A concepção de família em nossa sociedade passa inquestionavelmente pela figura dos pactos realizados por pessoas com o objetivo de estabelecimento de uma comunhão de vidas, sendo o seu instrumento mais elementar a figura do casamento, ladeada da união estável.
Tradicionalmente o casamento, com todas as suas raízes no direito canônico, foi modalidade destinada à união de um homem e uma mulher, mediante a prática de uma solenidade com o fim de formalizar aquele relacionamento. Contudo com a separação do Estado da Igreja, constitucionalmente estabelecida em 1891, vem se consolidando, ainda que de forma extremamente vagarosa, o afastamento da regência dos preceitos da religião católica do nosso ordenamento (e também das manifestações do Judiciário) no que tange à fixação do conceito de família e, ato contínuo, dos direitos a ela inerentes.
Evidente que ainda nos deparamos com a arrogância do universo jurídico de se colocar como o senhor da sociedade e fixador de parâmetros, negando o reconhecimento de direitos a famílias que ele não considera como tal, ainda que na prática sejam efetivamente assim reconhecidas1. Famílias paralelas, simultâneas, poliafetivas, trisais, entre outras, são famílias ainda que o Judiciário venha negando o reconhecimento lastreando seu entendimento na perspectiva de que a monogamia seria princípio adotado por nosso ordenamento, ignorando que tal parâmetro é oriundo de uma interpretação religiosa bastante enviesada e que não poderia nortear a legislação de um Estado laico2.
Em que pese toda a batalha conservadora para apartar certas uniões da proteção legal hoje temos consolidado o entendimento de que tanto o casamento quanto a união estável podem ser firmados sem que haja a diversidade de sexos anteriormente exigida. Tal assertiva se faz possível não por ter o Poder Legislativo cumprido o seu papel e adequado a legislação à realidade da nossa sociedade, mas em decorrência da atuação do Poder Judiciário, mormente ante ao julgamento da ADI 4275, mais uma vez estampando de maneira inconteste a absurda leniência legislativa quando o tema está em alguma medida conectado com questões relacionadas com a sexualidade3.
De início é interessante notar que outrora quando se tratava do casamento entre pessoas do mesmo sexo Pontes de Miranda chegou a asseverar que tal modalidade de união havia de ser considerada inexistente, mesmo sem qualquer vedação expressa no texto legal, pois essa seria desnecessária a partir da compreensão de que se tratava de uma previsão natural4.
O fato é que a realidade social se impôs e após muita luta houve o reconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, seguida pela possibilidade de casamento ou de conversão de união estável em casamento, o que acabou se consolidando com a Resolução 175/13 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Com o objetivo de tentar mitigar um pouco o preconceito que sempre permeou os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo em nosso país, em um louvável esforço de Maria Berenice Dias, se difundiu a expressão casamento ou união estável homoafetiva, tendo a condição do afeto homossexual como base da construção do termo. Mesmo compreendendo a intenção e os motivos que conduziram à escolha da expressão "homoafetivo" já de longa data tenho me colocado contrário ao termo por entender que além de não apresentar a construção técnica mais acurada ainda pode dar azo a um aprofundamento de certos preconceitos que circundam as vivências das chamadas minorias sexuais.
A expressão homoafetivo se constrói ante a conjugação do prefixo "homo", que significa mesmo ou igual, agregado com "afetivo", relacionado a afeto, carinho, sentimento de afeição, o que conduziria ao entendimento de que se trataria de uma união entre pessoas que demonstram o mesmo afeto. E aqui surge o primeiro ponto de dissonância pois ao buscar indicar uma condição de afeição ou relacionamento homossexual está valendo-se de uma palavra que não atende perfeitamente ao que pretende revelar, especialmente ao se partir do pressuposto que em todo relacionamento, ao menos em teoria, as pessoas compartilham do mesmo afeto.
