Direito e Sexualidade

O necessário reconhecimento da união estável de menores de 16 anos passando por uma perspectiva de gênero

É importante compreender a correlação entre o casamento e a união estável. Efetivamente existem diferenças entre ambos, contudo essas restringem-se apenas à sua forma de constituição e à maneira pela qual se comprovam suas existências.

28/9/2023

Se o título não é expresso o suficiente afirmo de plano: SIM, sou favorável ao reconhecimento das famílias constituídas por menores de 16 anos. E posso afirmar, ao mesmo tempo, de forma bastante sólida, que NÃO sou favorável ao casamento infantil. Nada há de contraditório nisso.

Para explicar é importante se compreender a correlação entre o casamento e a união estável. Efetivamente existem diferenças entre ambos, contudo essas restringem-se apenas à sua forma de constituição e à maneira pela qual se comprovam suas existências. Enquanto o casamento se constitui por meio de um ato solene (comprovado pela respectiva certidão de casamento) a união estável é uma situação de fato cuja prova se faz mediante escritura pública ou sentença.

Contudo, socialmente, são instituições absolutamente idênticas na prática, sendo impossível, pela observação da dinâmica cotidiana dos casais, se afirmar quando estamos diante de um casamento e quando se trata de uma união estável.

Ainda que haja alguma celeuma doutrinária a tendência do Supremo Tribunal Federal (STF), mormente após a decisão que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, parece ser no sentido de que exista uma equiparação entre os direitos garantidos a cônjuges e companheiros.

Feita essa apresentação inicial dos institutos que sustentarão a discussão aqui proposta, passo a discorrer sobre o ponto que enseja o questionamento posto na presente coluna. Qual a idade mínima para a configuração da união estável?

Inexiste em nosso ordenamento jurídico uma previsão expressa acerca da idade mínima para a constituição de união estável, a qual apenas é fixada em 16 anos para o casamento, sem qualquer exceção, nos termos do art. 1.517 do Código Civil, conforme redação conferida pela lei 13.811/19.

Ora, se estou a asseverar que casamento e união estável devem ser entendidos como institutos equiparados quanto aos seus direitos, como seria possível a afirmação de que considero necessário e imperioso o reconhecimento da união estável de menores de 16 anos?

A identidade fática pode induzir à ideia da imposição da idade núbil também à união estável, como foi consignado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgado de 2008 tratando de violência presumida em caso de estupro (HC 77018/SC) em que se lê: “3. Sendo a vítima menor de 16 anos, não há falar em extinção da punibilidade pela união estável, ante o fato de ser a vítima absolutamente incapaz para tal, já que não atingiu a idade núbil (16 anos), conforme previsto no Código Civil”. A necessidade de atenção à idade núbil para a caracterização da união estável também se faz presente em decisões de diversos Tribunais de Justiça, como no do Rio de Janeiro (0007798-18.2013.8.19.0045, 13ª Câmara Cível), do Distrito Federal (Apelação 20091010085990), de Goiás (Apelação 0367964-80.2014.8.09.0175, 4ª Câmara Cível), entre outros.

Muitos aplaudem tal visão sob o argumento de que se estaria protegendo a vulnerabilidade daquele que tem menos de 16 anos, não hesitando nem um mísero segundo em bradar pela imposição do requisito da idade núbil à união estável, ainda que recorrentemente professem um entendimento de que casamento e união estável são coisas distintas, revelando uma convicção jurídica que transita conforme a conveniência do que se pretende defender.

Contudo se questiona algo simples: admite-se a supressão de tal lacuna com analogia, conforme preconiza a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB)? Apesar da tentação de se responder afirmativamente e fazer como nas decisões colacionadas anteriormente a resposta correta é negativa, vez que não cabe interpretação por analogia em sede de norma restritiva1.

O próprio conteúdo e extensão do disposto do art. 1520 do Código Civil pode ser bastante distinto daquilo que uma visão menos acurada pode levar a crer. A polissemia que acompanha a expressão casamento permite a exegese de que a vedação estabelecida atem-se tão só à realização do ato solene denominado casamento enquanto não atingida a idade núbil. A inteligência que se extrai da norma em nenhum momento permite entender que proíbe-se a constituição de família por tais pessoas.

E é importante se afirmar mais uma vez que nada do que aqui foi dito revela-se como partidário do casamento infantil. O que se está pontuando é que não se pode privar de direitos as pessoas menores de 16 anos que estejam envolvidas em uma situação fática de constituição de família.

Influenciado pela “neurose de clareza” de Pablo Stolze é salutar afirmar ser inquestionável que crianças e adolescentes devem estar na escola e vivendo as experiências compatíveis com suas idades. Contudo se a realidade fática não for essa não é plausível privá-las de direitos como os oriundos do reconhecimento de uma união estável. Não se trata de uma discussão sociológica ou antropológica acerca do momento correto para que se venha a estabelecer um casamento mas sim de conferir os devidos direitos a quem faz jus a eles.

