Direito e Bioética

Interdição cautelar médica: pena ou prevenção?

Interdição cautelar médica: pena ou prevenção?

27/7/2020

Texto de autoria de Igor de Lucena Mascarenhas, Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa e Eduardo Dantas

O ato médico pode ser julgado eticamente pelo Conselho Regional de Medicina e o médico poderá, ao final do processo ético profissional, obter os seguintes resultados*:

a. Absolvição

b. Advertência confidencial em aviso reservado;

c. Censura confidencial em aviso reservado;

d. Censura pública em publicação oficial;

e. Suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) dias;

f. Cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal.

Acontece que, na atual conjuntura, o Conselho Regional de Medicina e o Conselho Federal de Medicina têm inaugurado uma nova pena, qual seja: interdição cautelar médica.

A medida, baseada estritamente em fundamento infralegal, diferentemente das penas do Conselho é objeto de discussão, pois não teria um respaldo legal direto, mas restaria, tão somente, fundada no poder de polícia dos Conselhos. Ademais, conforme defende Edmilson Barros Júnior, medidas cautelares seriam típicas do Poder Judiciário, não cabendo aos órgãos autárquicos a adoção de tais medidas1.

Sobre a natureza cautelar da medida, acredito que não haja grandes divergências, todavia, tendo a discordar da impossibilidade de medidas cautelares no âmbito administrativo, uma vez que o próprio sistema de Medicina utiliza medidas cautelares como as interdições éticas do trabalho médico (IEM). A IEM representa a "proibição, pelo respectivo Conselho Regional de Medicina, de o profissional exercer seu trabalho em estabelecimentos de assistência médica e hospitalização por falta de condições mínimas para a segurança do ato médico"2. Nesse sentido, o próprio Judiciário já referendou a possibilidade de tal medida, o que, a princípio, analogamente, alcançaria a interdição cautelar.

Em verdade, medidas cautelares não possuem natureza punitiva, na medida em que visam evitar novos danos de natureza irreparável ou de difícil reparação ao paciente, à população e ao prestígio e bom conceito da profissão, caso ele continue a exercer a Medicina.

Ocorre que, na contemporaneidade, a interdição cautelar tem sido utilizada como uma antecipação da pena em grau mais gravoso que a suspensão profissional trazida na alínea "d" do art. 22 da lei 3268. E pior: sem a possibilidade de rediscussão no Judiciário, na medida em que se trata de mérito administrativo.

Enquanto o enfermeiro pode ser suspenso por até 90 dias, nos termos da Resolução COFEN nº 564/2017, e o advogado, por exemplo, pode ser suspenso por um período de até 12 meses, nos termos da lei 8.906/94, a penalidade de suspensão por até 30 dias aplicável ao médico3, por vezes, se mostra inadequada para o caso concreto.

Não há um meio termo condenatório, ou seja, caso se entenda que o quadro analisado é grave, ou se condena com uma suspensão de 30 dias ou se cassa o profissional ad eternum e sem possibilidade de reabilitação profissional4.

Diante dessa disparidade condenatória, o CFM/CRMs têm utilizado a interdição cautelar como mecanismo condenatório antecipado e agravador da pena de suspensão tradicional, na medida em que pode perdurar por 06 meses, prorrogáveis por igual período, nos termos do art. 31 do Código de Processo Ético Profissional. Ou seja, é uma medida que pode perdurar por até 01 ano.

No curso da Covid-19, inúmeros foram as hipóteses de publicidade abusiva, enganosa e de atos de desinformação, notadamente em redes sociais, em que diminuem os efeitos da pandemia ou defendem soros de imunidade / medicamentos / plantas sem eficácia comprovada5.

Tais atos devem ser severamente investigados e punidos, porém o que deve ser questionado é a pretensa extensão do dano a justificar uma interdição ética cautelar.

Por vezes, a interdição cautelar poderia servir para evitar novos danos concretos, a exemplo do ocorrido com Denis César Barros Furtado, conhecido como Dr. Bumbum, que havia sido cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás, porém, considerando que a decisão precisaria ser referendada pelo Conselho Federal de Medicina, continuou atuando e gerou prejuízos irreversíveis para Lilian Calixto, que faleceu após a intervenção do médico.

Atualmente, conforme dados públicos extraídos do sítio institucional do CFM, o Brasil possui 15 (quinze) médicos interditados cautelarmente de forma integral e 07 (sete) médicos interditados parcialmente por decisão ética6.

Todos esses profissionais, de fato, devem estar impedidos de exercer a profissão em sua plenitude?

Edmilson Barros Júnior aponta para a subjetividade das penas éticas no âmbito do CFM, na medida em que não há uma correlação prévia entre os artigos e as possíveis penas. Desta forma, pode ser considerada hipótese de interdição a potencial violação a qualquer um dos artigos 117 (cento e dezessete) presentes no Código de Ética Médica7. Tal medida para além de uma loteria decisional, importa em flagrante violação à ampla defesa e contraditório, posto que não há base concreta objetiva para aferir se a decisão é adequada ou não8.

A falta de uma hierarquia formal entre os artigos existentes no CEM não importa na ausência de uma hierarquia axiológica9, na medida em que algumas infrações não admitem TAC ou Conciliação, o que denota uma maior preocupação para com a violação dos referidos tipos éticos.

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que a suspensão do exercício profissional oriunda de processo judicial pode ter natureza cautelar, a depender do caso concreto, a exemplo de um médico acusado de fraude e que teria causado prejuízos à operadora de plano de saúde na ordem de R$ 3,3 milhões apenas no ano de 201710.

