosso Estado Democrático de Direito.
Importante se consignar também que o modelo da certidão de nascimento estabelecido pelo provimento 63 do CNJ já não traz em seu corpo as expressões “mãe” ou “pai”, mas sim filiação, que de forma mais includente possibilita que no campo sejam inseridos os nomes dos ascendentes daquela pessoa independentemente de qualquer consideração de gênero.
Não é possível se admitir que o Poder Público continue fechando os olhos para as ofensas perpetradas contra as minorias sexuais, sendo ainda mais degradante se constatar que muitas das condutas segregatórias que atingem esse grupo tão vulnerabilizado emanam do Estado que haveria de protege-las e garantir-lhes o real acesso aos seus direitos fundamentais.
Mas ver formulários e modelos pautando discussões que envolvem o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana desse grupo extrapola todos limites. Parece anedótico, mas é, em verdade, algo que coloca em risco a existência de quem já enfrenta tanta segregação, estigma e discriminação.
Pode ser fatal.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, 1, p. I - IV, 2022.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 96.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65-66.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 7.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A união homossexual ou homoafetiva e o atual posicionamento do STF sobre o tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo: Metodista, v. 8, 2010.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, 1, p. 117–147, 2024.