Direito e Sexualidade

O impacto de gênero das bets

Leandro Reinaldo da Cunha comenta sobre o fenômeno das apostas no Brasil, que impacta milhões de pessoas.

24/10/2024

O fenômeno das apostas tomou conta do Brasil de uma maneira assustadora, atingindo um enorme número de pessoas e famílias. Nos últimos tempos fomos inundados com reportagens relatando os perigos do “jogo do tigrinho” e a forma como os influenciadores digitais participam desse fenômeno. 

O Banco Central estima que em agosto de 2023 cerca de 24 milhões de brasileiros realizaram ao menos uma transferência de PIX para empresas de jogos de azar e apostas1. Acredita-se que seja um mercado que alcançará cifras de mais de 150 bilhões de dólares em 2030, com um crescimento de 11% ao ano a partir de 20232.

A enorme quantidade de dinheiro envolvida nesse mercado faz com que a publicidade das empresas de apostas, as chamadas “bets”, seja uma constante no cotidiano de todas as pessoas, estejam ou não elas interessadas nesse tipo de jogo. Basta considerar que o campeonato brasileiro de futebol profissional masculino é patrocinado por uma empresa de apostas, e quase todas as equipes que disputam esse certame tem patrocínios dessas empresas.

Ainda que os jogos de azar sejam proibidos no Brasil, a lei 13.756/18, autorizou a prática de apostas de quotas fixas (modalidade que permite ao apostador que saiba, já no momento em que realiza sua aposta, quanto poderá ganhar caso acerte o resultado). 

Recentemente, a lei 14.790/23, estabeleceu as diretrizes para o funcionamento das apostas esportivas de cota fixa, com a definição dos lucros das empresas (retenção de até 88% do faturamento bruto, 2% destinados à Seguridade Social, e os 10% restantes distribuídos entre áreas como saúde, educação e segurança pública), além da alíquota de 15% de Imposto de Renda sobre os ganhos. 

Uma apreciação mais superficial do tema poderia conduzir à equivocada conclusão de que a onda das “bets” atinge de forma indiscriminada a todas as pessoas, independentemente dos seus marcadores, sendo uma crise que recai sobre a população de forma abrangente. Todos estaríamos sujeitos aos reflexos das apostas esportivas da mesma forma o que, de fato, não é uma verdade.

As apostas podem culminar no “transtorno do jogo”, condição de saúde mental na qual a pessoa expressa um comportamento de jogo compulsivo e incontrolável, com impactos negativos significativos em sua vida (pessoal, social e profissional). Ele se manifesta como uma incapacidade de resistir ao impulso de jogar, mesmo tendo plena ciência de toda a gama de consequências negativas que podem decorrer de tal conduta, que gera problemas financeiros, danos aos relacionamentos e sofrimento psicológico.

Esse transtorno, catalogado no DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais como um transtorno do controle de impulso, possui características similares aos da dependência química, trazendo consigo uma ânsia por apostar, com valores cada vez mais elevados, em busca de ganhos maiores, conduzindo o jogador a um comportamento altamente pernicioso, capaz de interferir gravemente em suas atividades diárias e causar sofrimento clínico, impondo até mesmo a necessidade de intervenção terapêutica (CID 6C50 - transtorno de jogo).

Estudos revelam que a prevalência global do transtorno do jogo é de 1,9%, atingindo 1,3% da população na Europa e 5,3% na América do Norte, com homens sendo considerados 3,4 vezes mais propensos do que as mulheres a se envolverem em jogos de azar problemáticos3. O NCPG - National Council on Problem Gambling afirma a prevalência de homens nos jogos problemáticos (entre 70% a 75%), segundo dados do NPGH - National Problem Gambling Helpline.4

A Universidade de Liverpool constatou que 78,4% das contas ativas de apostas esportivas são de homens5, enquanto a Universidade de Lethbridge revelou que 82,4% dos jogadores online canadenses são homens, em contraposição a apenas 17,6% de mulheres, podendo-se verificar que cerca de 25% dos homens apostam em comparação com 17% das mulheres6, como indicado no Relatório de Estatística de Gênero em Jogos de Azar.7

