Direito e Sexualidade

A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos

A coluna buscará dialogar com os mais diversos ramos do Direito demonstrando como aspectos relativos à sexualidade impactam no ordenamento jurídico, bem como seus reflexos na atividade dos nossos tribunais.

26/1/2023

É com enorme satisfação que hoje se dá início à trajetória das discussões da sexualidade como parâmetro relevante para o direito no Portal Migalhas, por meio da Coluna Direito e Sexualidade. Com o objetivo de conferir luz a esse tema tão relevante e muitas vezes ignorado ou marginalizado, a coluna buscará dialogar com os mais diversos ramos do direito demonstrando como aspectos relativos à sexualidade impactam no ordenamento jurídico, bem como seus reflexos na atividade dos nossos tribunais.

Ao expor tais considerações é possível que o leitor do Portal Migalhas passe a conhecer a relevância da sexualidade como elemento jurídico ou, caso já seja um iniciado nessa seara, que tenha condições de aprofundar e qualificar sua compreensão, inserindo-o em uma realidade de maior inclusão e diversidade, atendendo aos parâmetros mais nucleares e fundantes de um estado democrático de direito.

E exatamente com o fulcro de atingir o objetivo precípuo da presente coluna passaremos, nesse texto inaugural, a tecer algumas considerações acerca dos elementos nucleares da sexualidade e sua inserção no mundo jurídico.

De plano se faz premente afirmar que sendo a sexualidade um aspecto indissociável da condição humana não é possível se pensar a sociedade e, ato contínuo, o direito apartado da sua existência. A sexualidade integra a humanidade de cada indivíduo e se faz presente de forma contínua no cotidiano de todas as pessoas, de maneira direta ou indireta, independentemente da consciência de que isso esteja efetivamente ocorrendo, sendo parte integrante dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade1.

Todavia de se ressaltar que nossa intenção não é trazer aqui uma discussão antropológica ou sociológica da sexualidade, mas sim um escorço básico da sexualidade e seus alicerces de sustentação, como também a forma como tais questões incidem nas situações fáticas com repercussão jurídica.

Nesse sentido, a sexualidade pode ser compreendida como "uma ideia ampla e abrangente que se refere a toda sorte de manifestação vinculada ao sexo, em concepção que se espraia desde as características física do indivíduo até a percepção quanto ao seu gênero e destinação de atração sexual"2 e que sustenta-se estar erigida sob quatro patamares de sustentação: sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.

É recorrente que nos deparemos com equívocos na compreensão dos conceitos vinculados à sexualidade na prática, bem como com a aplicação errônea em diversos documentos oficiais, legislações e decisões judiciais, o que se mostra extremamente preocupante. Sendo assim se faz pertinente tecer algumas considerações sobre cada um desses pilares da sexualidade.

Considerando o primeiro dos pilares podemos afirmar que o sexo, palavra polissêmica, em sentido estrito e considerando a perspectiva mais ordinariamente utilizada na esfera jurídica, "há de ser compreendido como sendo a conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa e que, de regra, haverá de ser consignada na Declaração de Nascido Vivo (DNV) e, ato contínuo, na Certidão de Nascimento da pessoa, atendendo, ordinariamente, ao padrão binário de homem ou mulher"3. Em uma visão bastante superficial, em um momento inicial, se considera homem (macho) aquele que nasce com pênis e bolsa escrotal e mulher quem não os apresenta, sendo tal parâmetro preliminar o que será consignado na Declaração de Nascido Vivo (DNV) a ser levada a registro.

Contudo a questão não se restringe a essa visão simplória, existindo um grande número de condições sexuais que não se enquadram nessa dualidade do ideal binário do homem/macho ou mulher/fêmea, caracterizando a figura da pessoa intersexo, situação que pode ser encontrada em até 2% da população mundial4.

A presente questão vinculada ao sexo tem sido objeto de discussão fundada na simples perspectiva de que como há a imposição de que a informação do sexo conste da certidão de nascimento há a necessidade de se afastar a percepção da binaridade que ainda faz com que muitos médicos e cartórios indiquem a realização de intervenções cirúrgicas precoces em crianças em tenra idade, o que pode se revelar extremamente traumático e perigoso.

Em seguida há de se apreciar o gênero como alicerce da sexualidade. Em que pese existir uma constante confusão na utilização dos termos, o gênero, tecnicamente, difere da concepção do sexo. Por gênero se tem "a expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino)" baseado em "expressões socioculturais atribuídas a quem é homem, como a força, a virilidade, a cor azul e outras que são ordinariamente conferidas às mulheres, como a fragilidade, a delicadeza, a utilização da cor rosa e de saia, por exemplo" e, com isso, os "traços ordinariamente vinculados aos homens (sexo) se nomeiam de masculinos (gênero), enquanto aos atrelados à mulher (sexo), denominam-se de feminino (gênero), evidenciando, de outra sorte, que em que pese ter uma associação com o sexo anatômico, trata-se de um conceito cultural desprovido de uma vinculação necessária com ele, já que carente de uma base biológica"5.

