Março tem sido o mês de maior visibilidade para as questões entendidas como "das mulheres" há bastante tempo. Historicamente, cita-se a marcha das trabalhadoras da indústria têxtil em Nova York, (que alguns dizem ter ocorrido em 1857 e outros em 1908), as manifestações durante a primeira guerra mundial pelo dia mundial das mulheres, e, também, a greve por paz, realizada pelas mulheres russas em 1917.
Contudo, foi apenas em 1977, que a Assembleia Geral das Nações Unidas oficializou o 8 de março como o dia das Nações Unidas para os Direitos da Mulher e a Paz Internacional, transformando o terceiro mês do ano em uma referência mundial para os debates sobre a efetivação dos direitos das mulheres pelos Estados e pelas instituições.
Mulheres brasileiras, desde o final do século XIX, participam ativamente dos encontros e debates sobre direitos das mulheres. Na década de 1920, mais de 10 anos antes das mulheres terem o direito de votar, Julita Monteira Soares fundou o Partido Liberal Feminino.
O Direito brasileiro sempre foi ambíguo em relação a quais direitos as mulheres teriam. Se, por um lado, ainda no império, D. Pedro I determinou que o Estado oferecesse educação pública a meninos e meninas, se Getúlio Vargas, em 1932 garantiu o direito das mulheres ao voto, e, em 1943, proibiu o pagamento de salários diferentes entre homens e mulheres e licença-maternidade de 90 dias, por outro, até 1962 as mulheres precisavam da autorização dos maridos para trabalhar à noite, para viajar ao exterior e até 1974 não podiam ter cartão de crédito em seu nome. Apenas em 2002, a falta de virgindade deixou de ser crime e até 2009 estupro era considerado um crime contra os costumes.
Todavia, foi no processo de redemocratização, durante a assembleia nacional constituinte, que o embate sobre os direitos e deveres das mulheres e as desigualdades jurídicas e fáticas ganharam espaço no ambiente público, e o Estado, algumas vezes mais, algumas vezes menos, se viu obrigado a colocar na pauta a reivindicação das mulheres por igualdade de oportunidade, pelo fim da violência de gênero, por serviços públicos especializados, entre tantas outras desigualdades estruturais que a sociedade brasileira impõe às mulheres.
Desde lá, as mulheres brasileiras conquistaram, lentamente, a positivação de direitos e a oficialização de compromissos estatais de políticas públicas por igualdade de gênero. A Lei Maria Penha, que transformou a compreensão do Brasil sobre violência doméstica, é um ícone desses avanços, sendo, inclusive, a lei mais famosa do país, segundo o Data Senado.
Há outros avanços legais também importantes de serem apontados, como a lei de cotas eleitorais, que se propõe a aumentar o número de mulheres nos parlamentos; a lei do feminicídio, que inseriu mais uma qualificadora ao crime de homicídio quando comprovada a conduta de assassinar mulheres por serem mulheres; bem como a tipificação do crime de importunação sexual.
Desde a redemocratização, o Brasil assinou, praticamente, todas as convenções internacionais que versam sobre direitos das mulheres, implementou órgãos de governo para tratar da desigualdade de gênero na esfera federal, estadual e municipal, e elegeu, duas vezes, uma mulher presidente da República.
Para um extraterrestre, que decodificasse esse artigo até aqui, o pensamento óbvio seria que a situação das mulheres brasileiras, neste mês de março de 2023, é paritária a dos homens e que o Estado e a sociedade garantem os mecanismos para que não sofram por serem mulheres.
Entretanto as notícias desse mês mostram o quão errado estaria o alienígena.
Iniciamos o mês do Dia Internacional da Mulher estupefadas com o feminicídio da vereadora cearense, Yanny Brena, aos 27 anos. Jovem médica de Juazeiro do Norte, Yanny tinha os direitos das mulheres em suas pautas políticas. O caso lançou luz em tema antigo e que parece ser um desafio para boa parte dos países ocidentais: a violência doméstica contra a mulher, inclusive, em sua expressão fatal, o feminicídio, cuja sanha alcança a todas.O inquérito finalizado no dia 23 de março confirma que Yanny Brena foi assassinada pelo namorado que, em seguida, cometeu suicídio.
Ainda sob o guarda chuva da violência, que é multifacetada e assume contornos diferentes a cada caso, acompanhamos a enxurradas de notícias vindas da edição atual de um reality show, Big Brother, em que dois competidores foram expulsos após importunar outra competidora, com toques libidinosos, praticados contra a sua vontade. Espanta a resistência de se compreender determinadas atitudes como ilícitas, sob a justificativa de que são comumente praticadas. Frases como "mas isso acontece a todo momento", "ela deu cabimento e agora está reclamando", "se tivesse se dado ao respeito não estaria passando por isso", "dá corda para o cara e depois se faz de vítima", evidenciam que a inviolabilidade do corpo da mulher, diferente da inviolabilidade do corpo do homem, é premissa ainda não introjetada na sociedade brasileira.
Esse caso também traz à tona o debate sobre a culpabilização da vítima. A direção do programa reuniu agredida, agressores e testemunhas do ato em um mesmo ambiente para informar que iria expulsar os agressores, expondo a vítima a mais uma enxurrada de emoções e reforçando a ideia de que os mesmos estavam sendo punidos por culpa dela. Esse modelo alimenta o discurso de que ela estava exagerando, de que não foi bem assim, e coloca milhões de telespectadores para "avaliar a conduta" e se sentirem no direito de publicizar julgamentos sobre o que ocorreu, ratificando uma compreensão de que porque aconteceu ou acontece de maneira corriqueira não está errado. É a normalização, pelo consenso social, de algo patológico, ruim, mau e isso tem até nome próprio: normose.
