Direito e Sexualidade

Passabilidade como fator de inclusão e acesso para pessoas transgênero

Garantir passabilidade é incluir. Ter passabilidade está associado a um menor risco de entrar nas estatísticas que mortalidade que acompanham as pessoas trans e que corroboram o chamado genocídio trans.

24/8/2023

Por mais anacrônico que possa parecer segue prevalecendo em nossa sociedade uma premissa excludente quanto a garantia de acesso aos direitos mais essenciais. Ainda que estes sejam previstos de forma universal na Constituição Federal, nem todos conseguem acessar efetivamente as prerrogativas nucleares garantidas a todos os seres humanos em nosso Estado Democrático de Direito.

Embora a todos sejam franqueados os direitos fundamentais é patente que estar distanciado do padrão posto coloca-se como um obstáculo para ter tal resguardo legal, fato que atinge sobremaneira as minorias sexuais1.

Aqueles que em alguma medida ostentam características que os apartam do considerado normal2 encaram uma defasagem em relação ao grupo tido como majoritário. E não raras vezes, obviamente quando viável, os que não estão entre os integrantes dos grupos majoritários procuram o seu ajuste aos padrões postos, seja por ser esse o seu desejo, seja por uma imposição social, ou mesmo como uma forma de tentar transpor todos os percalços impostos pela sua condição primária.

Ao se atribuir à incompatibilidade com o padrão ordinariamente esperado um caráter segregatório há o impulsionamento de uma busca por enquadramento nos parâmetros normatizados, norteando a conduta de muitos que sentem que a espera pela efetivação legislativa do respeito às diferenças pode encerrar em si a decretação de uma pena de morte tácita.

Estar inserido no que é tido e entendido como “correto” por aqueles que são os detentores do poder tem o condão de garantir uma vivência com menos obstáculos, o que, associado com um desejo de identificação, tem grande impacto quando se analisa a sexualidade segundo a identidade de gênero, a qual há de ser entendida como a compreensão de pertencimento da própria pessoa quanto ao seu gênero, independentemente do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento, como consignamos no texto inaugural da presente coluna3. Com base nesse pilar da sexualidade as pessoas podem ser indicadas como cisgênero (quando entendem-se pertencentes ao gênero esperado em razão do seu sexo) ou transgênero (aquelas que sentem que não pertencem ao gênero associado ao sexo a si designado quando de seu nascimento), sendo que nessa segunda condição podemos destacar a figura de transexuais, travestis e intersexuais.

Apenas com o fulcro de não correr o risco de enfrentar mais incompreensões do que as que já são recorrentes, mesmo que possa parecer repetitivo para quem acompanha essa Coluna, relembramos que ainda que uma parcela da comunidade e da militância muitas vezes considere transexuais e travestis como sinônimos prefiro, para fins acadêmicos, trabalhar com o entendimento que firma a distinção entre as duas condições com base na concepção de que transexuais apresentariam uma certa repulsa ou ojeriza com relação ao seu fenótipo sexual (fator motivador de eventuais intervenções visando a adequação física de sua genitália aos padrões do sexo correlato ao gênero ao que se reconhecem), o que não se verificaria em travestis4.

Por cautela também se pontua que aqui insero a figura do intersexual por sustentar que se trata de elemento distinto do intersexo que, enquanto característica vinculada ao sexo, constata-se ante a presença de uma constituição física que não possibilita a inclusão imediata do sujeito nos parâmetros estabelecidos pelo binarismo homem/macho ou mulher/fêmea.

O intersexual é a pessoa intersexo a quem se conferiu um sexo quando do nascimento (por vezes até mesmo decorrente de uma intervenção cirúrgica de adequação genital) mas que não se identifica com o gênero a ele associado, sendo, portanto, a intersexualidade componente da identidade de gênero que não se confunde com a intersexolidade, nos termos trazidos anteriormente nessa mesma coluna5.

Feitos esses esclarecimentos conceituais é o momento de retornar ao fio que conduz o objetivo do presente texto. Em razão dessa incompatibilidade entre o físico (corpo) e o psicológico (mente) que perpassa a existência das pessoas transgênero mostra-se inafastável que um dos pontos mais sensíveis do tema incide exatamente nas alterações corporais que as pessoas transgênero realizam em seus corpos buscando conferir-lhes predicados que as associem ao seu gênero de pertencimento.

