Cumprem-se hoje os 49 anos da "Revolução dos Cravos", ocorrida a 25 de Abril de 1974, em Portugal. Numa rúbrica dedicada ao Direito e à Mulher, impõe-se relembrar o estatuto jurídico da Mulher portuguesa anterior "à madrugada que eu esperava"1 e as transformações que daí advieram.
Em 1910, a monarquia foi substituída por um regime liberal-republicano. Tendo a República sido proclamada a 5 de outubro, logo a 4 de novembro, o Governo Provisório da República Portuguesa veio regulamentar a dissolução do casamento, a qual podia operar por morte ou divórcio. Entre as causas legítimas para o pedido de divórcio estava o adultério, tanto da mulher, como do marido. Era evidente, do ponto de vista jurídico-formal, um parâmetro de igualdade entre cônjuges, o que, à época, não era despiciendo.
Menos de 16 anos depois, a 28 de maio de 1926, um golpe militar derrubou o regime liberal-republicano e instalou uma ditadura militar. António de Oliveira Salazar, assumindo inicialmente funções como Ministro das Finanças e, em 1932, o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, solidificou o autoritarismo do regime que viria a ser conhecido como "Estado Novo".
Em 1933, entrou em vigor a nova Constituição. Esta Constituição consagrava, a título de Garantia Fundamental, um princípio formal de igualdade correspondente à "igualdade dos cidadãos perante a lei" (artigo 5.º), onde se incluía "a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social" (artigo 5.º, § único). No entanto, logo de seguida, continuava o mesmo artigo: "salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família". A mulher (casada) via, assim, pelo "bem da família", os seus direitos fundamentais particularmente restringidos, situação da qual dificilmente saía, visto que o casamento católico era indissolúvel por divórcio, num país onde a esmagadora maioria dos casamentos era regida, justamente, pela lei canónica.
Na ótica do "Estado Novo", as mulheres casadas deviam estar ocupadas com o seu lar, o que as afastaria, à partida, de um desempenho profissional adequado. Fruto desta convicção, as mulheres que quisessem trabalhar estavam sujeitas a inúmeros impedimentos matrimoniais.
Eram várias as normas que diferenciavam, discriminando, a situação da mulher.
Na lei civil, o "poder marital" impunha, essencialmente, a submissão da mulher casada ao "chefe de família". Onde hoje a lei refere a "residência da família", indicava à época a "residência da mulher", sendo que esta devia "adotar a residência do marido". O "governo doméstico" era atribuído à mulher e, regra geral, reservava-se ao homem a administração dos bens do casal, aí inclusos os bens próprios da mulher. As idades relevantes para efeitos de impedimentos matrimoniais dirimentes absolutos eram diferentes entre indivíduos do sexo masculino (idade inferior a 16 anos) e do sexo feminino (idade inferior a 14 anos). O desconhecimento da "falta de virgindade da mulher ao tempo do casamento" era qualificado como um erro que viciava a vontade do homem na celebração o casamento, assim se permitindo a anulação do mesmo. Estava prevista a possibilidade de o marido requerer que a mulher lhe fosse judicialmente entregue, como se de uma coisa se tratasse. Quanto aos filhos, o poder paternal na constância do casamento pertencia quase em exclusividade ao pai.
Em sede de direitos políticos, o direito de voto era, genericamente, vedado às mulheres casadas, solteiras economicamente dependentes ou às "sem reconhecida idoneidade moral".
No campo penal, a mulher surgia como vítima exclusiva nos crimes sexuais, que ao tempo se tinham como atentando não à liberdade sexual da mulher, mas à sua honestidade. Nesta lógica, o violador que casasse com a vítima, assim permanecendo, pelo menos, por cinco anos, não teria de cumprir qualquer pena. Outra previsão de conteúdo fortemente atentatório dos direitos humanos das mulheres era a que cominava uma pena de desterro para fora da comarca durante seis meses para o marido que "acha[sse] a sua mulher em adultério" e, nesse momento, a matasse.
A carência económica em que vivia a grande maioria da população portuguesa, a privação das liberdades individuais, a constante ameaça repressiva representada pela polícia política e o persistente envio de jovens para a morte ou estropiamento na guerra colonial iniciada em 1961, entre outros fatores, levaram centenas de milhares de pessoas a emigrar.
A heroica luta popular antifascista – empreendida por operários, estudantes e intelectuais, nomeadamente –, durante todo o período da ditadura, fez-se à custa da segurança destas pessoas e da das suas famílias, sendo várias as que estiveram presas, foram torturadas e até mortas. Outras tinham de viver (continuando a resistir) na clandestinidade. O aumento do descontentamento da generalidade da população portuguesa, extremado pela guerra colonial, tornou a revolução inevitável.
O Movimento das Forças Armadas, sob o lema "Democratizar, desenvolver e descolonizar", dotou aquela luta da força fundamental para derrubar o regime. E assim, um levantamento militar, com a colaboração de regimentos de todo o país, deu início ao 25 de abril. A população, apesar de alertada no sentido de, para sua segurança, ficar em casa, apresentou-se massivamente nas ruas de todo o país, fazendo do que poderia ter sido um mero golpe militar uma verdadeira revolução popular.
Após um período de forte agitação política e social, em 1976, foi adotada a atual Constituição, que consagra, no seu artigo 13.º, um pleno princípio da igualdade.
Pese embora a transformação libertadora que tem vindo a ocorrer desde então, e o processo evolutivo das últimas décadas, a paridade lenta, parcial e legalmente consagrada não atingiu ainda a vida prática de todas as mulheres em Portugal. As ideias quanto ao papel social e aos deveres da mulher impostas durante a ditadura continuam presentes na mentalidade nacional e a refletir-se, nomeadamente, em decisões dos tribunais portugueses que apontam o adultério (real ou conjeturado) por parte das mulheres vítimas de maus-tratos como fatores atenuantes da gravidade dos crimes cometidos por homens acusados de violência doméstica. Em termos estatísticos, o crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo (do qual as mulheres são, ante percentagens irrefutáveis, as principais vítimas) é o que apresenta o maior número de denúncias de entre toda a criminalidade participada em Portugal.
Assim, só podemos concluir que, se muito foi feito em prol da consagração dos direitos das mulheres – e da sua garantia quotidiana –, outro tanto há ainda a fazer. Quase meio século passado, as marcas da desigualdade remanescem.
Terminamos, por isso, com certeza de que "a luta continua!" e comemorando: 25 de Abril, sempre!
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1 Breyner, Sophia de Mello, “25 de Abril”, O Nome das Coisas, Porto, Assírio e Alvim, 2015, p. 53.