Para além do mundo espetacularizado e de extensa exposição das redes sociais existe um outro no qual a grande maioria da população de verdade vive. E nele é possível se sentir os respingos das manifestações provenientes daquela sociedade paralela constituída por seres que de tudo sabem e sobre tudo opinam.
Situações corriqueiras que tangenciam aspectos da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)1 podem ganhar contornos delicados quando expostas a lentes capazes de distorcer de maneira tão substancial a realidade. Na sociedade da informação em que estamos inseridos, em que a superexposição passou a ser a normalidade para uma grande parcela das pessoas, uma conduta que outrora seria considerada ordinária ou não chegaria ao conhecimento de todos pode passar a ser objeto de escrutínio público.
Sob o olhar dos detentores do poder conferido pela ágora dos tempos modernos, norteados pelo viés de confirmação que satisfaz a dopamina que é diretriz dos algoritmos atuais, associado ao comportamento de manada, vivemos uma era de inquisição 2.0, com julgamentos dos mais variados e vereditos fundamentados exclusivamente em ignorância, preconceito, achismos e lugares comuns.
Não são poucas as hipóteses em que a validação pública da conduta alheia se faz presente, especialmente quando associada a temas conexos com a sexualidade, como trazido na última coluna ao tratar da intimidade dos desejos expressados na constância de um relacionamento. Contudo nesse momento me aterei a uma das mais espinhosas correlações que se pode estabelecer em sede de sexualidade: A sexualidade de crianças/adolescentes.
Dentro desse tema amplo e complexo a presente coluna fará um direcionamento ainda mais pontual, ponderando sobre a incongruência com que certas situações são analisadas, seguindo parâmetros que vão da extrema proteção à criança e ao adolescente ao seu ponto diametralmente oposto de total menosprezo.
Alguns preceitos básicos de sustentação dessa matéria precisam ser fixados para ao menos mitigar o risco de que o texto não seja compreendido, em que pese a certeza de que muitos poderão criticá-lo sem nem mesmo chegar a ler essa frase em específico, seguindo a tradição já estabelecida de atacar o todo apenas com a leitura do título.
De qualquer sorte é essencial que se tenha patente que a sexualidade é aspecto inerente a todas as pessoas, evidenciando, por óbvio, que ela está presente também nas crianças e nos adolescentes, de maneira muito mais elementar do que podem sugerir pensamentos enviesados.
Considerando a sexualidade em sua acepção mais ampla, bem como em seus desdobramentos abrangentes, convido-lhes a ponderar quanto a 3 situações distintas para se aferir a seletividade da indignação das pessoas conforme a natureza do fato apresentado, o que nos conduz a questionar: Por que certas questões são naturalizadas e colocadas em um locus de irrelevância enquanto outras são execradas?
1. Qual a idade em que a criança/adolescente pode começar a ter um relacionamento amoroso?
Numa análise lastreada na legislação vigente pode-se afirmar que inexiste previsão expressa.
O ordenamento jurídico tipifica as relações sexuais com menores de 14 anos como estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), o que leva à conclusão que, de início, quem não for menor de 14 anos pode manter relações sexuais, sem que nos aprofundemos nas discussões havidas relativas à consciência e ausência de vulnerabilidade reconhecida pelos tribunais em certos casos em que a prática sexual ocorre de forma consentida por quem não tenha atingido esse marco etário.
Tem-se também a vedação expressa ao casamento de menores de 16 anos (art. 1.520 do Código Civil) que, conforme já defendemos em coluna anterior2, parece referir-se muito mais ao impedimento para a celebração do ato solene denominado casamento do que para a constituição de uma família.
Resta, assim, válida a pergunta: Com qual idade pode começar a namorar?
Socialmente podemos encontrar as mais variadas respostas, que serão influenciadas por elementos diversos: O respondente é do gênero masculino ou feminino? Tem ou não filhos? Estes são do gênero masculino ou feminino? A pessoa em questão integra a sua prole ou está entre seus parentes?
Mas ao mesmo tempo é relevante se questionar com qual idade as crianças começam a ser expostas a perguntas dos adultos quanto aos "namoradinhos(as)". Para evitar maiores digressões, tomemos o início da educação formal como parâmetro.
São comuns os casos em que os pais referem-se a um determinado coleguinha de escola como sendo o "namoradinho(a)" de seu filho(a). Por mais inocente que possa parecer tal comentário, mesmo que desprovido de uma real intenção de conferir uma conotação amorosa à frase, acabam por normalizar algo que não pode ser naturalizado. Crianças, na acepção técnica da expressão, não devem namorar, tampouco se pode ter como plausíveis tais perguntas para que essas crianças não tenham como coerente a ideia de que é normal ter um "namoradinho(a)" já naquela idade.
Até mesmo os autointitulados defensores da "família e dos bons costumes" são contumazes em manifestações desse jaez, que acabam por inferir uma perspectiva de sexualidade não desejada em crianças.