Porém, apesar de uma maior incidência entre os homens, é possível se aferir que quando mulheres desenvolvem o transtorno do jogo essa patologia as atinge mais tarde na vida, sendo acompanhada de um potencial de rápida progressão para uma situação realmente preocupante. A isso há de se acrescer o fato de que, com uma saturação do mercado masculino, a tendência é que as casas de apostas passem a focar cada vez mais nas mulheres visando sua expansão no mercado.8

Segundo uma perspectiva direta é certo se afirmar que a incidência de problemas com as apostas recai mais sobre os homens, contudo a maneira como as mulheres são impactadas se mostra bem mais preocupante. Elas são duplamente oneradas pelos gastos com as apostas: pagam pelo seu próprio vício e ainda são atingidas pela derrocada econômica que acomete os homens, pois o dinheiro por eles destinado às apostas muitas vezes é retirado do montante que a elas seria destinado, por exemplo, a título de pensão alimentícia (seja para elas ou para seus filhos).

O vício em apostas, que tem se revelado como uma das causas que mais crescem entre os motivos que tem levado as pessoas a se divorciarem9, também impacta na relação com os filhos, pois crianças e adolescentes podem se sentir ainda mais atraídas por esse mundo ao verem seus pais mergulhados nesse universo.

Ainda nessa seara das consequências das apostas para as famílias seria possível se considerar a possibilidade que tal tipo de conduta possa, em razão da natureza da realização de apostas, ensejar na configuração de prática de ato contrário à moral e aos bons costumes, que, nos termos do art. 1.638, III do CC, poderia ser causa a dar azo à perda do poder familiar.

Caso isso venha a ocorrer, considerando a maior incidência de casos de transtorno de jogo entre os homens, a perda do poder familiar acarretará uma sobrecarga ainda maior sobre aquela mãe.

A fim de tornar a questão ainda mais clara basta considerar que 3 bilhões de reais foram gastos com apostas no mês de agosto de 2024 por beneficiários de Bolsa Família, segundo Banco Central, revelando que famílias de baixa renda são “as mais prejudicadas pela atividade das apostas esportivas”. O levantamento realizado constatou que 17% dos que receberam o benefício no mês de dezembro de 2023 realizaram apostas.10

Os dados coletados mostram que “a média gasta pelos beneficiários do programa social com as apostas no período foi de R$ 100”, e que do montante total dos apostadores, “4 milhões (70%) são chefes de família (quem de fato recebe o benefício)”, que enviaram, via PIX, R$ 2 bilhões para as bets. O mais inquietante é se constatar que tal levantamento englobou apenas 36 empresas e não considerou pagamentos realizados com cartão de crédito e débito11.

Atualmente mais de 200 casas de apostas estão autorizadas a funcionar no Brasil12, o que nos leva a acreditar que essa realidade como um todo seja bastante pior do que a relatada.

Considerando que o Bolsa Família oferta um valor baixo para os beneficiários (mínimo de R$ 600, ao qual se acresce R$ 150 a cada filho de até seis anos), é patente que o montante recebido por meio programa de transferência de renda do governo Federal não deve e nem pode ser utilizado para apostas.

Salvo exceções, que certamente não se enquadram no caso daqueles que recebem o Bolsa Família, o montante destinado às apostas é valor que anteriormente seria direcionado a outros fins necessários à mantença daquela pessoa e seus filhos, e que, agora, encontra uma outra finalidade, colocando em risco a própria subsistência daquela pessoa.

O vício em jogos até mesmo tem causado a retomada da discussão de temas que se julgava de baixa incidência prática até então, como a análise da condição do pródigo (art. 4º, IV do CC), e a consequente interdição pela qual pode vir a passar.

Com a constituição patriarcal da nossa sociedade que confere às mulheres os deveres de cuidado em contraposição da responsabilidade (nem sempre assumida) dos homens de prover o sustento do lar, o fato das apostas estarem sendo realizadas em um maior número por homens enseja na exposição daquela mulher a uma vulnerabilidade ainda maior. 

