Com o fim dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é possível se fazer algumas pequenas digressões acerca do poder que as competições esportivas dessa grandeza têm de mobilizar a sociedade em torno não só dos esportes, mas também de questões social de elevada relevância.
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 nos brindaram com inúmeras celeumas que tangenciaram aspectos da sexualidade, colocando um enorme holofote sobre temas extremamente importantes mas que são ordinariamente ignorados pelas pessoas como um todo.
Evidente que o mundo dos esportes representa um campo em que a sexualidade é explícita como elemento distintivo, haja vista que poucas são as modalidades esportivas disputadas de forma não segregada pelo sexo dos participantes1. Ainda que segregada pelo sexo (parâmetro biológico) ordinariamente se costuma nomear as modalidades de masculinas ou femininas, prevalecendo o padrão da binaridade de gênero2.
Mas essa questão da divisão dos competidores segundo o sexo visando garantir um equilíbrio esportivo será relevada, nesse primeiro momento, a uma análise mais ampla e social envolvendo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, que apresentou uma série de elementos direcionados à inclusão e diversidade que assustaram os mais conservadores.
Mas, em verdade, não aconteceu nada demais. Apenas se deu alguma visibilidade às minorias sexuais, fato que nunca acontecera anteriormente. Assim, a cerimônia de abertura não foi uma inovação por revelar algo desconhecido, mas sim por conferir espaço a quem normalmente não tem, fato esse, sim, que pode ser considerado um marco.
A chamada Cidade Luz direcionou seu olhar e deu espaço para que não só a belíssima arquitetura parisiense fosse demostrada ao mundo, mas também permitiu que muitos constatassem a existência de um enorme grupo de pessoas que são reiteradamente ignoradas e ocultadas do chamado mainstream. Dessa vez as discussões sobre a sexualidade foram para além da tradicional situação do atleta samoano usando saias.
Corpos dissonantes e diversos foram apresentados para milhões de pessoas em um dos eventos mais assistidos do planeta, suscitando questionamentos e dúvidas quanto aquelas pessoas que não se enquadravam no normal e que estavam aparecendo nas telas de cada um. Uma série de afrontas ao padrão binário foram simplesmente colocadas à visão de todos, gritando que aquelas pessoas podem até ser distintas do padrão mas que elas efetivamente se fazem presentes em nossa sociedade.
São expressões da sexualidade que se apartam do tradicional mas que nem por isso deixam de existir e de merecer toda a guarida jurídica que há de ser ofertada a toda e qualquer pessoa3. Pessoas com vestes tidas por femininas, cabelos longos e com barba no rosto causaram questionamentos: homem ou mulher? A confusão se instalou em diversas pessoas que não conseguiram inserir aqueles corpos dentro dos dois parâmetros que estão acostumadas.
Porém o fato de não conhecerem essa diversidade ou não estarem acostumadas com a sua existência não faz com que essas pessoas não se façam presentes em nossa sociedade. Desconhecer que algo existe não é culpa desse “algo”, mas sim uma carência de interesse em buscar saber sobre o que mais há no mundo além dos limites da bolha em que se está.
A cerimônia ganhou contornos ainda mais subversivos quando alguns vislumbraram uma ofensa a símbolos religiosos, um ataque ao cristianismo pois teria ocorrido uma reprodução caricata do quadro “A última Ceia” de Leonardo Da Vinci, ao se colocar uma série de pessoas LGBTQIAPN+ dispostas diante de uma mesa, enquanto um personagem azul cantava.
No entanto a passagem retratava o Deus grego Dionísio (Baco) em uma grande festa pagã, como manifestou o diretor criativo da cerimônia, ao mesmo tempo em que inúmeras pessoas associaram a imagem com outras obras de arte, como “A festa dos deuses” de Giovanni Bellini ou a de Jan van Bijlert.
