Direito e Sexualidade

O paradigma masculino no direito das mulheres – Parte 1

Uma reflexão sobre a estrutura da sociedade atual e como ela reflete preconceitos, discriminações e segregações, especialmente em relação às mulheres.

7/3/2024

Quem somos é, em larga medida, reflexo do mundo em que vivemos. Nossa sociedade atual é resultado de uma construção baseada em múltiplos elementos que, conjugados, nos trouxeram ao que experienciamos hoje.

Contudo isso não pode jamais ser associado a uma visão conservadora ou uma ideia de que devemos nos prender ao que se teve pelos tempos como a expressão do correto ou socialmente adequado. Nossa evolução como sociedade com a efetiva implementação dos preceitos nucleares de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela ruptura com conceitos e certezas até então postas, haja vista que muitas delas mostram-se arraigadas em um terreno repleto de preconceitos, discriminações e segregações que têm impactos indesejados em um Estado com bases humanísticas.

A compressão da estruturação da nossa sociedade atual perpassa necessariamente pelo entendimento de que ela foi construída, inquestionavelmente, segundo preceitos e bases oriundos, eminentemente, de homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros, o que se reflete claramente nas premissas que constituem os parâmetros de adequação, normalidade e na noção de certo e errado.

Com isso é evidente também que certos marcadores sociais e concepções desse grupo majoritário estão presentes e norteiam o nosso ordenamento jurídico, o que se reflete em uma série de normas que reforçam estereótipos e visões construídas por aqueles que foram alçados ao status de dominantes.

Contudo não se pode olvidar, como já tenho explicitado em diversas colunas aqui publicadas, bem como em outros escritos, que é imperioso que se tenha um entendimento minimamente adequado do que é uma democracia pois, diversamente do que muitos asseveram, não se trata de um regime em que apenas há a prevalência da vontade da maioria.

Uma das características mais marcantes da democracia é exatamente o estabelecimento de um amplo sistema de proteção com a finalidade de proteger a integridade e a existência das minorias e dos vencidos. Democracia jamais pode preconizar ou buscar a aniquilação das minorias, havendo, ainda, nos exatos termos consignados no corpo de nossa Constituição Federal, que se estabelecer toda uma rede de proteção para aqueles que se encontram em uma situação de inferioridade ou vulnerabilidade, a fim de efetivar preceitos como igualdade, equidade e dignidade da pessoa humana. Basta lembrar que entre os objetivos fundamentais da República Democrática do Brasil está a busca de se eliminar toda sorte de desigualdades (art. 3º, III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;)

Um dos grupos que podemos afirmar ser vulnerabilizado é o composto por pessoas que expressam socialmente o feminino. Ou, de forma mais ampla e generalizada, as mulheres. É sabido que atualmente mulheres têm uma baixa presença em cargos de comando no mercado de trabalho em que pese apresentar, em média, uma maior escolaridade que os homens. Nesse mesmo universo, há ainda que se acrescentar o fato de recebem um salário menor que o dos homens exercendo a mesma função e com a mesma qualificação1, além de conviver com toda sorte de assédio e violência no ambiente laboral.

Dados revelam ainda que mulheres exercem uma dupla ou tripla jornada, competindo a elas os deveres de cuidados não remunerados que socialmente a si são atribuídos, a ponto de destinarem semanalmente, segundo dados de 2022, 9,6 horas a mais que os homens a tais atividades2. No bojo desse espectro podemos inserir toda a atividade ordinariamente imposta que seja exercida pela mulher em decorrência da maternidade.

Mesmo com a legislação civil ponderando que cabe aos pais, em conjunto, o exercício do poder familiar em relação aos filhos, o que, hipoteticamente, poderia sugerir que haveria um compartilhamento do exercício dos deveres inerentes a tal incumbência é fato que em um número extremamente reduzido de situações se encontra uma divisão de tarefas que não se mostre extremamente mais onerosa às mães (mulheres) do que aos pais (homens).

A isso pode-se também acrescentar o grande número de mulheres que são obrigadas a desempenhar a plenitude das responsabilidades parentais por encontrarem-se na condição, não querida, de “mães solo”, por não contarem com a presença do pai de seus filhos que, de maneira absolutamente irresponsável, abandonou sua prole, por vezes sem nem ao menos ter reconhecido a paternidade e registrado o filho.

Na prática é concedido ao homem a escolha se vai ou não ser pai, ao menos em um primeiro momento, pois ele decide se reconhecerá ou não o filho nascido. Essa não é uma prerrogativa que se confere às mulheres, o que traz consigo um enorme ônus.

Essa previsão de igualdade que só existe formalmente tem contornos mais deletérios do que a sua não positivação, vez que gera a falsa impressão de que não existe o problema, de que a lei já regulamenta a questão e que, portanto, nada há a ser feito, criando uma falsa aura de que existe proteção legislativa. Como afirmo de forma reiterada o simples fato de haver uma lei, por si só, não basta para que a realidade seja alterada.