Não pergunto qual a idade ideal para que uma pessoa comece a namorar mas sim qual a juridicamente aceita. E pontuo que a resposta pode desencadear discussões severas entre, por exemplo, pais separados com relação à educação dos filhos, nos moldes do fixado pelo poder familiar (art. 1.634 do Código Civil).
A reboque da dúvida primária posso trazer outras que lhe são decorrentes: Com qual idade o(a) pai/mãe pode autorizar que seu filho/filha possa dormir em casa com namorado(a)? Ou qual a idade que pode dormir na casa do(a) namorado(a)? Com quantos anos deve permitir que tenha relações sexuais em sua casa?
Havendo negativa do(s) genitor(es) essa criança ou adolescente poderia pleitear judicialmente a autorização para tanto? Em caso de conflito entre o entendimento do pai e da mãe quem o dirimiria? Com que base legal?
Não sou partidário de que a legislação estabeleça qual seria a idade correta para se começar a ter um relacionamento amoroso, contudo não posso ignorar o fato de que a ausência de um marco temporal traz reflexos.
2. Com qual idade uma criança/adolescente pode começar a ter preocupações estéticas?
Inúmeras são as possibilidades que as pessoas têm para alterar a sua aparência com o objetivo de tornar-se mais bela ou atraente. Algumas dessas condutas são comuns e realizadas desde a mais tenra idade, ainda que possam apresentar uma conotação sexualizada que não se mostra apropriada para uma criança ou adolescente.
Com o desejo de ostentar uma imagem tida socialmente como mais bonita ou mesmo adequada a certos padrões as pessoas acabam valendo-se de meios que podem majorar marcadores de gênero, enaltecendo caracteres físicos que podem gerar um maior interesse em razão da atração afetivo/amorosa/sexual que podem expressar.
Quando apreciado com relação a crianças ou adolescentes, principalmente do gênero feminino, corre-se o risco de que tais práticas possam encerrar uma sexualização infantil, o que nos impõe considerar qual a faixa etária em que agir de tal forma pode ser considerado juridicamente apropriado.
Com qual idade uma menina pode começar a usar maquiagem? Ou a fazer procedimentos visando alterar a estrutura dos seus fios de cabelo? Ou mesmo a se depilar?
A maquiagem é para ficar mais bela para ela, para atender a uma "moda" ou para ressaltar característica com o fim de seduzir alguém? Qualquer das respostas pode ser admissível para uma pessoa adulta, todavia a última delas se mostra totalmente vedada caso se esteja diante de uma criança.
Mas de uma criança de que idade?
Com qual idade passa a ser adequado se permitir que uma menina venha a se maquiar? Ou qual seria a idade que se mostraria admissível se presentear uma menina com um kit de maquiagem? Seria coerente se pensar em "maquiagem infantil"? Me parece que a indústria não se preocupa muito com isso.
Talvez até mesmo muitos considerem meus questionamentos excessivos ou alarmantes, contudo reitero o meu convite a que ponderem sobre os aspectos levantados.
Alguns desses temas situam-se em uma região em que se poderia sustentar o argumento de que a questão seria de saúde ou higiene, contudo ainda assim é de se considerar a manifesta presença do traço estético, como é o caso da depilação. Novamente trabalhando com um recorte de gênero claro, questiono: com que idade é admissível se pensar em depilação em meninas?
A resposta muda se essa depilação for das axilas, pernas, rosto ou se for uma depilação íntima, dos pelos da região genital? Se foi o pai quem levou a menina para a prática de tal ato e não a mãe, a resposta será diferente?
Alterações na aparência física de uma pessoa podem advir da mera vontade de mudar, de pressões sociais ou culturais, de influências do meio, de necessidades de saúde. Mas seja qual tenha sido a razão é evidente que elas podem revelar um caráter sexualizador que não se mostra desejável quando se tratar de uma criança.
Agora, para aprofundar o nível de complexidade, considere se todos esses atos forem praticados por uma criança com o objetivo de afirmação de seu gênero de pertencimento por se tratar de uma criança transgênero? Acrescente-se que, refutando a ciência consolidada, há até mesmo quem negue a existência de crianças que divirjam a cisgeneridade...
A premissa básica que conduz essas considerações está na concepção de sexualização lastreada no entendimento de que condutas que têm o potencial de reforçar ou enaltecer marcadores de gênero tradicionalmente associados ao masculino, mas principalmente ao feminino, têm o condão de gerar uma exposição de um caractere vinculado à sexualidade. A amplificação da visibilidade dada pode ser tomada por quem a constata com uma conotação que evoque a um interesse afetivo/amoroso/sexual, algo totalmente contrário aos preceitos norteadores da proteção de crianças e adolescentes.
3. Qual a idade em que a criança/adolescente pode realizar intervenções cirúrgicas vinculadas à sua sexualidade?
De forma geral as pessoas mostram-se contrárias a toda intervenção cirúrgicas desnecessárias em crianças, ainda mais em tenra idade. Caso tal procedimento tenha alguma relação com aspectos da sexualidade surge uma repulsa a qualquer menção ao tema, sem ao menos sequer se suscitar a existência de uma necessidade médica.