A tal ideia há de se agregar que na origem a perspectiva já se mostrava lastreada no equívoco de pressupor que todo relacionamento entre pessoas de sexo distinto seria heterossexual e os de pessoas com o mesmo sexo estaria fundado na homossexualidade. Como fizemos questão de deixar patente no texto inaugural dessa coluna sexo é aspecto da sexualidade distinto da orientação sexual, ao que há de se acrescentar que nesse sentido não se pode pensar em uma perspectiva meramente binária de heterossexualidade e homossexualidade, havendo ainda as figuras da orientação bissexual, assexual e pansexual.
Em seguida é pertinente se ponderar que o parâmetro utilizado para a vedação desses casamentos, ao menos tecnicamente, estava fundado na inexistência da diversidade de sexos e não na orientação sexual dos nubentes. É imprescindível para a boa técnica jurídica e uma análise escorreita das situações que envolvem as chamadas minorias sexuais que não se confunda o que são sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Considerando os critérios tradicionais fixados para a possibilidade do casamento vinculados à diversidade sexual dos nubentes nota-se que o aspecto que era aferido pelos Cartórios no processo de habilitação para o casamento estava atrelado à informação que constava no campo destinado ao sexo na certidão de nascimento daquele que intentava casar-se, sem que se fizesse qualquer questionamento acerca da orientação sexual dos nubentes. Evidente que a expressão de gênero das pessoas poderia gerar algum tipo de estranhamento quando fugisse do usual, contudo o aspecto formal analisado estava conectado com a informação oficial constante do assento de nascimento.
A impropriedade de se nomear tal casamento ou união estável de homoafetivo ou homossexual se verifica pela simples assertiva de que não há o costume de nomear o casamento entre pessoas de sexo distintos de casamento heteroafetivo ou heterossexual. Evidente que poder-se-ia refutar essa afirmação com a alegação de que tal modalidade de casamento ou união estável são/eram nominados simplesmente de casamento ou união estável por se tratarem da modalidade “normal” prevista pelo nosso sistema cis-heteronormativo, contudo entendo que é importante que passemos a compreender melhor a concepção que envolve a questão posta, sobretudo ao se considerar que a inclusão de uma qualificação a esse casamento acaba por reforçar um estigma que historicamente acompanha os grupos minoritários sob a perspectiva sexual.
Acrescente-se ainda que um relacionamento não ganha uma nova designação no caso de a orientação sexual de seus integrantes se alterar na sua constância por não mais se reconhecerem como heterossexuais. Não se vê a prática de se passar a nomear um casamento ou união estável de assexual (caso os cônjuges ou companheiros deixem de demonstrar interesse no estabelecimento de relações sexuais na constância desse enlace) ou pansexual (pelo fato de os integrantes desse relacionamento passarem a entender que a questão de gênero em si é irrelevante) pela superveniência da compreensão de que a orientação sexual de alguém é distinta daquela percebida no passado.
À guisa de provocação acadêmica, haverá a alteração da nomenclatura dada ao relacionamento no caso em que uma pessoa transgênero realiza seu processo de transição na constância de um casamento ou união estável, o que faria com que eventualmente o gênero de pertencimento de ambos os cônjuges ou companheiros passasse a ser o mesmo?
Não se tem ciência (ao menos eu não tenho) de casamento que não tenha obtido a habilitação pelo fato de que um dos cônjuges fosse assexual ou pansexual, exatamente por não se levantar tal sorte de questionamento. Nem mesmo nos textos mais conservadores se encontra qualquer menção de que um dos requisitos para a habilitação do casamento seria a necessidade de indicação da orientação sexual dos nubentes.
Caso a indicação da orientação sexual fosse exigida para o processo de habilitação podemos imaginar a quantidade de afirmações inverídicas que seriam apresentadas ao cartório nas inúmeras situações em que as famílias tradicionais impunham a seus filhos a realização de casamentos “heterossexuais” para afastar questionamentos sociais quanto a sexualidade “duvidosa” de seus integrantes.