A mais rasa hermenêutica que acompanha a compreensão da determinação legal de vedação irrestrita ao casamento de menores de 16 anos estabelecida no atual texto do Código Civil funda-se na intenção do legislador de proteção da criança ou adolescente (que não atingiu a idade núbil), no mesmo sentido insculpido tanto na Constituição Federal quando no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Qualquer interpretação que venha a restringir os direitos dessa criança ou adolescente se mostra teratológica por ser contrária a todo o sistema jurídico estabelecido visando a proteção desse grupo reconhecidamente vulnerável, revelando-se claramente inconstitucional ao não conferir a especial e prioritária proteção à criança e ao adolescente estabelecidas no art. 227 da Constituição Federal. Jamais haverá de prosperar a interpretação de uma lei que tem por fim resguardar uma pessoa vulnerável contra essa mesma pessoa. A própria Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) preconiza que na interpretação legislativa haverá de se atender aos fins sociais a que a lei se destina (art. 5º), não restando qualquer respaldo a uma interpretação que venha a desguarnecer a prioritária proteção às crianças e aos adolescentes.

À guisa de exemplificação trago uma hipótese bastante comum. Imagine uma garota que, já aos 15 anos de idade, vive como se casada fosse com um rapaz de 18 anos, em um relacionamento que se mostra público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família. Havendo a ruptura desse relacionamento, caso não se reconheça a união estável, essa garota faria jus ao direito a alimentos ou mesmo aos efeitos decorrentes do regime de bens e à meação? Se o término fosse oriundo do falecimento do rapaz, sem que ele tenha qualquer parente em linha reta ou colateral, essa garota seria sua herdeira?

O não reconhecimento da união estável afastaria dessa menor do direito à herança, de um eventual direito real de habitação (art. 7º, parágrafo único da lei 9.278/96) e da possibilidade de sub-rogar-se nos direitos e obrigações de um contrato de locação residencial realizado pelo falecido (art. 11 da Lei de Locação). Também não seria considerada beneficiária previdenciária, tampouco acessaria a demais direitos decorrentes de seu falecimento.

E isso parece justo? Seria essa a intenção do legislador? A legislação teria o objetivo de privar essa pessoa vulnerabilizada de seus direitos sucessórios, deixando-a desamparada? Tal sorte de interpretação traz que benefício real para essa pessoa que supostamente busca proteger? Seria essa a mens legis ou a mens legislatoris?

Os relacionamentos interpessoais com objetivo de constituir família envolvendo menores de 16 anos são um fato, atingindo mais de 10% dos casamentos ou uniões estáveis realizadas no Brasil, o que nos coloca, em números absolutos, no 4º lugar do mundo em casamentos infantis2, o que não pode ser ignorado.

Porém a solução não está em meramente tentar resolver o tema com uma simples "canetada". Pode o legislador fazer o que entender por bem mas não conseguirá, por imposição legislativa, impedir que aquele relacionamento vivido por essas pessoas seja por elas e pela sociedade que as circunda reconhecido como uma entidade familiar. Aos olhos daquela comunidade em que esse núcleo familiar se estabeleceu não existe qualquer dúvida de que aquilo que se está a presenciar é uma entidade familiar. A imposição legislativa, de per si, jamais vai alterar esse fato.

Aos menos atentos pode até parecer que o Estado está efetivamente laborando para garantir a prioritária proteção da criança e do adolescente, contudo não é essa a verdade, sendo tal sorte de medida inserida entre aquelas denominadas "para inglês ver", face a sua pouca ou quase nenhuma efetividade prática. Se a maior incidência de relacionamentos constituidores de família entabulado por menores de 16 anos se dá mediante a sua caracterização de fato (pela união estável) vedar a realização do casamento além de ter pouco impacto não impedirá a constituição da entidade familiar.

Tentar impedir que a realidade que se faz presente no cotidiano das pessoas se efetive pela mera imposição de uma noma legal, mormente quando se está a tratar de uma realidade social posta e consolidada, é de uma inocência pueril. Ou, para tentar demonstrar alguma erudição e fugindo das minhas palavras por vezes tão simplórias, valho-me do mestre Orlando Gomes para afirmar que estaríamos apenas a desperdiçar tinta, por meio de normas que tem vida "apenas no papel em que são impressas"3.

Configurados os requisitos da união estável não se pode ignorar que aquele relacionamento tem o condão de criar uma família, ainda que não possa vir a ser convertido em um casamento ou mesmo que não se queira permitir que a ele se dê o nome de união estável. Não há a possibilidade que se venha a dizer a uma família que ela não é uma família apenas por ter o legislador entendido que ela não é. Não há lei que refute a afetividade e os laços que foram ali criados4.

A união estável se configura como um ato-fato jurídico5, situação de fato em que, carente de uma manifestação de vontade expressa, acaba constituindo uma entidade familiar. Ainda que diante da prática de atos sem uma intencionalidade de se buscar a aquisição de direitos, acaba por configurar-se a união estável, com a consequente atribuição dos consectários que lhe são inerentes.

