Da mesma forma que um traço social reconhecido dos seres humanos é a busca pela convivência com outras pessoas, estabelecendo vínculos baseados no afeto, a ruptura desses relacionamentos também é uma realidade. Especialmente após uma liberação das amarras morais e religiosas que impunham uma perspectiva de relacionamentos vitalícios a sociedade atual se caracteriza pela existência de vínculos rompidos.
A positivação do divórcio como meio jurídico a colocar termo ao casamento e viabilizar a constituição de novas núpcias consolidou não só a possibilidade de que a mesma pessoa tenha experienciado a convivência com várias famílias (a atual e as anteriores) mas também criou uma modalidade de vínculo diferenciada: Os "ex".
Numa perspectiva que foi idealizada com base em preceitos religiosos e morais, as pessoas teriam apenas um envolvimento amoroso/afetivo/sexual durante toda a vida. Em verdade, em um recorte claro de gênero, não seriam todas as pessoas, mas sim as mulheres que estariam presas a essa condição, vez que jamais se institucionalizou a possibilidade de "devolução" do homem que já tivesse sido deflorado antes do casamento como ocorria com as mulheres na vigência do Código Civil de 1916.
Saímos de um período em que, em teoria, as pessoas só se relacionariam se fosse para casar para uma realidade em que há uma plena liberdade e autonomia para estabelecer vínculos amorosos/afetivos/sexuais mais ou menos duradouros. Nessa nova configuração social surge a possibilidade de que ocorra uma ampliação do número de pessoas que têm acesso a aspectos personalíssimos da vida de outrem, o que tem o manifesto potencial de fazer com que as linhas da privacidade sejam atenuadas, quando não totalmente extintas, entre os que compartilham momentos íntimos.
Uma consequência desse compartilhamento é a majoração do risco de que informações resguardadas pelo direito à privacidade e à intimidade passem a estar na posse não apenas do destinatário de tais proteções legais1. E quanto maior foi a quantidade de pessoas com quem esteve maior será o risco exposição.
Em termos práticos o grande problema no pós-ruptura de um relacionamento está em como conseguir reestruturar a integridade desse direito à privacidade e à intimidade que fora, no mínimo, mitigado. Tudo o que foi compartilhado e vivenciado enquanto juntos é material potencialmente lesivo caso venha a ser exposto para a sociedade como um todo.
A forma pela qual se constitui esses relacionamentos pode impactar nas bases sobre as quais a presente discussão se assenta, considerando que em sede de casamento e união estável existe algum regramento legal, coisa que não se vislumbra quando as pessoas estão envolvidas em um namoro ou em relacionamentos furtivos.
Enquanto casamento e união estável estão pautados, nos termos da lei, em um respeito mútuo (art. 1.566, V e 1.724 do Código Civil) não existe a previsão de que tal dever se aplica às demais formas de relacionamentos. No entanto nem isso confere qualquer respaldo a cônjuges e companheiros a partir do instante em que se convertem em "ex", haja vista que a dissolução do casamento ou união estável põe termo em todos os direitos/deveres previstos no art. 1.566 do Código Civil. Assim, ainda que se possa aventar a existência de previsão legal de respeito na constância do casamento ou união estável, tais deveres não se imporiam com a sua dissolução.
A situação de fato é que não há previsão legal expressa de manutenção do dever de respeito mútuo para o momento posterior à ruptura do casamento ou união estável, de forma que em toda sorte de relacionamento findo se instala o risco de que venha a ocorrer uma exposição de uma questão que estaria resguardada pelo direito à privacidade ou à intimidade.
Hipóteses existem nas quais o conhecimento de elemento pertencente à vida íntima alheia se dá de forma indevida, como pela invasão não autorizada de dispositivo eletrônico de outrem, fato esse até mesmo tipificado (art. 154A do Código Penal). Contudo mesmo que o acesso à informação íntima tenha se dado de forma lícita ou compartilhada a sua exposição é situação extremamente delicada e que merece atenção.
Mesmo que inexista uma previsão específica em nosso ordenamento jurídico determinando a manutenção de um dever de respeito mútuo que vedaria a exposição da intimidade do ex-cônjuge, ex-companheiro ou daquele com quem tenha se relacionado, após o fim desse envolvimento há de incidir as regras de fundo genérico que aplicam-se a todas as situações.
Especificando ainda mais a perspectiva que rege a presente coluna, uma grande parte dessas questões personalíssimas que fogem da esfera exclusiva de controle da pessoa tem conexões com elementos vinculados à sexualidade. Fatos que envolvam exclusivamente a intimidade do outro (desejos, preferências e fantasias) ou que estejam inseridos contexto comum a ambos (relacionamento aberto, troca de casais, frequentar festas liberais ou casas de swing) seguem sendo resguardados pelo direito à privacidade e à intimidade.
