Como tem sido a base principiológica de sustentação da presente coluna buscamos a atenção aos preceitos mínimos da dignidade da pessoa humana como norteadores de uma sociedade que se afirma assentada nos parâmetros de um estado democrático de direito, fato que nem sempre é garantido às minorias sexuais.
Muito da vulnerabilidade experimentada pelos grupos tidos como minoritários em razão da sexualidade é oriunda de um manifesto desconhecimento acerca da realidade que envolve os aspectos atinentes ao tema, o qual é amplamente permeado por "achismos" e pseudociência propalados pela população em geral como se fossem fatos incontestes.
Por ser um traço humano que toca a todas as pessoas existe uma percepção calcada no senso comum de que a sexualidade não está no campo da ciência, bastando o conhecimento acumulado pela vivência de cada um para se tornar um expert e tecer considerações das mais variadas, expondo um grau de certeza que nem mesmo os maiores especialistas em cada uma das vertentes que compõem a sexualidade ousam expressar.
Essa ignorância travestida de conhecimento é um dos maiores fomentadores de todo o preconceito, segregação e discriminação que acompanham aqueles que não se inserem entre os integrantes dos grupos dominantes hegemônicos, o que culmina no desrespeito aos direitos fundamentais dessa minoria.
O desconhecimento que se perfaz de sabedoria traz consigo o medo, que se revela em manifestações sociais consternadoras que apenas reforçam todo o estigma que caminha ao lado daqueles que estão inseridos na comunidade LGBTIANP+. Convivemos, mesmo já em meados da segunda década do século 21, com pensamentos tão absurdos como os que sustentam afirmações de que certas cores, brinquedos e brincadeiras, por exemplo, são permitidos apenas a certo gênero, sob o risco de que qualquer transgressão dessa regra colocaria em risco a manutenção das condições esperadas quanto a sexualidade, a ponto de já termos tido representantes da alta cúpula do governo federal ostentando como parâmetro de condução de suas políticas slogans como o de que "menina veste rosa e menino veste azul".
A magia1 que faria com que a cor das roupas possa fazer com que alguém passe a apresentar uma conduta "desviada" daquela esperada quanto a sua sexualidade como um todo é o mesmo que sustenta sandices como o da negativa de alguns esportistas de usarem uniforme com o número 24, em razão da associação existente com a homossexualidade decorrente do jogo do bicho onde esse número é o do animal veado.
Evidente que não se ignora a existência da cultura e de seu potencial de conduzir condutas sociais, contudo não se pode mais conceber que tais pensamentos ou "crendices" populares sigam sendo repetidas e venham a perpetuar condutas que ferem os direitos fundamentais de um grupo historicamente vulnerabilizado.
Somos ainda uma sociedade que tem como xingamento a afirmação de que atribuir elementos de feminilidade para alguém do gênero masculino seria ofensivo, ou mesmo que a prática sexual diversa da aceita pela heterossexualidade seria passível de menosprezo. De se pensar que ordinariamente uma das agressões verbais mais degradantes reside em afirmar que a mãe de alguém mantem relações sexuais mediante pagamento, reforçando a ideia de que atos sexuais marginais à perspectiva de que eles apenas ocorreriam no seio da dita "sagrada família tradicional" mereceriam a pecha de indevidos e inadequados, a ponto de converter-se em uma forma de ofensa.
O reforço de tais visões certamente em nada auxilia na luta pela erradicação das discriminações, além de, inegavelmente, potencializar a manutenção de uma realidade aterradora que atinge as minorias sexuais. Utilizando-se apenas de um dos recortes da sexualidade, por exemplo, temos que as pessoas transgênero no Brasil enfrentam algumas ambiguidades notáveis, como o fato de viver no país com a maior procura em sites de vídeos eróticos2 e ao mesmo tempo que carrega a terrível marca de ser o que mais as mata no mundo3 e com uma expectativa de vida de apenas 35 anos, o que é menos da metade da média nacional de 76 anos4.
Em pesquisa realizada entre jovens estudantes de escolas públicas de São Paulo, constatou-se que o grupo social que desperta a maior refração quanto a convivência em sala de aula é exatamente a comunidade LGBTQIANP+5, sendo de se questionar as razões para tanto. Fatos como esse corroboram dados como os que demonstram um alto nível de evasão escolar, que faz com que apenas 0,02% das pessoas transgênero tenham acesso ao ensino em nível superior6, o que conduz a impactos severos com relação à inserção posterior no mercado de trabalho formal.