Nesse ponto é preponderante se consignar que há uma grande quantidade de variações da obra de Da Vinci que já foram produzidas em tom jocoso, mas como não traziam qualquer elemento de sexualidade, não enfrentaram tamanha ojeriza dos mais religiosos. Há imagens acessíveis na internet em que a mesa da última ceia está composta de personagens da cultura dos anos 80 (com o ET de Steven Spielberg ao centro), cozinheiros famosos, personagens de desenhos animados (Simpsons), entre outros, e nenhuma delas encarou tamanha rejeição dos religiosos.
Com uma audiência estimada em 1 bilhão de pessoas no mundo todo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 trouxe ao chamado grande público, não sem pagar um preço por isso, uma série de expressões da sexualidade que não são ordinariamente apresentadas nos grandes veículos de comunicação, o que pode explicar o motivo de parte das reações refratárias enfrentadas.
Já após a abertura surgiram questionamentos relacionados à sexualidade envolvendo os esportistas que lá estavam para disputar os Jogos Olímpicos. Pudemos ver ponderações sobre a guarda da prole de uma competidora de atletismo, a velocista Flávia Maria de Lima, competidora da prova de 800m rasos, que afirma que o pai de sua filha tenta usar a participação dela em competições esportivas para questionar a guarda da filha4.
Houve também o relato de Caio Bonfim, que conquistou a medalha de prata na marcha atlética 20km, que revelou ter enfrentado o preconceito com xingamentos desde a primeira vez que foi marchar na rua e foi xingado por “rebolar”, em alusão à forma característica que identifica a modalidade por ele praticada5.
Ganhou alguma visibilidade também a questão de um dos atletas do vôlei de areia da Holanda que foi constantemente vaiado pela torcida por ter sido condenado em 2016 pelo estupro de uma garota de 12 anos (ele tinha 19 anos na época dos fatos) e que não pode ficar na Vila Olímpica, por decisão do Comitê Olímpico Holandês6.
Contudo o assunto olímpico que realmente ganhou notoriedade estava revestido de uma aura de “justiça competitiva” mas que em verdade foi uma clara expressão da ignorância e preconceito que acompanham as minorias sexuais. Trata-se do caso das boxeadoras, Lin Yu-ting (Taiwan) e Imane Khelif (Argélia), que tiveram questionado seu sexo/gênero e, ato contínuo, a regularidade de sua participação nos Jogos. A exposição e os ataques sofridos por Imane Khelif ganharam uma dimensão maior em razão da desistência da atleta italiana Angela Carini logo no início da luta contra ela, tendo afirmado nunca ter sentido um soco tão forte.
Daí seguiu-se uma série de questionamentos acerca do sexo, gênero e identidade de gênero da atleta argelina, com alegações de que ela não seria mulher e que não seria justo um “homem” lutar contra mulheres. A situação foi ainda mais agravada quando começaram a apresentar como fundamento o fato de Imane Khelif (e Lin Yu-ting) ter sido desqualificada pela Associação Internacional de Boxe (IBA) do Campeonato Mundial de Boxe de 2023, segundo o argumento de que não atendia os "critérios de elegibilidade" fixados pela entidade.
Ocorre ainda que a entidade, que sequer apresentou os resultados dos exames realizados, desde 2019 não é mais reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional, tendo este assumido a organização da modalidade desde os Jogos de Tokio 2020.
Consigne-se que tanto Imane Khelif quanto Lin Yu-ting participaram dos Jogos Olímpicos de Tokio 2020 mas a sexualidade das atletas não foi objeto de atenção à época, muito provavelmente por que elas foram derrotadas nas fases iniciais (Imane na 1ª fase e Lin na 2ª) e não chegaram a disputar medalhas7.
Evidente que mais do que a vitória ou as conquistas o que chamou a atenção daqueles que se insurgiram contra Imane Khelif está no universo da passabilidade8, na alegação do fato de que ela “parecia homem”, havendo até mesmo quem compartilhasse vídeos em redes sociais com “evidências” de que seria possível se constatar um volume sob o calção da boxeadora que seria seu pênis.
