Direito e Mulher

Acredito na Justiça…na que me convém, claro! Marcius Melhem clama por justiça... mas uma que lhe convém, claro!

Bom, é preciso que o acusado siga um caminho claro e coerente acerca da sua compreensão do papel do Poder Judiciário, que, por certo, não pode desempenhar o que está em seu imaginário: o de seu representante legal e protetor.

13/9/2023

"Se acontecer uma prisão, ou uma condenação, mesmo sem prisão, para mim, seria a falência de qualquer bom senso e da Justiça" diz, em um tom de arrogância e petulância inerentes àqueles que têm a certeza da impunidade, o homem denunciado por crimes contra a dignidade sexual, na modalidade continuada, contra três vítimas. 

Interessante a narrativa do acusado que diversas vezes afirma ser o responsável pela "judicialização" do caso, enquanto as supostas vítimas queriam, apenas, "vingança", porque ora aponta para o Poder Judiciário como o locus adequado para apurar todos os fatos, os argumentos e as condutas do caso com isenção e imparcialidade, ora afirma, categoricamente, que qualquer coisa que não seja sua total inocência seria uma afronta ao bom senso e à Justiça. 

Aliás, durante a entrevista, o humorista comenta, com tom de indignação, o fato de que recentemente foi instaurado um inquérito policial para apurar a prática de violência psicológica e perseguição contra as mesmas mulheres, em razão da campanha difamatória contra elas que ele promoveu em tom jocoso em seu canal no Youtube. Ele afirma que a investigação tem o claro objetivo de silenciar sua defesa. Para Marcius, mais uma vez, só é legítima a ação e a ferramenta, nesse caso, a mídia, se manejada a seu favor. 

Bom, é preciso que o acusado siga um caminho claro e coerente acerca da sua compreensão do papel do Poder Judiciário, que, por certo, não pode desempenhar o que está em seu imaginário: o de seu representante legal e protetor. 

Voltemos aos fatos que ensejaram o processo. Marcius Melhem, ator e humorista bastante conhecido na televisão brasileira, no dia 4 de setembro de 2023, foi denunciado pelo crime de assédio sexual, contra três vítimas. A denúncia foi analisada e recebida pelo juízo responsável. 

Antes da denúncia formal, muitas headlines e notícias sobre o assunto foram veiculadas por meios de comunicação diversos. Poucos dias após a formalização, em denúncia, do caso, o homem falou publicamente sobre o assunto, em entrevista a um jornal de grande circulação, na qual fez uma série de afirmações distorcidas e enviesadas, começando por essa que destacamos no início do texto. 

Não temos a intenção de esgotar o assunto e, menos ainda, de emitir parecer sobre a possível condenação ou absolvição do acusado. Afinal, estamos apenas no início do processo judicial. O que nos motiva a essa escrita é a forma como ele se comporta, convicto de que está certo, mesmo quando os indícios apontam na direção oposta, desconsiderando, inclusive, que é exatamente a presença de indicativos, no mínimo, de razoável credibilidade sobre a prática dos crimes, que o conduziram à condição de réu. 

Em um determinado momento da entrevista, Marcius afirma sem a mais remota sombra de constrangimento: "[...] a justiça dispensa cinco denúncias e fica com três", dando a impressão, evidentemente equivocada, que entre as oito acusações de violência sexual, o Judiciário teria selecionado arbitrariamente três delas para seguir adiante, como se tivesse havido uma espécie de sorteio ou algo aleatório semelhante. 

Logicamente, a informação chama a atenção de qualquer espectador desavisado ou leigo, que poderia questionar o motivo de tal escolha. No entanto, curiosamente, ou melhor, deliberadamente, o ator deixou de mencionar que os outros cinco casos foram arquivados em decorrência da prescrição, ou seja, o transcurso do tempo foi o motivo das denúncias não comporem o processo e não um juízo de mérito que as tenha invalidado. 

Em outro momento da entrevista ele afirma ter provado, no caso da atriz Dani Calabresa, que não houve crime e que a mulher teria mentido. De fato, o entendimento do Judiciário foi de que o crime não aconteceu, mas não porque os fatos narrados não ocorreram, mas sim porque na época em que aconteceram, em 2017, o crime de importunação sexual ainda não havia sido tipificado. Mais uma fala enviesada, pouco clara e que induz, parte das pessoas, à uma narrativa incompleta da situação e descredibiliza a suposta vítima, uma vez que passa a falsa impressão de que o fato não ocorreu, ou seja, ela mentiu, o que é completamente diferente de não haver tipificação legal daquela conduta à época de sua prática. 

Mantendo toda a incoerência que vem demonstrando desde o início, ao final de sua entrevista, Marcius Melhem diz que a opinião pública já acordou e que se ainda assim "arrumarem" um forma de condená-lo, "lamenta pela Justiça". 

Ainda não sabemos qual será a perspectiva adotada pela banca contratada para a defesa do ator, mas a julgar pelos comentários proferidos por ele, tudo nos leva a crer que a adoção de estereótipos sexistas e do viés de responsabilização da mulher pelas violências sofridas serão o fio condutor das teses defensivas. Desejamos e esperamos estarmos erradas. 

Lamentável mesmo é, em 2023, assistir um homem declarar, publicamente, enquanto ostenta a condição de réu, que justiça de verdade é aquela que lhe convêm.

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Colunistas

Denise de Almeida Andrade é doutora e mestre em Direito Constitucional. Pós- doutora em Direito Político e Econômico. Pesquisadora em Direitos Humanos, Gênero e Gestão de Conflitos. Professora do mestrado e graduação em Direito da Unichristus. Professora da FGVLaw - São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa Mulheres e Democracia.

Mônica Sapucaia Machado é advogada, doutora em Direito Político e Econômico, coordenadora do programa de mestrado em Direito, Justiça e Desenvolvimento do IDP e líder do grupo de pesquisa Mulheres e Democracia. Contato: monicasapucaia@sapucaiaegers.net