Na primeira ocasião em que alguém chutou uma bexiga de porco nas terras inglesas, poucos poderiam prever a quantidade de polêmicas que viriam a surgir ao longo de 160 anos de partidas1. O futebol, enquanto conceito, carrega consigo a essência do espaço público e é visto como uma prática social que pertence ao universo masculino. Nesse sentido, a construção social de gênero relegou o papel feminino ao âmbito privado, associando-o ao cuidado, à responsabilidade familiar e ao zelo como aspecto central da identidade da mulher2.
À medida em que nos aproximamos do início da Copa do Mundo de Futebol Feminino, promovida pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), em 20 de julho de 2023, é importante retomar as reflexões e discussões sobre a incessante busca pela equidade de gênero no esporte, especialmente no esporte mais popular do nosso país: o futebol.
Ao longo da história, identificamos três dimensões fundamentais na luta pela igualdade no esporte bretão. A primeira se refere à batalha pelo direito das mulheres em praticar o futebol, considerando a proibição que vigorou até a segunda metade do século XX. A segunda dimensão manifesta-se na organização das instituições e, consequentemente, das competições, pois não basta ter o direito de praticar o esporte se não houver um ambiente propício e oportunidades adequadas para fazê-lo. A terceira dimensão diz respeito à igualdade de remuneração entre mulheres e homens.
Deste modo, trazendo uma perspectiva histórica ao nosso ensaio, o futebol brasileiro tem sua organização profissional marcada pela criação das primeiras Federações (Federação Brasileira de Sports e Federação Brasileira de Football) nos anos de 1914 e 1915, e posteriormente unidas para a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade privada dedicada à organização da atividade esportiva no Brasil. Os clubes de futebol, à época, dispunham apenas de times de futebol masculino.
Em 1941, o decreto-lei 3.199 foi promulgado, estabelecendo o Conselho Nacional de Desportos e os Conselhos Regionais de Desportos, vinculados ao Ministério da Educação e Saúde. Esses órgãos tinham como objetivo principal orientar, fiscalizar e incentivar a prática esportiva em todo o país (BRASIL, 1941). No entanto, infelizmente, o referido Decreto, em seu artigo (art.) 54 estabelecia que as mulheres não poderiam participar de determinadas práticas desportivas por conta de sua condição.
A chamada "condição" mencionada traz consigo uma conotação que reflete os papéis sociais impostos a mulheres e homens em sua própria condição de "ser" social. Isso implica na naturalização de um corpo masculino como o único capaz de ser agressivo, contestador, lutador e confrontador diante de um oponente, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Por outro lado, o corpo feminino é visto como delicado, necessitando ser preservado ou até mesmo restringido ao espaço privado ou familiar (DAMO, 2006).
Apesar de não haver uma proibição expressa da prática do futebol por parte das mulheres e, mesmo sem o apoio das organizações responsáveis pela regulamentação do esporte, a participação das mulheres no futebol teve um crescimento significativo, com visibilidade na mídia, o que gerou uma reação por parte das instituições reguladoras.
Internacionalmente, o Comitê de Emergência da FIFA posicionou-se contrariamente à prática do futebol feminino (SILVA, 2015). No Brasil, a proibição expressa ocorreu vinte e quatro anos após a promulgação do Decreto-Lei 3.199 de 1941, por meio da deliberação nº 7 de 2 de outubro de 1965 do Conselho Nacional de Desportos. Essa deliberação afirmava que, embora a prática esportiva fosse permitida para as mulheres, o futebol (de qualquer modalidade), lutas, handebol, entre outros esportes, estavam excluídos. A permissão sobreveio apenas em vinte e um de dezembro de 1979, por meio Deliberação 10/79 do Conselho Nacional de Desportos, em que se revogou expressamente a Deliberação 07/65.
Quatro anos após a autorização para a prática desportiva, em 1983, sessenta e nove anos após a regulamentação da modalidade para homens, a prática profissionalizada pelas mulheres foi finalmente regulamentada pela deliberação Nº 01/1983 do Conselho Nacional de Desportos. No entanto, essa regulamentação impôs restrições expressas em comparação com a modalidade praticada pelos homens, evidenciando uma concepção de "fragilidade" atribuída às mulheres.
O regulamento estabelecia que a duração da partida seria de dois tempos de trinta e cinco minutos cada (dez minutos a menos do que a modalidade masculina por tempo), permitindo um maior número de substituições. Além disso, havia a proibição do uso de chuteiras com "travas de metal, travas pontiagudas ou qualquer outro tipo que pudesse representar perigo para as outras jogadoras" (BRASIL, 1983). Essas restrições evidenciam uma visão limitante e estereotipada da capacidade e resistência das mulheres no esporte.
É importante ressaltar novamente que tais processos regulatórios não promoviam, e talvez nem tentassem, a igualdade de gênero, uma vez que colocavam as mulheres em condições limitantes para a prática do futebol, sob o discurso de "proteção". Essa produção de violência simbólica (BOURDIEU, 2012) reflete a categorização dos corpos masculinos e femininos dentro do contexto do futebol, reforçando preconceitos e estabelecendo uma hierarquia de gênero como norma (VIEIRA et al., 2012).