Geralmente a primeira conduta de expressão da transgeneridade revela-se ante a utilização, que nem sempre torna-se pública nesse estágio, de elementos externos associados ao gênero de pertencimento, como pela utilização de roupas, adornos e acessórios a ele atribuídos. Nesse âmbito estão exemplos como o de homens que experimentam a utilização de roupas íntimas e outras vestes femininas (como vestidos e saias), maquiagem e acessórios (brincos, colares, pulseiras).

Quanto aos homens trans (aqueles que nasceram com aspectos físicos de mulher/fêmea mas se consideram do gênero masculino) além das vestes associadas ao masculino é de se ressaltar a presença do “binder”, uma faixa utilizada sob as roupas e que tem por fim disfarçar o volume das mamas, que apesar de não poder ser entendido como uma vestimenta masculina passa a fazer parte do “vestuário” daquela pessoa com o fim de conferir uma aparência mais associada com o gênero com o qual se reconhece. Ocultar esse atributo eminentemente feminino é algo relevante para o homem trans, sendo algo que pode trazer a ele uma sensação de satisfação e de pertencimento enquanto alguém do gênero feminino.

Após as experiências associadas a roupas e acessórios ganham espaço as intervenções de cunho médico destinadas a propiciar modificações corporais com o fulcro de adquirir uma aparência compatível com a de seu gênero de pertencimento e que podem apresentar duas naturezas distintas, quais sejam: hormonais e cirúrgicas.

Os tratamentos hormonais, que normalmente revelam o primeiro passo das intervenções medicinais experimentadas pelas pessoas transgênero, por sua vez, podem ocorrer com o fim de bloquear a produção de hormônios ou, na chamada hormonioterapia cruzada, para prover o corpo de quantidade de homônimos próprios do gênero de pertencimento capaz de lhes conferir características externas com ele associadas.

 A terapia hormonal cruzada nos homens trans visa a eliminação da produção de estrógenos e progestágenos (progesterona), bem como a elevação da testosterona, o que conferirá um maior desenvolvimento muscular, aumento nos pelos faciais e corporais, além de supressão a menstruação.

Já entre as mulheres trans (pessoas nascidas com aspectos físicos associados ao homem/macho mas que se reconhecem como alguém do gênero feminino) o objetivo é inibir a produção endógena de testosterona, havendo ainda a administração de hormônios femininos (estrogênio) que trará como consequência uma suavização dos traços faciais, diminuição dos pelos faciais e corporais, crescimento mamário, redução do volume testicular e da massa muscular.

No âmbito cirúrgico os homens trans realizam inicialmente a mastectomia (redução das glândulas mamárias), sendo recorrente também a histerectomia (retirada do útero), a ooforectomia (retirada dos óvulos) e a neofaloplastia (construção de um pênis). Para as mulheres trans as intervenções passam por cirurgias plásticas mirando a feminização facial e corporal, redução do “pomo de adão” (cartilagem tireoide), cirurgia para adequação da voz, implante de silicone para aumento mamário e neovulvovaginoplastia (cirurgia para a construção de uma vagina).

Evidente que para além da busca de uma congruência física com aspectos vinculados ao gênero que se entende pertencer todas essas intervenções passam também por uma perspectiva de inclusão (ou não exclusão) social, marcador indissociável da passabilidade.

A passabilidade, sob a perspectiva trans, é a qualidade de ostentar aparência e caracteres que permitem que a pessoa transgênero seja reconhecida socialmente como alguém do gênero ao qual se entende pertencente, sem que sua condição seja notada ou descoberta, garantindo-lhe a possibilidade de “transitar tranquilamente na multidão”6 sem que a sua condição de transgeneridade seja apontada como fator de exclusão social, discriminação ou preconceito. Com isso se pode afirmar que quanto mais for reconhecida segundo a sua identidade de gênero maior será a sua passabildade e, em sentido contrário, quanto mais fácil for se constatar que se trata de uma pessoa trans, menor será essa passabilidade.