Partindo-se do pressuposto de que o direito à privacidade e à intimidade estão inseridos entre os Direitos Humanos, fundamentais e da personalidade, dos quais não se pode ser privado sob pena de ataque direto aos preceitos nucleares da sua essência enquanto pessoa, é inadmissível que se postule que alguém possa expor informação que goza de viés tão personalíssimo pelo simples fato de ter tido contato com ela.
O direito à privacidade e à intimidade, ainda que relacionados a fatos compartilhados com outrem, devem imperar, não podendo ser afastados em nenhuma circunstância sob pena de redução da humanidade daquela pessoa, colocando em risco a sua própria existência.
A ocorrência de qualquer ameaça ao direito à privacidade ou à intimidade, praticado por quem quer que seja, há de ser rechaçada de maneira exemplar, cabendo a devida indenização quando importar em efetiva violação, principalmente ao se entender os meios pelos quais tais informações personalíssimas foram obtidas.
Ainda que entenda ser perfeitamente viável a inclusão de cláusulas impondo o respeito e preservação à intimidade do cônjuge ou companheiro em pacto antenupcial ou em documento similar direcionado à união estável essa previsão apenas teria o poder de se impor para a constância do casamento. No entanto, para o pós-ruptura, é possível que uma previsão dessa natureza seja inserida como cláusula do divórcio ou da dissolução da união estável, contudo é preciso explicitar de forma incontestável que em se tratando de temas afeitos à sexualidade os danos de uma exposição como essa dificilmente serão dimensionado com a amplitude das suas consequências e se o forem, correrão o risco de serem questionados sob a alegação de excesso, considerando as pífias indenizações que ordinariamente são deferidas.
Tampouco se olvida a possibilidade de que tais informações sejam utilizadas com o fulcro de tentarem romper os laços que unem tais pessoas a seus filhos, em um contexto de alienação parental,2 situação revestida de enorme potencial lesivo tanto para a pessoa como para sua prole. Ainda que se possa ponderar quanto a possibilidade da perda do poder familiar em decorrência de uma conduta dessas, como preconiza o Código Civil no art. 1.638, III, é sabido que tais violências são recorrentes
A existência de um relacionamento prévio com a pessoa cuja intimidade está sendo exposta não confere a ela a prerrogativa de atingir direitos essenciais de quem quer que seja, sendo de se ponderar até mesmo uma majoração no montante da indenização em razão do abuso.
A alegação de que se trata de um fato do qual a pessoa causadora do dano participou e que estaria apenas relatando sua realidade não lhe confere uma excludente de ilicitude, apenas permite a constatação de que houve um abuso de direito, fator também ensejador de dano e, ato contínuo, responsabilização civil.
Tampouco poderá eximir-se de responsabilização sob a alegação do exercício de liberdade de expressão, mormente ao se entender que tal direito não poderá refutar o direito fundamental de proteção à privacidade e à intimidade, constituindo-se a prática da exposição sob esse argumento em um manifesto caso de abuso de direito. Nem mesmo se sustentaria a tentativa de escusa calcada na afirmação de que o que se está a revelar é a verdade, pois um eventual direito de tornar a verdade pública não se sobrepõe à defesa dos direitos essenciais à existência da pessoa.
Considerando o caráter vinculado a questões atreladas à sexualidade não se pode olvidar que tais elementos, em decorrência de todo o preconceito que os permeia, devem ser protegidos de forma real, e não meramente material, impondo que o dever de indenizar atinja a plenitude dos danos sofridos pela vítima.
Não se pode naturalizar condutas que exponham a privacidade ou intimidade das pessoas, ainda que socialmente tais atos sejam minimizados e colocados no campo das meras "fofocas". A vida íntima há de ser respeitada, não se admitindo a sua exposição indevida, merecendo especial atenção os aspectos dessa natureza que se mostrem vinculados à sexualidade.
Expor a intimidade alheia ou é conduta dolosa que tem o animus de causar dano ou é conduta culposa que não dimensiona o tamanho do prejuízo que tal leviandade pode encerrar. Mas o mais basilar é se entender que se trata de uma falta de respeito que não se prosperar, ainda mais partindo de alguém com quem se compartilhou momentos amorosos, afetivos ou sexuais.
O desgosto e as feridas decorrentes do fim de um relacionamento ou de um envolvimento fortuito não são autorizadores para a prática de uma ofensa a um preceito tão caro como o direito à privacidade e à intimidade.
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1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019.
2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 237.