Não se olvida que grande parte do que as mulheres vivenciam é decorrente de uma sociedade totalmente baseada na prevalência da figura masculina como dominante e que, tradicionalmente sempre relegou as mulheres a uma condição de inferioridade, em um machismo que estrutura toda a nossa sociedade.

Esse machismo está tão arraigado que acaba sendo replicado, de forma inconsciente, por muitas mulheres, a ponto de ele ainda se mostrar sólido e reinante em uma sociedade em que a grande maioria dos homens foi criado exatamente por essas mulheres.

Vivemos tempos em que um pai que cumpre minimamente com os seus deveres é visto como alguém especial e merecedor de loas. Aquele que realmente desempenha os deveres legalmente determinados e que, portanto, não faz mais do que sua obrigação, é uma exceção tão grande que é notável.

Um ser humano minimamente funcional é capaz de, por exemplo, trocar a fralda de uma criança, ainda mais com todas as facilidades da atualidade em que basta limpar o bebê com lenços umedecidos, passar uma pomada para proteger e curar de assaduras e colocar outra fralda, que, em alguns casos, é simplesmente vestida como uma bermuda. Contudo se quem fizer isso for um homem parece que estamos diante de uma enorme façanha.

Convido a quem lê essa coluna a fazer um exercício simples: pense em quantas vezes você estava em um lugar onde uma criança precisou ter sua fralda trocada e foi um homem quem assumiu essa tarefa. E em quantas vezes essa troca foi feita por uma mulher?

No mesmo exemplo, das vezes em que foi um homem a trocar essa fralda, em quantas delas ele não era o pai da criança? Posso asseverar que o percentual afirmativo dessa resposta é tão baixo que quem se lembrou de uma situação dessa certamente o fez por ter sido algo tão marcante que ficou gravado na memória.

Considere a mesma perspectiva e pense quem limpa essa criança após ela ir ao banheiro, quem dá banho nela, quem faz sua comida, quem a alimenta, quem organiza todas as atividades relacionadas a ela. A reposta da grande maioria será a mesma: uma mulher.

Longe de querer romantizar a maternidade é premente que se tenha em mente que todas as atividades de cuidado com relação aos filhos são impostas à mulher, não sendo “naturais”. Não se nega o prazer e a alegria que envolve o cuidado e a convivência com um filho, contudo não se pode ignorar o tamanho desse encargo, que vai muito além das despesas de caráter econômico saldadas com o adimplemento da prestação alimentícia.

Ainda que exista a previsão legal de que, em caso de necessidade de fixação de guarda, a regra seja a de seu estabelecimento na modalidade compartilhada o que é mais comum é que, ainda que definida de tal maneira, na prática o que ocorrerá é o exercício de guarda unilateral pelo genitor do gênero feminino. A discrepância entre a teoria e a prática é abissal e pode ser facilmente constatada com o enorme contingente de mães solo involuntárias ou, em palavras menos douradas, de mulheres que têm que exercer a integralidade ou grande parte do poder familiar sozinhas porque o irresponsável do pai de seu(s) filho(s) não cumpre os deveres legalmente fixados em razão da prole existente.

E nesse universo é de se notar que existe um grande contingente que se considera um super pai ou que encontra-se quite com seus deveres pelo simples fato de pagar a pensão alimentícia. Mas olvida que o determinado pela lei vai além de elementos de cunho econômico, como se pode constatar da simples leitura do texto do art. 1.634 do Código Civil que impõe o dever de cuidar e educar. Ao fim e ao cabo, regra geral, o cumprimento de tais deveres são satisfeitos apenas pela mulher.

A preocupação imediata de conseguir os meios que permitirão a mantença dos filhos faz com que seja dada uma enorme atenção à fixação das verbas alimentares a serem pagas (normalmente pelo pai), sem que se tenha o mesmo esmero quando da determinação da guarda e regime de convivência com os filhos. Basta se analisar toda a judicialização que acompanha o inadimplemento das verbas alimentares e comparar com a quantidade de vezes que o Poder Judiciário é instado a manifestar-se face ao não cumprimento do regime de convivência, o que antigamente chamávamos de direito de visitas, quando o genitor não comparece para compartilhar seu tempo com sua prole.

O fato inescapável é que todo esse trabalho de cuidado exercido pelas mulheres resta não remunerado, em uma manifesta usurpação que gera, se não uma responsabilidade civil, ao menos um enriquecimento sem causa daquele que se beneficia dessa atividade, a qual há de ser, inquestionavelmente, ressarcida.

Essas palavras iniciais encerram a primeira parte desse texto que continua na próxima coluna, em que tecerei maiores considerações sobre as razões dessa realidade e possíveis soluções a serem ponderadas. Contudo uma coisa há de ficar registrada: essa é uma das maiores máculas impostas pela histórica segregação da mulher a uma condição de “cuidadora por natureza”.

É urgente que se discuta tais questões e se encontre soluções.

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1 Disponível aqui.

2 Diponível aqui.

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Colunista

Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa "Conversas Civilísticas" e "Direito e Sexualidade", certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de "Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil" e de "Sucessões. Colação e sonegados", além de inúmeros artigos jurídicos.