Ao compreender o contexto histórico das permissões para a prática do futebol feminino no Brasil, é possível observar que não bastava apenas autorizar a prática do esporte; era necessário também a organização de competições pelas entidades competentes.
Os primeiros campeonatos estaduais de futebol feminino foram realizados em 1983, após a regulamentação do esporte pelo Conselho Nacional de Desportos. No entanto, em poucos estados houve continuidade das competições nos anos seguintes, destacando-se os torneios realizados no Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul, que mantiveram a regularidade anual desde a primeira edição.
No âmbito internacional, a primeira competição profissional de futebol feminino organizada pela FIFA ocorreu em 1988, denominada Women's Invitational Tournament. Tratou-se de um torneio mundial experimental que contou com a participação de seleções de doze países diferentes (Austrália, Brasil, Canadá, China, Costa do Marfim, Estados Unidos, Holanda, Japão, Suécia, Tchecoslováquia e Tailândia). Na ocasião, conforme relata reportagem matéria do portal Globo Esporte, ficou evidente o descaso no tratamento das jogadoras, que jogaram sem qualquer uniforme idealizado para elas, apenas com ‘roupas masculinas reaproveitadas’. (GLOBO, 2019). Em 1991, ocorreu a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, sessenta e um anos após a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino, com a participação de doze seleções.
Nos jogos olímpicos, a primeira aparição da competição de futebol feminino se deu em 1996, nas Olimpíadas de Atlanta, sendo continuada nas edições seguintes dos jogos.
No que tange à organização da modalidade praticada pelas mulheres a nível nacional, o primeiro campeonato brasileiro de futebol feminino somente foi realizado no ano de 2013, o que demonstra, novamente, grande disparidade em relação à prática pelos homens, que tiveram a primeira competição nacional organizada no ano de 1950.
Essa disparidade também continua em uma terceira dimensão de busca por igualdade, representada pelo abismo existente entre os valores destinados a cada uma das modalidades desportivas, demonstrando uma desvalorização decorrente do machismo estrutural enfrentado pelas mulheres.
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, anunciou durante o 73º Congresso da FIFA em 16 de março de 2023 que o valor das premiações na Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2023 terá um aumento de 300% em relação à edição anterior, totalizando US$ 150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões de dólares).
Embora haja uma evolução em relação à edição anterior, quando comparada à competição masculina equivalente, o valor destinado às mulheres representa apenas cerca de 1/3 do valor pago em premiações na Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2022, que alcançou a quantia de US$ 440.000.000,00 (quatrocentos e quarenta milhões de dólares).
Além disso, durante seu discurso, o presidente da FIFA expressou seu desejo de embarcar em uma "jornada histórica pelo futebol feminino e pela igualdade" que "nos levará a um caminho em direção à igualdade salarial" (MNGQOSINI, 2023), apontando a preocupação da entidade máxima do futebol mundial na busca da equiparação salarial.
É possível observar que ainda no presente século a busca constante por equidade é uma realidade plasmada pelas lutas e conquistas anteriormente realizadas. Esse processo histórico de se tornar mulher é um devir constante. Isso porque Carla Rodrigues (2019), interpretando Judith Butler e Simone de Beauvoir, entende que a tradução da célebre frase ‘não se nasce mulher, se torna mulher’ foi mal realizada. A ideia do semântico do francês para o português é advinda do verbo ‘devir’. Deste modo, a frase seria desta maneira: ‘não se nasce mulher, devém-se mulher’. O devir é sempre um devir histórico, uma possibilidade de. De lutas, de conquistas, de confrontos e embates. É uma constante evolução e um constante debate sobre o constructo da mulher no contexto social.
No âmbito do desporto, e principalmente o futebol, não seria diferente. O futebol desde a sua instituição, era visto por algumas jogadoras como uma forma de luta, de resistência (SILVIA, 2015). Hoje ainda é visto deste modo, principalmente quando se observa os valores pagos às profissionais femininas em comparação aos profissionais masculinos. Por que é aceitável que se pague para uma profissional, que exerce a mesma atividade, em uma mesma posição, um valor infinitamente menor do que se paga para os homens3? Por que é aceitável os silenciamentos das mulheres em suas atividades profissionais? São perguntas reais que são cabíveis de se fazer em relação às profissionais do futebol, mas que cabem em outras realidades vividas.
Pensar em um contexto democrático é realizar a equidade de gênero. Pensar em um país desenvolvido é pensar na equidade de gênero. O espaço destinado às mulheres para a prática do futebol é um local de disputas políticas em que os corpos femininos que nele jogam são atravessados por um conjunto histórico de opressões, silenciamentos, restringindo as mulheres em campo (e fora dele) (KNIJNIK; BARRETO JANUÁRIO, 2022). Essa característica da biopolítica (FOUCAULT, 2014) é intensificada quando se demonstra que tais corpos possuem menor valor seja de mercado, seja de valorização, seja de elevação de direitos.