O programa perdeu a oportunidade de divulgar massivamente um padrão adequado de tratamento para mulheres vítimas de violência ao mesmo tempo que focou sua atuação apenas na punição dos agressores, com sua expulsão. Sabemos que há métricas específicas em programas dessa espécie, o que lhes garante audiência e lucratividade, porém, quando confrontados com a situação de prática flagrante de um crime não é razoável que não se ocupem de esclarecer pormenorizadamente a situação com os demais participantes, uma vez que as bebidas alcoólicas, as festas, as visitas surpresa seguirão ocorrendo, sem que o episódio tenha servido de reflexão e amadurecimento de todos e fortalecimento das mulheres que continuam confinadas.
As mais variadas manifestações de violência contra as mulheres parecem, de fato, um desafio intransponível para o Estado brasileiro, e a punição (sim, necessária) desconectada de outras medidas, além de nao resolver o problema, porque não auxilia na prevenção de casos semelhantes no futuro, reforça a ideia de que a punição é o mais importante, o que é um grande equívoco. O que se quer e se espera é que os episódios, ainda tão recorrentes, de violência contra as mulheres sejam reduzidos e que em um espaco curto de tempo tenhamos uma redução em todos os índices de violência contra as mulheres.
No corrente mês, nos deparamos, também, com o episódio da estudante universitária do curso de Biomedicina de Bauru, interior de São Paulo, de 44 anos, que foi ridicularizada por outras três mulheres, 20 anos mais jovens, por estar estudando. O caso ganhou repercussão nacional e confirmou que para as mulheres até os bancos universitários têm prazo de validade. O etarismo, que impacta a todas as pessoas em alguma medida, é implacável com as mulheres, especialmente, com as que ousam se insurgir contra parâmetros estabelecidos sob a égide da opressão, que se legitimaram ao longo dos últimos 100 anos no consciente coletivo.
Reflitamos, ainda, sobre o caso do uso da linguagem neutra por uma professora de um renomado colégio da capital paulista. Em sua aula para alunos e alunas do 6° ano, a docente apresentou um vídeo do canal do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, da Universidade de São Paulo - USP, que utiliza linguagem neutra. Alguns pais bombardearam as mídias sociais e os canais de reclamação, a ponto do colégio emitir uma nota de desculpas, alegando que lamentava a escolha da docente, a qual não corresponde ao padrão de linguagem adotado pela instituição, deixando a professora sozinha no esforço de construir discussões sobre diversidade, inclusão e reconhecimento.
Como nem só de desesperança pode viver o alienígena, falemos que neste mês de março, entrou em vigor a lei 14.443, de 2022, após uma vacatio legis de 180 dias. A lei reduziu a idade para a realização de laqueadura e retirou a obrigatoriedade de consentimento do cônjuge para a realização do procedimento. A lei prevê agora uma idade mínima de 21 anos, e não mais 25 anos, para realização de esterilização voluntária (laqueadura ou vasectomia). O limite mínimo de idade não é necessário caso a pessoa interessada em realizar o procedimento tenha dois ou mais filhos vivos. Uma terceira mudança trazida pela lei é a possibilidade de realização da laqueadura concomitante ao parto cesáreo, o que era vedado expressamente antes da alteração. É importante dizermos que a reprodução humana deveria ser de interesse de todos os indivíduos, uma vez que passa pela condição de pessoa humana; ocorre que a maternidade e a paternidade (e também a escolha pela não maternidade ou paternidade) são compreendidas e vivenciadas na sociedade de forma desigual, e não diferente como alguns insistem em dizer, atribuindo à mulher quase que responsabilidade exclusiva pelas atividades de cuidado. Eis o motivo de a mudança da legislação sobre o planejamento familiar estar despertando maior interesse entre as mulheres, pois afeta direta e fortemente suas vidas.
É em meio a tantas situações complexas que estamos encerrando mais um mês de março, com a certeza de que precisamos seguir resistindo às tentativas de retrocessos (em respeito, proteção e promoção de direitos) e propondo novos caminhos que busquem a igualdade material entre homens e mulheres. A estrutura do Direito e da sociedade foi construída por, para e com os homens, as mulheres foram conseguindo acessar direitos a partir de uma árdua luta e um constante estica e puxa.
O atual governo Federal reforçou, no último 8 de março, o discurso e o compromisso com a promoção da igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, em um conjunto de ações que vão desde datas comemorativas até o lançamento de editais para fomento de ações de geração de trabalho, renda e participação social das mulheres. Vale destacar, ainda, o envio ao Congresso de um projeto de lei que explicita a urgência de se estabelecer salário igual para homens e mulheres que exercem a mesma função.
O que defendemos é usarmos esse marco de convergência para consolidar e impulsionar as ações oficiais, institucionais e particulares capazes de fissurar a estrutura desigual sobre a qual forjamos nossa sociedade, o que nos autorizaria a seguirmos para um segundo momento de mudança social: a certeza de que nascer mulher não nos coloca, no a priori, numa condição de vulnerabilidade.
A partir deste mês, quinzenalmente, iremos tratar aqui, nessa coluna, sobre as mais variadas questões do universo jurídico e como essas questões são vivenciadas pelas mulheres. Desejamos, com um otimismo realista, que em 8 de março de 2024 tenhamos notícias melhores sobre como os direitos das mulheres estão sendo respeitados e garantidos.