Os reflexos do gênero no mundo jurídico podem ser aferidos nas inúmeras questões em que a condição feminina se mostra um elemento de segregação ou mesmo de restrição de acessos, como se dá, como exemplo, com a questão da diferença salarial e mesmo a dificuldade de ascender aos cargos de comando nas empresas enfrentados por pessoas do gênero feminino. Ressalta-se também as agruras suportadas pelas mães solo para cumprir sozinha com as necessidades apresentadas por seus filhos.

Em seguida há de se apreciar a orientação sexual como sustentáculo da sexualidade e que está atrelada com o "interesse ou atração afetivo-sexual, que não se funda em uma perspectiva de caráter volitivo e que tem sido compreendida em linhas superficiais em 5 grupos, quais sejam: heterossexuais (atração direcionada a pessoa de gênero distinto), homossexual (interesse destinado a alguém do mesmo gênero), bissexuais (atração por pessoas tanto do mesmo gênero quanto de gênero distinto), assexuais (sem a expressão de interesse sexual por qualquer dos gêneros) e pansexuais (atraem-se por pessoas independentemente de qualquer consideração quanto ao gênero), em uma visão bastante superficial"6.

No âmbito da orientação sexual é de se consignar que muitas lutas travadas buscando que tal característica não encerrasse um viés de restrição de direitos já encontram-se encaminhadas, mas não vencidas. É o caso da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero que apesar de respaldada por decisão com força vinculante proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e com provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instrumentalizando-a, ainda não encontra o devido acolhimento na legislação positivada.

Finalmente, como último dos arrimos em que se sustenta a sexualidade está a identidade de gênero, a qual está associada "ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino), independentemente da sua constituição física ou genética"7.

Quanto a identidade de gênero é possível se afirmar que as pessoas podem ser compreendidas como sendo cisgênero ou transgênero. Tem-se por cisgênero aquele que se reconhece como pertencente ao gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do seu nascimento, enquanto transgênero seria aquele que apresenta uma incompatibilidade entre o sexo que lhe foi indicado ao nascer e o gênero ao qual se entende pertencente, conceito que alberga em si várias figuras, sendo as mais suscitadas a de transexuais e travestis.

Em que pese ser reiterada a utilização das duas expressões transexuais e travestis como sinônima há, "segundo parte da doutrina, o entendimento de que poderia ser considerado como elemento distintivo entre essas duas condições a existência de uma repulsa com relação aos órgãos sexuais apresentada pelos transexuais que não se faz presente entre as travestis"8.

No que concerne às situações juridicamente relevantes que permeiam a identidade de gênero se tem a figura da possibilidade de mudança de nome e sexo/gênero nos documentos de identificação pessoal garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da ADI 4275, contudo não se pode olvidar a nefasta leniência legislativa do Estado9 que até o presente momento nada positivou nesse sentido, fato que auxilia no aprofundamento do estado de genocídio10 enfrentado pela população trans.

Obviamente que a segregação, a discriminação e o preconceito permeiam a vivência daqueles que não se inserem no conceito de normalidade11 imposto no que concerne à orientação sexual e à identidade de gênero, sendo imprescindível se laborar em busca da efetiva implementação dos direitos e garantias fundamentais a esses grupos vulnerabilizados em razão de sua sexualidade12.

O objetivo dessa coluna inaugural é de maneira muito singela tentar demonstrar que a sexualidade é um aspecto da condição humana que permeia continuamente a vida de todos os indivíduos e que imprime sua presença nos mais variados campos da sociedade, com fortes reflexos no contexto jurídico.

Dessa forma, a compreensão mínima dos parâmetros elementares que compõem a sexualidade se faz premente para o exercício de qualquer atividade no mundo jurídico com a acuidade técnica esperada de quem compreende o direito com toda a complexidade que lhe é inerente.

__________

1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 50.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 – 321, 2021, p. 308

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n., p.189-204, 2022, p. 191

4 BLACKLESS, M., CHARUVASTRA, A., DERRYCK, A., FAUSTO-STERLING, A., LAUZANNE, K. e LEE, E. (2000), How sexually dimorphic are we? Review and synthesis. American Journal of Human Biology, vol. 12, p. 151-166, 2000.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 – 321, 2021, p. 309-310.

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 162

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade. v. 2, n. 2, p. 213-231, jul./dez. 2021, p. 217.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.

10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10.

12 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504.

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Colunista

Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa "Conversas Civilísticas" e "Direito e Sexualidade", certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de "Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil" e de "Sucessões. Colação e sonegados", além de inúmeros artigos jurídicos.