É possível pensar em um caminho que nos possibilite novas estratégias e novos contextos no âmbito da equidade de gênero no futebol. O primeiro dele perpassa por uma mudança estrutural na sociedade e nos conceitos e condições impostas sobre os papeis de gênero. Entendendo que esse caminho, que perpassa pela educação, é um pouco mais difícil e longo, até chegarmos nesse composto social, Domo (2018) nos traz algumas formas, não menos difíceis, que podem auxiliar na busca dessa igualdade, quais sejam: o fortalecimento e investimento do futebol feminino de base; políticas públicas para a prática do esporte; incentivos financeiros aos times e às atletas; melhoria dos patrocínios ao futebol feminino; inserção da mulher nos cargos de gestão e técnica dentro dos clubes, federações, etc., principalmente na tomada de decisão e, por fim, maior divulgação midiática (KNIJNIK; BARRETO JANUÁRIO, 2022).
A história das mulheres no futebol é marcada por lutas, marcada por uma disparidade de investimento e reconhecimento. No entanto, mesmo com os avanços conquistados, ainda há muito a ser feito. Isso requer a desconstrução de estereótipos de gênero arraigados na sociedade, a promoção de políticas inclusivas e a valorização do talento e do esforço das mulheres no esporte. Somente através de uma atuação coletiva se torna possível criar um ambiente verdadeiramente equitativo e proporcionar às jogadoras as mesmas oportunidades e reconhecimento desfrutados pelos jogadores masculinos. Cada vitória, cada drible realizado, cada gol marcado demonstram que a luta feminista no campo (e fora dele) é necessária para o nosso crescimento enquanto sociedade.
É indiscutível que, desde aquele primeiro chute em uma bola feita com bexiga de porco nas terras inglesas, uma infinidade de disparidades tem permeado o futebol. No entanto, é justamente diante dessas adversidades que a capacidade de luta feminista e de reivindicação tem se manifestado, tanto dentro quanto fora do campo, numa tentativa hercúlea de driblar o patriarcado. Essa resistência e determinação são o verdadeiro gol de placa. É, portanto, um constante ‘devir’ histórico.
Referências:
BARRETO JANUÁRIO, Soraia, & KNIJNIK, Jorge. (2022). Futebol das Mulheres no Brasil: Emancipação, Resistências e Equidade. UFPE Editora: Pernambuco, 2022. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2023.
BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Editora Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 6ªed., 2012.
BRASIL, Conselho Nacional de Desportos. Normas Básicas sobre Desportos. Deliberações, 1965. Rio de Janeiro, 1983.
BRASIL, Conselho Nacional de Desportos. Normas Básicas sobre Desportos. Deliberações, 1979. Rio de Janeiro, 1983.
BRASIL, Conselho Nacional de Desportos. Normas Básicas sobre Desportos. Deliberações, 1983. Rio de Janeiro, 1983.
BRASIL, Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941. Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2023.
DAMO, Arlei. Futebóis–da horizontalidade epistemológica à diversidade política. Fulia/Ufmg, v. 3, n. 3, p. 37-66, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 20 mai. 2023.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya: São Paulo, 7ª ed., 2014.
GLOBO, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2023. Sem autor: A História do futebol feminino no Brasil.
RODRIGUES, Carla. Ser e devir: Butler leitora de Beauvoir. Cadernos pagu (56), 2019:e195605. Disponível aqui. Acesso em 20 mar. 2023.
MNGQOSINI, Sammy. Prêmio da Copa do Mundo Feminina aumenta em 300% e chega a R$ 792 milhões. CNN, 2023. Disponível aqui. Acesso em 20 mai. 2023.
SILVA, Giovana Capucim. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1941-1983). – São Paulo: [s.n.], 2015.
VIEIRA, Talita Machado, et al. Corpo e gênero na experiência inicial de jogadoras de futebol. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(2): e79309 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n279309.
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1 Os primórdios do futebol iniciaram-se na China no século 2 e 3 e, posteriormente, apenas na Inglaterra que se transformou no futebol moderno, com as regras que se entende na atualidade. Tais informações estão disponíveis aqui.
2 A presente autoria esclarece que a utilização dos termos "feminino" e "mulher" é compreendida como um conceito abrangente que engloba mulheres cisgêneras e transgêneras. No entanto, é importante ressaltar que, no contexto deste ensaio em particular, o foco recai sobre a mulher cisgênera, considerando-se o histórico, o aspecto cultural e o contexto social que foram delineados e analisados. Reconhecemos a necessidade de uma nova publicação que aborde especificamente a experiência das mulheres trans no esporte.
3 Em um comparativo simples, observando os proventos do maior salário do futebol feminino (Carli Lloyd) e do futebol masculino (Cristiano Ronaldo), percebe-se que existe uma diferença de 202 vezes menos que a jogadora feminina recebe do masculino. Tal informação está disponível aqui.