Evidencia-se, com isso, que quanto maior a passabilidade menor será o risco de sofrer os impactos das discriminações em decorrência da sexualidade diversa daquela esperada, o que atribui uma maior proteção à integridade daquelas pessoas com passabilidade elevada. Por óbvio, em perspectiva diametralmente oposta, uma baixa passabilidade encerra em si a majoração da vulnerabilidade para quem a externa.

Basta se apreciar o conteúdo das notícias veiculadas concernentes a pessoas transgênero com maior ou menor passabilidade. Quando associada a quem tem maior passabilidade são enaltecidas a beleza e as notáveis características que revelam essa associação com o gênero de pertencimento, frequentemente acompanhada de expressões como “nem parece que é trans” ou similares.

Já quando há baixa passabilidade, os noticiários estão sempre relatando homicídios, usualmente praticados com requintes de crueldade, relevando toda a aversão e ódio que acompanham a existência daqueles que são reconhecidos como sexualmente divergentes.

Uma visão meramente teórica pode conduzir a uma ideia de que a realização do processo transexualizador é universal vez que garantido pelo Ministério da Saúde através do Sistema Único de Saúde (SUS), nos termos da Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013. Contudo, segundo o que consta da própria portaria, existem apenas 4 hospitais no Brasil em condições de atender às necessidades cirúrgicas do processo transexualizador, o que faz com que, segundo levantamento realizado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a espera possa ser de até 18 anos7.

O Estado que pouco faz em favor das pessoas trans, quando faz não garante a efetivação do que determina, criando “esperanças vazias em boa parte da população que faria jus aos parcos direitos assegurados”, o que chega a apresentar contornos de “crueldade e até mesmo de um sadismo mórbido”8.

Nota-se, portanto, que a passabilidade também está atrelada a uma questão econômica, vez que quem tem condições pode atingir seu desejo de adequação corporal à identidade de gênero de forma célere e eficaz, sendo que àqueles desprovidos de recursos financeiros restará conviver com uma baixa passabilidade e os perigos de tratamentos clandestinos e automedicação9 enquanto aguarda o acesso ao processo transexualizador garantido pelo Estado, na esperança que não venha a falecer antes desse momento chegar.

Não se pode nem mesmo olvidar que durante muito tempo a passabilidade foi tida como requisito para o reconhecimento de direitos a pessoas transgênero, pois o entendimento até pouco tempo atrás, apenas superado ante a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, com o julgamento do REsp. 1.626.739, era de que intervenções cirúrgicas para a adequação dos caracteres sexuais externos eram imprescindíveis para a alteração de nome e sexo nos documentos de pessoas transgênero.

O fato que não se pode ignorar é que a necessidade de inclusão social é um critério que se faz presente entre os elementos considerados por uma pessoa transgênero quando procura a realização de intervenções visando a ampliação de sua passabilidade. O que pode conduzir a questionamentos simples como: Se o preconceito fosse menor haveria tanta procura para a realização de intervenções? Qual o tamanho do impacto da aceitação social no interesse em se operar?

A ineficácia do Poder Público em conferir às pessoas transgênero os direitos definidos afeta a passabilidade, privando-as de experienciar uma vida digna, majorando os obstáculos de uma vivência fora dos padrões impostos e aprofunda a vulnerabilidade de um dos grupos sociais mais exposto aos efeitos da segregação. O que enseja o questionamento: até quando essa conduta restará impune?

Garantir passabilidade é incluir. Ter passabilidade está associado a um menor risco de entrar nas estatísticas que mortalidade que acompanham as pessoas trans e que corroboram o chamado genocídio trans10.

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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10.

3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade. v. 2, n. 2, p. 213-231, jul./dez. 2021, p. 217.

5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020, p. 8.

7 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/04/05/um-ano-apos-decisao-favoravel-na-justica-professora-trans-aguarda-cirurgia-de-redesignacao-sexual.ghtml

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 274.

9 O’DWYER, Brena; HEILBORN, Maria Luiza. Jovens Transexuais: Acesso a serviços médicos, medicina e diagnóstico. Revista Interseções, v. 20, n. 1, p. 196-219, jun. 2018, p. 214.

10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.

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Colunista

Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa "Conversas Civilísticas" e "Direito e Sexualidade", certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de "Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil" e de "Sucessões. Colação e sonegados", além de inúmeros artigos jurídicos.