Como de costume, toda a análise realizada para a liberação das casas de apostas no Brasil não teve a participação efetiva de mulheres (apenas uma integra a chamada “bancada das bets”), tampouco aqueles que ali estavam consideraram os desdobramentos ou reflexos da autorização do funcionamento das bets para além da simples utilização do dinheiro e da arrecadação que isso poderia ensejar.

É mais uma situação em que se constata como a estrutura consolidada de nosso Estado age de forma ofensiva sem nem ao menos ponderar os impactos de certas atitudes sobre as mulheres. A concepção do padrão passa ao largo dos interesses e necessidades daqueles que são tidos como socialmente minoritários.

Enquanto elas se veem compelidas a cuidar dos filhos, privar-se de uma vida similar àquela franqueada aos pais dessas crianças, já que a elas não se confere a discricionariedade de simplesmente abandonar os filhos como fazem os homens, são obrigadas a, de qualquer maneira, prover o sustento de sua prole.

Aos pais, o inadimplemento dos deveres alimentares no máximo pode culminar com uma pena de prisão de 3 meses. A elas, o não cumprimento dos deveres financeiros dos pais para com seus filhos impõe que venham a tomar as medidas necessárias em busca do dinheiro para que eles tenham as condições mínimas para sua subsistência.

São elas que acabam se vendo levadas a buscar acesso a empréstimos, pelas vias formais e por vezes até mesmo pelas mãos de agentes que atuam fora do mercado, colocando em risco não só o pouco patrimônio que possuem mas também sua integridade. Também são elas que muitas vezes se encontram sem outra alternativa que não seja prestar serviços sexuais mediante pagamento para que consigam garantir o mínimo para a subsistência dos filhos. 

Não sei se alguém conhece algum caso, mas eu, particularmente, nunca ouvi falar de um homem que teve que se prostituir para garantir o sustento dos filhos. 

Para afastar de pronto qualquer tipo de tecnicidade que pode vir de algum sujeito descolado da realidade, não me venha falar em buscar outros meios para o sustento, que poderiam promover ação de alimentos ou a execução desses, até mesmo com a possibilidade de prisão do devedor. O fato é que o mundo da teoria em que alguns vivem tem uma dinâmica distinta daquele em que estão as pessoas de verdade que veem seus filhos passando necessidades ante ao não adimplemento dos deveres oriundos do poder familiar de pais que não cumprem com o que lhes cabe.

E agora ainda temos que lidar com mais um obstáculo: o vício em apostas, que ganha mais espaço em nossa sociedade ante a liberação do Poder Público. Talvez não seja possível afirmar nesse momento, ante a ausência de dados estatísticos, que o Estado está fomentado inadimplemento dos deveres alimentares, mas certamente está proporcionando meios para que isso ocorra. 

Essa escolha pela liberação das apostas que ignora os interesses e a especial proteção que deve ser destinada a crianças e adolescentes, prevista na CF/88, não pode restar incólume. Mais uma vez vemos os efeitos do Estado esquizofrênico13 atingindo de forma mais impactante aqueles mais vulnerabilizados, numa manifesta expressão de uma estrutura estatal que institucionaliza a escolha por majorar os riscos enfrentados por aqueles que mais precisam de proteção.

A sobreposição de vulnerabilidades atingida abarca não só as mulheres, mas se estende às crianças/adolescentes, além de ter um impacto ainda mais nefasto sobre os mais pobres. Mas os interesses econômicos e a possibilidade dos ganhos na arrecadação se sobrepõem à saúde e à higidez daqueles mais vulnerabilizados, como ordinariamente acontece. 

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 DELOSSA, Georgia; BROWNE, Matthew. The influence of age on gambling problems worldwide: A systematic review and meta-analysis of risk among younger, middle-aged, and older adults. Journal of Behavioral Addictions. V. 13, N. 3, 2024.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 Disponível aqui.

11 Disponível aqui.

12 Disponível aqui.

13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

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Colunista

Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa "Conversas Civilísticas" e "Direito e Sexualidade", certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de "Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil" e de "Sucessões. Colação e sonegados", além de inúmeros artigos jurídicos.