Aqui percebe-se claramente o impacto da passabilidade como critério crucial quando das análises sobre a sexualidade das minorias sexuais, haja vista que se a atleta expressasse socialmente características tradicionalmente associadas à feminilidade, especialmente nos parâmetros esculpidos pela sociedade eurocentrada, certamente a questão não seria suscitada, sendo tão somente enaltecido o seu elevado potencial atlético.
O que se tem de informação efetivamente é que Imane Khelif seria uma pessoa intersexo. Mas a compreensão disso não se mostra nada simples, bastando que se tenha em mente que podem haver 150 hipóteses distintas de tal condição, como revela obra recentemente lançada por Thais Emilia de Campos dos Santos, Céu Ramos Albuquerque e Dionne do Carmo Araújo Freitas9.
Em linhas bastante singelas tem-se por intersexo aquelas pessoas que apresentam uma condição vinculada ao sexo que não se insere “perfeitamente nos parâmetros estabelecidos do homem/macho e mulher/fêmea, seja fenotipicamente ou genotipicamente”, colocando-a em um espectro distinto do critério cromossômico binário XX/XY ou daquele de correspondência direta do “homem/macho com pênis e bolsa escrotal ou mulher/fêmea com vagina, útero e ovário, revelando um sexo anatômico atípico”10.
O desconhecimento acerca do que seja a intersexolidade (condição experienciada por quem é intersexo) é tamanho que o primeiro argumento apresentado por aqueles que atacaram a atleta era de que se tratava de uma pessoa transgênero, com questionamentos acerca do fato de ter ela realizado ou não o processo transgenitalizador. Não foram poucos os arautos do saber adquirido no mundo das redes sociais que asseveraram que “bastava olhar se ela tinha pênis ou não”.
Imane Khelif não é uma pessoa transgênero, não expressando uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e aquele ao qual entende pertencer11, contudo até mesmo se fosse essa a sua condição não se admitiria uma ponderação tão pueril quanto a de se olhar a genitália da atleta, como trago no meu Manual dos Direitos Transgênero, com um capítulo todo dedicado à questão dos esportes.
A intersexolidade (característica de quem é intersexo, distinta da intersexualidade, aspecto atrelado à identidade de gênero)12 é condição que atinge, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1,7% da população mundial, contudo tal número é questionado considerando que existe uma larga parcela da população que jamais realizou exames para constatar a composição exata de seu cariótipo.
Assim, provoco a quem está acessando a esse material a responder a um questionamento: você tem certeza de que é homem ou mulher? Como sabe que possui um cromossomo XX ou XY?
Com a amplitude das condições intersexo e a baixa incidência de exames realizados é bem possível que muitos que estão tecendo suas manifestações contrárias a pessoas intersexo também o sejam e não saibam. Basta considerar, por exemplo, que quem apresenta Síndrome de Insensibilidade Androgênica Completa tem uma genitália externa típica de uma mulher/fêmea ao nascer, além de aparentarem ser “mulheres mais femininas”, ainda que seu genótipo seja XY, tradicionalmente atribuído ao homem/macho.
Retornando os questionamentos esportivos o que se poderia discutir é se tais pessoas, com tal característica genética, gozariam de algum benefício que atentaria contra o equilíbrio esportivo. E é evidente que as características físicas das pessoas constituem um diferencial que pode impactar em seu desempenho, contudo não se estabelece nenhuma celeuma com relação aos esportistas que se mostram mais altos ou mais fortes que os demais.
Porém se há algum elemento que possa ser relacionado com a sexualidade que venha a conferir uma melhora no desempenho o tradicional preconceito com relação a quem não se enquadra no padrão ganha espaço, fazendo com que possamos questionar se o cerne da discussão está no equilíbrio esportivo ou em um preconceito velado13.