Os inúmeros especialistas em sexualidade humana forjados nas profícuas academias das redes sociais lançam mão de seus achismos para vaticinarem o que pode ou não pode. E dificilmente estão dispostos a efetivamente estudar sobre o tema, muitas vezes vangloriando-se de sua ignorância ou mesmo fundando seu conhecimento médico com base na Bíblia ou em conceitos religiosos.
Esse enorme cabedal de saber qualificado é que nos leva a absurdos como a imposição de que crianças intersexo que apresentem características físicas que não permitem que sejam enquadradas nos parâmetros tradicionalmente estabelecidos para uma genitália associada ao corpo do homem ou da mulher sejam submetidos a intervenções cirúrgicas de cunho estético para que sua compleição física seja padronizada.3 A intervenção se dá por estética e não por uma necessidade de saúde, o que pode gerar sérias consequências para o futuro dessa criança.
Também se tem como perfeitamente autorizada a circuncisão de crianças cujos pais tenham suas raízes religiosas no judaísmo sem que isso seja um problema. É pratica socialmente respeitada por representar uma tradição religiosa/cultural, contudo o mesmo proceder não se vê com relação a práticas de mesma natureza e bem menos invasivas quando oriundas de religiões de matriz africana.
Uma dada religião professada pelos pais dá sustentação para uma intervenção genital em um recém-nascido, em total desapreço à autonomia dessa criança de poder definir no futuro se quer ou não seguir os preceitos da crença dos pais. Aos pais se confere o poder de mutilar para atender a religião.
Até por mera estética se permite que menores de 18 anos alterem seus corpos, como a possibilidade que meninas de 16 anos, mediante autorização dos pais, façam implante de silicone nos seios.4
Mas aos pais não se dá o direito de atender a necessidades dos filhos de alteração corpórea baseadas em sua identidade de gênero. Uma menina transgênero não conseguiria fazer o tal implante, seja pela previsão do CFM - Conselho Federal de Medicina, que fixa que essas intervenções apenas podem acontecer a partir dos 18 anos, ou do ministério da Saúde que estabelece que o SUS apenas subvenciona procedimentos cirúrgicos visando a afirmação de gênero após os 21 anos, em manifesta afronta ao fato de se atingir a maioridade civil aos 18 anos como preconiza o Código Civil de 2002.5
Tornar um corpo feminino mais sexualizado com implantes de silicone não é vedado, mas conferir maior conformidade a um corpo, com fins terapêuticos, em razão da identidade de gênero, não é permitido, mesmo que se tenha consolidado o grande risco de suicídio que acompanha uma pessoa transgênero, com a primeira das tentativas ocorrendo, em sua maioria, até os 18 anos.6
Feitas as breves considerações sobre as perguntas condutoras da discussão proposta é importante que quem se dispuser a pensar sobre o tema tente assumir um comportamento que seja o mais imparcial possível, sem reagir aos questionamentos ao sabor de seus interesses, mantendo uma linearidade lógica.
Evidente que as características individuais de quem analisa o presente texto podem ser primordiais para a compreensão de todas as situações aqui trazidas. Muito mais do que nas demais situações às quais somos confrontados, considerando que nem sempre é fácil manter a técnica quando se é exposto a uma hipótese que nos toca pessoalmente. Mas a conveniência não pode nortear o pesquisador.7
Como já é tradicional nessa coluna, trago mais inquietações e dúvidas do que certezas. Mas o faço por entender que são questões que merecem atenção e uma apreciação ampla e técnica, a fim de se chegar a algumas diretrizes que se apartem de individualismos lastreados exclusivamente em interesses e convicções permeadas de preconceitos.
Ante a previsão constitucional de que a criança e o adolescente têm seus direitos básicos assegurados com prioridade absoluta (art. 227), associado aos inúmeros conflitos que podem se estabelecer entre os pais, entendo que todas as dúvidas aqui expressadas são relevantes tanto socialmente quanto juridicamente.
Assim, cabe a pergunta final: Crianças e adolescentes estão efetivamente resguardados quando o tema é sexualidade?
1 Leandro Reinaldo da Cunha. A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos. Disponível aqui.
2 Leandro Reinaldo da Cunha. O necessário reconhecimento da união estável de menores de 16 anos passando por uma perspectiva de gênero. Disponível aqui.
3 Thais Emilia de Campos dos Santos; Leandro Reinaldo da Cunha; Raul Aragão Martins. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 - 14294, 2023.
4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 115.
5 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272.
6 Leandro Reinaldo da Cunha. População transgênero, direitos fundamentais e responsabilidade civil. In: Nelson Rosenvald; Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho; Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk. (Org.). Responsabilidade civil e a luta pelos direitos fundamentais. 1ed.Indaiatuba: Editora Foco, 2023, v. 1, p. 275-290.
7 Interessante notar que quando coloquei algumas das discussões que se seguirão para meus alunos do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) alguns experienciaram o interessante conflito existente entre manifestar-se como pai/mãe ou como um profissional da área jurídica. Foi realmente um diálogo muito profícuo.