Ainda nessa seara do ordinariamente esperado em sede de casamento uma situação que tinha o potencial de gerar um enorme impacto nas bases conservadoras se dava quanto a manifestação de gênero da pessoa que pretendia se casar não se coadunava com o dela esperado em decorrência do sexo que lhe fora atribuído quando do nascimento.
Segundo o parâmetro formalmente estabelecido e em manifesta afronta aos preceitos conservadores que pregavam pela prevalência da concepção tradicional, não havia impeditivo, de início, para que duas pessoas transgênero viessem a se casar caso não tivesse havido qualquer alteração em seus documentos, mesmo que já realizado o processo físico de transição5. Estaríamos diante de duas pessoas transgênero heterossexuais se casando, o que não ofenderia nem o imperativo da diversidade de sexo tampouco o do relacionamento heterossexual.
Preponderante se ter em mente que o que sempre afrontou os conservadores foi a expressão pública de carinho e afeto entre pessoas que performavam socialmente o mesmo gênero, mormente ao se considerar que as relações sexuais por essas pessoas eram praticadas sob o manto da intimidade do lar. Havia e há uma certa “tolerância social” da ala mais conservadora da sociedade com relação a tais relacionamentos se eles não forem expostos e ficarem restritos ao âmbito doméstico, em uma manifesta ofensa que tenta impor a muitas pessoas que se relacionam com alguém do mesmo sexo ou gênero a obscuridade e a marginalização.
Dessa forma fica patente que ao se utilizar de expressões como casamento ou união estável homoafetiva ou homossexual se está a laborar com uma expressão atécnica e que coloca em risco a perfeita compreensão do que se está a tratar, sendo premente que passemos a entender que a fase inicial de tentativa de afastar o estigma da utilização de certas expressões já está no passado, impondo-se que a concepção técnica venha a se sobrepor.
A afirmação de que se trata de um relacionamento homoafetivo ou homossexual desvia-se da técnica e também reduz indevidamente a complexidade da sexualidade que permeia as pessoas e suas relações. Assim, não é adequado afirmar que se trata de um relacionamento homossexual ou homoafetivo pois (i) o que se aferia originalmente para a viabilidade do casamento era o sexo, (ii) não se perquirindo sobre a orientação sexual de quem buscava se casar, e (iii) a tida afronta social que se visava impedir estava, na prática, muito mais associada ao gênero expressado pelos nubentes do que com o direcionamento da conduta afetivo/sexual daquelas pessoas.
Com isso fica patente que falar de união entre pessoas do mesmo sexo ou gênero não tem necessariamente o mesmo significado de se falar em união homoafetiva ou homossexual.
Ao mesmo tempo a utilização nos dias atuais de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo já não se enquadra nos limites do que se busca estudar, especialmente por se entender, como já indicamos em textos anteriores dessa coluna, que dificilmente as pessoas na sua vida social tem real conhecimento acerca do sexo (aspectos físicos genitais ou cromossômicos, por exemplo) das outras, tendo somente acesso ao gênero por elas expressado. De sorte que, ao fim e ao cabo, o que se vê socialmente é o preconceito e segregação com relação a pessoas do mesmo gênero que relacionam-se entre si.
Deixando bastante patente que havendo a prevalência dos preceitos e garantias fundamentais às minorias sexuais, com a garantia de que tais pessoas possam exercer seus afetos de forma plena e com o devido resguardo da lei, a discussão quanto a nomenclatura tecnicamente mais perfeita se torna um elemento de menor relevância, contudo a nós compete a atuação no sentido de prover o implemento das perspectivas técnicas pertinentes visando a escorreita aplicação dos termos apropriados.
Assim, considerando o afastamento da vedação ao casamento ou união estável em razão da falta diversidade sexual e a inexistência de sua vinculação com a orientação sexual dos nubentes, atualmente nos parece ser mais coerente que passemos a apreciar os temas conexos que fogem à perspectiva cis-heteronormativa dos relacionamentos amorosos sob o prisma do gênero performada pelos integrantes daquela união, e não por seu sexo ou orientação sexual.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p. III - VII, 2022.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 7.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.
4 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 202.