Como reiterado na presente coluna a adequada utilização das expressões vinculadas à sexualidade, bem como a correta compreensão de seus sentidos, é indispensável para que as discussões vinculadas ao tema sejam entabuladas com a imprescindível acuidade técnica.
Exatamente atendendo a essa premissa o presente texto tem por objetivo apreciar uma das questões mais complexas estabelecidas nos tempos atuais com relação à sexualidade. Na comunidade intersexo existe uma grande celeuma acerca da expressão mais apropriada e que melhor indica a realidade vivenciada por essa minoria sexual em específico.
Nesse contexto nos posicionamos (como será devidamente aprofundado na próxima edição do livro Identidade e Redesignação de Gênero) pela pertinência tanto de intersexo como de intersexual como termos apropriados por entender que são expressões vinculadas a preceitos distintos e necessários para atender à necessidade de designação de aspectos distintos da sexualidade.
O que sustentamos é que existem as pessoas intersexo (elemento vinculado ao sexo) e as pessoas intersexuais (questão atrelada à identidade de gênero), com critérios objetivos de fixação dos conceitos que não se confundem, vez que lastreados em parâmetros distintos dos pilares da sexualidade como sustentado no texto inaugural dessa coluna. Visando a acuidade técnica que de algum tempo se busca consolidar nessa coluna no que concerne aos elementos que alicerçam a sexualidade, concluímos que não se mostra adequada a utilização das expressões intersexo e intersexuais como sinônimas, ou mesmo que a segunda delas não deva ser utilizada.
Com isso nos colocamos de forma a afirmar que não se trata sequer de uma discussão de uma preferência do termo a ser usado por parte da comunidade e ativistas intersexo, mas sim do correto entendimento do que cada uma dessas palavras significa.
Inicialmente é relevante se consignar que, nos termos trazidos por Claire Ainsworth em artigo publicado na Nature1, a acepção técnica do conceito de sexo pode ser muito mais complicada do que ordinariamente se acredita, vez que o simples fato de a pessoa não possuir o cromossomo Y não é o suficiente para se afirmar que ela é uma mulher. Como bem relembra a autora não são poucas as pessoas que rompem esses critérios rígidos com os cromossomos dizendo uma coisa enquanto as gônadas ou anatomia dizem outra.
Intersexo é condição vinculada ao sexo, indicando uma das inúmeras hipóteses existentes e cientificamente constatadas de pessoas que não se inserem perfeitamente nos parâmetros estabelecidos do homem/macho e mulher/fêmea, seja fenotipicamente ou genotipicamente. A condição daquele que é intersexo (que sugerimos passe a ser chamada de “intersexolidade” e não intersexualidade) está, portanto, atrelada a um aspecto genético (pessoa fora do parâmetro binário XX ou XY) ou físico (ausência da correspondência direta homem/macho com pênis e bolsa escrotal ou mulher fêmea com vagina, útero e ovário, revelando um sexo anatômico atípico2), sem qualquer correlação direita com uma ideia de pertencimento acerca do seu gênero.
A condição intersexo, também conhecida como diferença do desenvolvimento sexual ou distúrbio de desenvolvimento sexual (DDS) ou anomalia de diferenciação sexual (ADS) no âmbito médico, é situação que atinge, segundo alguns pesquisadores, de 1%3 a 2%4 da população mundial, o que torna patente que o binarismo sexual entre homem e mulher não espelha a realidade, sendo natural a existência de pessoas que não se insiram perfeitamente nos parâmetros estabelecidos para o homem/macho e mulher/fêmea, instalando-se em áreas de intersecção, como assevera John Achermann do Instituto de Saúde Infantil da University College London5 citado por Dráuzio Varela6 no texto de abertura da obra “Intersexo”, coletânea de textos de inúmeros especialistas de diversas áreas do conhecimento versando sobre o tema.
É, portanto, fato que se trata de condição que se mostra muito mais incidente do que a maioria acredita e as pessoas podem (e conseguem) perfeitamente ter uma vida baseada nos preceitos da normalidade sem que tal condição sexual a impeça de um convívio social pleno7. Contudo não se pode olvidar que a composição normativa lastreada numa perspectiva binária acaba por gerar uma série de atentados à dignidade de pessoas intersexo, usualmente oriunda de uma ignorância (inconsciente ou deliberada) acerca das questões médicas envolvidas, que, enseja preconceito e discriminação8.
É inafastável a necessidade de uma transição da concepção binária para outra que reconheça e confira plenos direitos para as pessoas intersexo, todavia não é possível ignorar que essa luta enfrenta e enfrentará ainda enormes resistências sociais especialmente por “vivermos em uma sociedade em que desde a vida fetal somos posicionados socialmente em um mundo binário, em menino ou menina”9.
Vem se ampliando o reconhecimento jurídico do fato científico de que o sexo não se restringe ao binarismo do homem/macho e mulher/fêmea, sendo mesmo de ressaltar julgado tido como paradigmático proferido pelo Tribunal Constitucional Alemão10 que reconheceu, em novembro de 2017, a possibilidade de se consignar a condição de um gênero não binário nos documentos de identificação, determinando ainda que tal questão fosse positivada pelo Parlamento Alemão, com o ajuste do disposto no § 22,3 da legislação destinada ao registro civil que permitia que se deixasse em branco o campo utilizado para a indicação do sexo11.