Uma das discussões que mais movimentam aqueles que se propõem a estudar as minorias está na necessidade de implementação de políticas públicas visando ações afirmativas com o fulcro de garantir os direitos mínimos para esse grupo social. E, lamentavelmente, a necessidade de políticas públicas é o reconhecimento de que falhamos como sociedade e estado, já que tais medidas apenas se mostram necessárias quando os preceitos constitucionalmente firmados não se efetivam, demonstrando que a leniência do Poder Público vai além da omissão legislativa7 mas recai também na falta de fiscalização e exigência do cumprimento daquilo que ele mesmo determinou que fosse cumprido, demonstrando que há muito em nosso ordenamento que tem "vida apenas no papel" em que está consignado, como bem assevera Orlando Gomes8.
Causa espécie constatar que muitas vezes as parcas conquistas alcançadas pela comunidade LGBTQIANP+, que nada mais são do que a singela aplicação dos direitos fundamentais constitucionalmente firmados, são tidas por uma parcela da população como vantagens indevidas, em total descolamento com a realidade. Já fomos obrigados a ouvir afirmações de que "agora as minorias querem direitos" e que estaríamos vivendo uma "ditadura das minorias", ou ainda que "agora seria obrigatório virar homossexual" ou "casar com outro homem" como ocorreu ao tempo das decisões dos tribunais superiores que reconheceram direitos às pessoas LGBTQIANP+. Seja em tom de pilhéria ou mesmo como uma forma de propagar algum tipo de temor nos menos atentos ou preparados, tal conduta acaba por estimular o temor e aprofundar a discriminação.
Toda essa situação disseminada em nossa sociedade acaba dando azo a fatos deploráveis e perturbadores. Nesse sentido destacamos a figura do que tem se denominado de estupro corretivo, que pode ser entendido como a prática de atos sexuais de maneira não consentida com o objetivo de controlar o comportamento sexual de determinada pessoa, situação que é objeto do projeto de lei 452/19 que propõe o aumento da pena do crime de estupro praticado nessas circunstâncias.
O que se traz como quesito a ser ponderado na discussão do tema é se no atual estágio da sociedade da informação em que vivemos pode-se considerar admissível a utilização da ignorância como escusa. Diversamente do que se tinha em outras épocas em que o conhecimento estava adstrito a alguns poucos privilegiados, nos nossos dias o desassossego estabelece-se quanto a confiabilidade da fonte da qual se extrai o que respaldará as manifestações sobre um determinado assunto.
À guisa de provocação é pertinente se questionar o que faz com que alguém permaneça no conforto da ignorância e fundando o seu pensar em nada mais do que a sua parca percepção de mundo, amealhada por suas experiências individuais? A escolha por essa conduta de omissão é escudo para a manutenção de práticas discriminatórias?
Em alguma medida nos parece admissível concluir que só não se afasta das trevas da ausência de conhecimento aquele que não tenha interesse para tanto, vez que o acesso aos saberes constituídos, hodiernamente, se faz bastante facilitado. Contudo há uma letargia inerente à natureza humana que aprisiona o indivíduo e faz com que, em grande parcela, apenas venha a se preocupar com temas que lhe toquem particularmente, preferindo superficialidade, sem praticar o exercício da alteridade, sendo essa uma das razões pelas quais as minorias padecem de tanta incompreensão e discriminação.
De outra sorte não se pode ignorar que é imprescindível que o conhecimento sobre a sexualidade seja alicerçado em informações de qualidade e lastreadas em preceitos técnico, sob pena de que a pessoas se veja inundada por uma série de dados permeados por um viés de confirmação que caracteriza os algoritmos que regem o mundo virtual.
É premente que se garanta à população como um todo educação sexual, qualificada e técnica, com o fim de permitir que as pessoas passem a compreender a sexualidade segundo parâmetros que extrapolem as suas vivências e seus "achismos". Para tanto faz-se imperioso que professores sejam devidamente qualificados para tanto, reunindo meios para transmitir esse conhecimento para cidadãos de todas as idades, respeitando as características a eles inerentes.
É de solar compreensão que instrumentalizar a coletividade como um todo com conhecimento qualificado seria forma elementar de mitigação dessa realidade de segregação e discriminação que incide em questões atinentes à sexualidade.
Em verdade o que se almeja é simplesmente a possibilidade de ver reconhecidos e aplicados também às minorias sexuais o que é garantido a toda pessoa e que, face a sua vulnerabilidade, precisa ser objeto de luta vez que estamos em uma nação em que o reconhecimento de tal condição não tem por consequência a fixação de uma ampla e sólida rede de proteção9. O que se quer é apenas o respeito aos ditames garantidos a todos pela singela razão de se ser uma pessoa.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sexualidade e o medo da magia. Revista Direito e Sexualidade, v.2, p. I - IV, 2021.
2 Disponível aqui. Acesso em: 16 mai.2023
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui. Acesso em: 14 mai. 2023.
5 ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Juventudes Na Escola, Sentidos E Buscas: Por Que Frequentam?. Brasília-DF: Flacso - Brasil, OEI, MEC, 2015. p. 94.
6 Bruna G. Benevides. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.
8 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 36-37.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.