Ante a natureza de ato-fato jurídico não há que se falar em nulidade (art. 166, I, do Código Civil) restando mitigados elementos como capacidade (art. 3º do Código Civil). Sendo a constituição de família em tais casos uma situação existencial fática é perfeitamente aplicável o consignado no Enunciado 138 aprovado na III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, que sustenta como juridicamente relevante a vontade dos absolutamente incapazes que tenham por escopo a concretização de tais hipóteses, desde que se verifique a existência de discernimento bastante para tanto. Por se enquadrar nessa categoria é evidente que, tendo aquele que não completou 16 anos discernimento para a situação existencial em que está inserido, tal ato familiar pode "ser tido como plenamente válido"6.

Na sequência, a fim de conferir os contornos de sexualidade que são intrínsecos a essa coluna, me parece que um ponto nevrálgico está alocado no tacanho temor que parcela da sociedade tem de que crianças e adolescentes sejam destinatárias de conhecimento com relação à sua sexualidade. A refração quanto à educação sexual para crianças e adolescentes é oriunda de desconhecimento ou de uma política de desinformação que conduz à bizarra ideia de que lhes seria ensinado a "fazer sexo" na escola. E, obviamente, o objeto do ensino sobre elementos da sexualidade passa longe de orientações e dicas de como manter relações sexuais.

Essa perspectiva acaba ensejando outro fator pernicioso que não pode ser olvidado. Uma considerável parcela dessas uniões decorre de gravidezes indesejadas ou não planejadas dessas meninas que começam a ter relações sexuais antes dos 16 anos. Nessas circunstâncias não é possível se afastar a responsabilidade do Poder Público por não promover a plena implantação de aulas visando a educação sexual para crianças e adolescentes, que além das consequências já aduzidas, tem também manifesto impacto na ocorrência de uma série de violências de fundo sexual que sequer são entendidas pelas vítimas face à normalização de condutas absolutamente abjetas. Em meu sentir cabe aqui mais uma vez ponderar quanto a leniência legislativa do Estado7, pois legislar mal e de forma ineficaz equivale a não legislar.

Todas essas considerações foram trazidas para, por fim, poder apresentar um recorte que se coloca como um dos mais relevantes mas que tem recebido da doutrina menos atenção do que seria devido em razão de sua natureza. Vedar a concessão dos direitos ordinariamente concedidos às famílias em decorrência de não se reconhecer como união estável ao relacionamento público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família em que uma das partes ainda não tenha atingido os 16 anos, além de ser inconstitucional por ofender ao princípio da igualdade e da proteção prioritária à criança e ao adolescente, ainda se mostra sexista, além de social e racialmente discriminatório.

Tal afirmação se faz exatamente por saber que normalmente a maior incidência de relacionamentos como o descrito se dá com as mulheres (ou pessoas do gênero feminino), negras e de baixa renda. Ou seja, além de toda essa sobreposição de vulnerabilidades ainda tem que se deparar com uma hermenêutica que interpreta em seu desfavor uma legislação que tem o intuito de lhe proteger. Não basta toda a vulnerabilidade experienciada e ainda tem que lidar com uma tentativa de proteção desse jaez.

Para exemplificação basta considerar dados levantados em 2016 que relatam que mais de 10% dos casamentos e uniões realizadas no ano anterior incluíram pessoas com até 19 anos, dos quais se tem 28.379 meninos contra 109.594 meninas8, numa diferença que não pode ser minimizada.

As consequências econômicas decorrentes do desconhecimento da união estável de pessoas menores de 16 anos têm maior impacto sobre as mulheres que, em maior número, são as que estão inseridas nessa realidade. Afastá-las dos direitos daí decorrentes apenas aprofunda as mazelas enfrentadas por essas meninas em nossa sociedade.

O marcador racial é outo aspecto comum a essas meninas que normalmente são garotas pretas e pardas, atingidas ainda pelo fator de fragilidade econômica e residentes em regiões periféricas. Dificilmente a discussão da carência de elementos para a caracterização da união estável terá como o menor de 16 anos alguém do gênero masculino, branco e abastado economicamente.

O remédio não pode matar o "paciente". Se esse for o modo de proteção me parece melhor deixar o menor de 16 anos indefeso pois o mecanismo arquitetado para esse fim está fazendo mais mal do que bem, deixando ainda mais exposto aquele que haveria de resguardar. E quando a isso se associa o viés sexista, social e racialmente discriminatório o quadro mostra-se ainda mais assustador.

É evidente que o casamento infantil não é desejado mas vedar o reconhecimento de direitos às situações de fato em que se tem uma entidade familiar com uma pessoa menor de 16 anos em nada vai auxiliar. E em nossa sociedade atual apenas aprofundará a vulnerabilidade de quem se tem a intenção de se proteger.

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1 Disponível aqui

2 Disponível aqui

3 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p.III - VII, 2022.

5 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Famílias, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 110.

6 Disponível aqui

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.

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Colunista

Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa "Conversas Civilísticas" e "Direito e Sexualidade", certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de "Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil" e de "Sucessões. Colação e sonegados", além de inúmeros artigos jurídicos.