Restando claro o conceito de intersexo (atrelado ao sexo) passamos à apreciação da intersexualidade, condição que atinge a pessoa intersexual, espectro inserido na perspectiva da identidade de gênero. Sob esse prisma afirmamos que o intersexual é uma das perspectivas da transgeneridade, sendo uma das hipóteses de pessoa transgênero (aquela pessoa que apresenta uma percepção de gênero distinta da esperada em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento)12.
Com isso asseveramos que a expressão intersexual destina-se a definir a realidade de alguém que nasceu com a condição intersexo (sexo anatômico atípico ou sexo cromossômico distinto de XX ou XY) e que a informação de sexo consignada em seus documentos (seja por uma falta de compreensão do sexo apresentado quando de seu nascimento ou pela realização de uma intervenção cirúrgica precoce) conduz a uma expectativa de performance de gênero distinta daquela autopercebida por ela, inserindo-a na perspectiva de pessoa transgênero.
Ao referir-se a alguém como intersexual estamos afirmando que se trata de uma pessoa que não se reconhece como pertencente ao gênero que se vincula ao sexo que lhe foi indicado ao nascer face a impossibilidade de associação com os parâmetros da binaridade ou uma ambiguidade genital. Assim a intersexualidade (condição de quem é intersexual) é uma das nuances presentes no campo da transgeneridade (condição de quem é transgênero) e que, portanto, se assenta na incompatibilidade entre o sexo consignado ao nascer e o gênero que aquela pessoa reconhece como seu, o que também ocorre com transexuais e travestis, por exemplo.
Evidencia-se, com isso, que a intersexualidade não é característica presente na vida de toda pessoa intersexo, já que ela pode ser tanto cisgênero (ou ipsogênero como alguns preferem, nomenclatura indicada para pessoas cisgênero - aquelas que não apresentam conflito entre o seu gênero autopercebido e o esperado em razão de seu nascimento - mas que não gozam de todos privilégios inerentes a tal condição, já que seus corpos podem ser tratados como inadequados e com mutações que haveriam de ser corrigidas)13, quanto transgênero (e, consequentemente, intersexual).
Assim, tem-se a expressão intersexo para a especificação de aspectos atrelados ao sexo na perspectiva da representação genética ou física do corpo daquela pessoa que não se enquadra no binarismo tradicional, enquanto intersexual se refere à identidade de gênero daquela pessoa transgênero que é ou nasceu intersexo e a quem se atribuiu um gênero que não se coaduna com o seu gênero de pertencimento.
Numa visualização gráfica e tentando ser o mais didático possível, temos:
INTERSEXO (“Intersexolidade”)
|
Sexo |
Cromossômico (diferente de XX ou XY, mosaico entre XX e XY ou mosaico de outra característica genotípica), ou anatômico (sexo anatômico distinto do genético ou anatomicamente atípico) |
INTERSEXUAL (intersexualidade) |
Identidade de gênero |
Não pertencimento ao gênero esperado em razão do sexo indicado a uma pessoa intersexo quando do nascimento |
Em suma, o que sustentamos é que intersexo e “intersexolidade” estão vinculados ao sexo e se enquadram em uma situação não abrangida nem pelos parâmetros clássicos do homem/macho nem da mulher/fêmea, enquanto o intersexual e a intersexualidade se conectam à identidade de gênero, inseridos entre as hipóteses de transgeneridade (pessoas transgênero) por entenderem-se pertencentes a gênero distinto daquele consignado erroneamente quando de seu nascimento em decorrência de ser uma pessoa intersexo.
Com isso entendemos que parte da celeuma estabelecida possa ser afastada, bem como que com a definição da amplitude e aplicação de cada expressão será possível uma qualificação nas discussões relacionadas aos interesses das pessoas intersexo, viabilizando uma melhor definição das necessidades e políticas públicas a serem instituídas visando a efetivação dos direitos e garantias fundamentais para esse grupo tão vulnerabilizado e que clama pela simples possibilidade de ser quem é.
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1 Disponível em https://www.nature.com/articles/518288a Acesso em 28 abr.2023.
2 SILVA, Magnus R Dias da. Repensando os cuidados de saúde para a pessoa intersexo. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 383.
3 Disponível em https://ijpeonline.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13633-019-0065-x Acesso em 28 abr.2023.
4 BLACKLESS, M., CHARUVASTRA, A., DERRYCK, A., FAUSTO-STERLING, A., LAUZANNE, K. and LEE, E. (2000), How sexually dimorphic are we? Review and synthesis. American Journal of Human Biology, vol. 12, p. 151-166, 2000. ISSN 1520-6300
5 Disponível em https://www.nature.com/articles/518288a Acesso em 28 abr.2023.
6 VARELA, Dráuzio. Batalhas sexuais. Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 10.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 308.
9 MARTINS, Raul Aragão; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos. Educação da criança intersexo: o que temos? Intersexo. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 195 – 206, 2018.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020.
11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 125.
12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo para pessoas LGBTI. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, 2022, p. 192.
13 Disponível em https://orientando.org/categorias-relacionadas-a-genero/ Acesso em 30 abr.2023