De toda sorte é de extrema importância se afirmar que tecnicamente é um enorme equívoco chamar os exames e verificações realizados em competições esportivas como “teste de gênero”. O que se realiza, em verdade, é um exame para se aferir a quantidade de testosterona presente no sangue daquela pessoa, e, em seguida, se verifica se os valores encontrados estão em consonância com um padrão estabelecido do que seria o “normal” para homens e para mulheres.
Não se trata de verificar, portanto, se aquela pessoa é homem ou mulher (seguindo os parâmetros do sexo), tampouco se é do gênero masculino ou feminino (já que o gênero está relacionado com a expressão social da sexualidade daquele indivíduo). O que está em foco é se a produção hormonal constatada é compatível com o que é tido como padrão para aquele sexo, o que nada tem a ver com o gênero.
No caso de Imane Khelif é interessante notar que as desculpas para fundamentar o preconceito vão mudando, sempre com o objetivo de conferir alguma fundamentação técnica à discriminação que se está praticando. Primeiro se afirmava que ela não parecia mulher ou feminina o suficiente, depois que seria uma pessoa transgênero, em seguida que ainda que não fosse transgênero parecia ser um homem e, finalmente, que até poderia ser mulher mas os hormônios… Trata-se de uma construção muito próxima daquela apresentada contra a participação de pessoas negras em certas modalidades esportiva.
Preponderante que se tenha em mente que em território brasileiro as condutas que tenham como fundo uma ofensa com base na condição de minoria sexual são passíveis de serem englobada no que prevê a ADO 26, e, portanto, configurando racismo ou injúria racial. Assim, falas e publicações em redes sociais realizadas no Brasil podem configurar um tipo penal imprescritível, inafiançável e de ação pública incondicionada, como trouxemos em coluna anterior14.
Ainda que muitos tentem blindar suas manifestações e escusar seu preconceito nas redes sociais com a carta da liberdade de expressão, com afirmações do tipo “eu acho” ou “na minha opinião”, é premente que, mais uma vez, se consigne que não se trata de tema em que as concepções pessoais devam prevalecer ou gozem de qualquer relevância.
Vivemos dias que milhares se manifestaram nas redes sociais como se fossem especialistas em sexualidade, fisiologia, hormônios sem nunca terem estudado sobre tais temas. São questões técnicas que não comportam a expressão de opinião, sendo as “opiniões” expostas apenas a mais pura revelação do tamanho da ignorância e do preconceito.
“Não sei, não estudei, não sou especialista mas na minha opinião…”. Sua opinião sem fundamento técnico apenas fomenta a desinformação, revela preconceito e pode caracterizar sua homotransfobia.
Em suma, podemos considerar que esses Jogos Olímpicos de Paris 2024 tiveram uma dimensão distinta daquela que era de se esperar ao menos no campo da sexualidade, propondo para a população a busca de informações sobre as minorias sexuais.
Agora, se a pessoa foi apresentada a tais elementos e preferiu não se inteirar do tema, passando a uma realidade distinta daquela obscura em que vivia, e segue professando sua miríade de ofensas às minorias sexuais, estamos evidentemente diante de alguém que escolheu o preconceito, a segregação, a discriminação e a violência às minorias, em frontal ataque aos princípios mais essenciais de um Estado Democrático de Direito.
E isso diz muito sobre essa pessoa.
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1 Nos Jogos Olímpicos Paris 2024 apenas as modalidades de hipismo foram disputadas sem distinção de gênero.
2 Disponível aqui.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Ambas se sagraram campeãs olímpicas nessa edição dos Jogos.
8 Disponível aqui.
9 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; ALBUQUERQUE, Céu Ramos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. 150 variações intersexo. Paraná: CRV, 2024.
10 Disponível aqui.
11 Disponível aqui.
12 Disponível aqui.
13 Disponível aqui.
14 Disponível aqui.