Todavia, prejuízos financeiros ou reprovabilidade de determinados casos, por si só, não podem gerar um juízo punitivo prévio. Diversos são os exemplos em que o profissional é interditado cautelarmente e, ao final do processo, sua condenação formal não passa de uma censura pública.

O critério da medida cautelar deve ser o de se evitar novos danos, notadamente em razão da gravidade e extensão que o exercício médico pode causar. O desvio das causas reais da interdição cautelar gera um questionamento acerca da real adequação das penas de interdição cautelar, sobretudo por eventual disparidade entre a pena formal e a pena material ao final do processo ético profissional.

É importante, neste ponto, destacar que não há sequer pena concreta, ainda que não transitada em julgado, a ser antecipada, a despeito do que se observa, por exemplo, na execução antecipada de penas privativas de liberdade, por exemplo. A interdição ética é pautada em um regime de extraordinariedade, mas que, infelizmente, tem se mostrado mais recorrente do se exige e em um cenário que se apresenta desnecessário.

Diante desse quadro apresentado, tendemos a considerar os seguintes aspectos:

  1. A pena de interdição cautelar deve ser usada, com o perdão do trocadilho, com muita cautela e parcimônia.
  2. As penas médicas necessitam, com urgência, de uma atualização e readequação com o objetivo de não cassar profissionais que deveriam ser apenas suspensos por um período mais longo, seja para adequar a medida cautelar de suspensão a casos extremamente necessários e relevantes e com respaldo legal e não apenas infralegal.
  3. A interdição cautelar não pode se convolar em uma execução antecipada de pena inexistente, sob pena de afronta ao princípio do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.

*Inicialmente gostaríamos de agradecer ao dr. Gustavo Whitehurst, advogado e servidor do CRM-PB, pela revisão crítica do texto.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado com ênfase em Direito Médico. Doutorando em Direito pela UFPR e doutorando em Direito pela UFBA. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do Centro Universitário. Associado ao IBERC, IBDCivil, ABDE e IDCC.

Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa é doutora e mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB, com realização de estágio doutoral no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da UFPB. Associada ao IBERC. Presidente do IDCC.

Eduardo Dantas é advogado, inscrito nas Ordens do Brasil e de Portugal; doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Médico pela University of Glasgow. Bacharel em Direito pela UFPE. Presidente da Associação Pernambucana de Direito Médico e da Saúde. Ex-Presidente da Comissão de Direito e Saúde da OAB/PE. Vice-presidente da Asociación Latinoamericana de Derecho Médico. Membro fundador e integrante da Comissão Diretiva da ALDIS – Associação Lusófona de Direito da Saúde. Ex Vice-Presidente e membro do Board of Governors da World Association for Medical Law. Membro da Comissão Especial de Direito Médico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Gestões 2013/2015 e 2016/2018). Coordenador pedagógico da Association de Recherche et de Formation en Droit Médical (Toulouse, França). Membro do International Advisory Board do Observatório de Direitos Humanos: Bioética, Saúde e Ambiente, da Universidade de Salerno (Itália). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC).

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1 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Código de Ética: Comentado e Interpretado. Timburi: Editora Cia do Ebook, 2019. p. 762-763

2 CFM. Resolução CFM nº 2062/2013. Disponível aqui. Acesso em 1º de jun. 2020.

3 Importante destacar que a pena de suspensão de até 30 dias não é uma exclusividade médica, pois a pena ética de suspensão na Odontologia é, também, de até 30 dias, nos termos da lei 4.324/64.

4 Sobre o tema de inconstitucionalidade da pena de cassação perpétua, sugerimos a leitura de DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

5 G1 RIBEIRÃO PRETO E FRANCA. Conselho de Medicina suspende exercício profissional de médica que associou soro de imunidade ao coronavírus. Disponível aqui. Acesso em 20 de julho de 2020, G1 TOCANTINS. Médico tem atuação interditada por conselho após afirmar que planta do cerrado pode prevenir coronavírus. Disponível aqui. Acesso em 20 jul. 2020, CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Cremeb aprova interdição cautelar do Dr. Aldo Araujo Grisi. Disponível aqui. Acesso em 20 jul. 2020 e FANTÁSTICO. Golpistas se aproveitam do medo da população em meio à pandemia de coronavírus. Disponível aqui. Acesso em 14 jul. 2020.

6 Para além das referidas limitações, o CFM apresenta ainda 07 (sete) médicos com o registro suspenso parcialmente suspenso pelo Judiciário e 14 (catorze) registros suspensos integralmente.

7 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Código de Ética: Comentado e Interpretado. Timburi: Editora Cia do Ebook, 2019. p. 758

8 Conforme sugestão formulada pelo Dr. Gustavo Whitehurst, será que não seria adequado utilizar a interdição cautelar ética para aquelas hipóteses em que não se admite TAC e Conciliação, quais sejam: lesão corporal de natureza grave (art. 129, §§ 1º a 3º do Código Penal), assédio sexual ou óbito do paciente?

9 Sobre a ausência de uma hierarquia formal entre as normas constitucionais, mas a existência de uma hierarquia axiológica e topográfica de determinadas normas, Cf. DIAS, Roberto. O direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. p. 47

10 MINISTROS negam pedido para suspensão parcial do exercício da medicina. STJ. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2019.

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Coordenação

Luciana Dadalto é doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Consultora jurídica e advogada na Luciana Dadalto Sociedade de Advogados. Administradora do portal www.testamentovital.com.br.