No Brasil inexistia clareza quanto à configuração de uma política pública1 de Integridade específica2 até a publicação do Decreto n. 10756, de 27 de julho de 2021, que instituiu o Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal – SIPEF. De fato, coexistiam (e ainda coexistem) inúmeras iniciativas esparsas, leis e normas infralegais sobre o assunto, bem como a institucionalização autônoma de sistemas e/ou programas de integridade pelas diversas instituições públicas federais sem que se apresentasse a sistematicidade necessária quanto aos objetivos e fundamentos que direcionam o agir do governo e o atuar da administração pública.
Igualmente não se identificava uma correlação clara entre medidas de prevenção à prática de irregularidades e o incremento do patamar civilizatório relacionado a raça e gênero no âmbito público. Esse é o ponto que pretendemos abordar: como as políticas de integridade podem (e devem) qualificar a discussão sobre equidade de gênero e raça no setor público federal, promovendo um ambiente mais inclusivo, equânime e igualitário.
No primeiro momento, apresentaremos os principais aspectos da política pública de integridade do poder executivo federal, ainda (in)sensível a questões de gênero e raça. Para então a propormos ideias voltadas ao desenvolvimento da agenda e à formulação de uma política pública que possa garantir a inclusão das questões de equidade de gênero e raça na agenda de integridade pública.
A busca pelo aperfeiçoamento da integridade nos espaços públicos nasceu como estratégia contra a corrupção, sustentada e definida pela OCDE como um “dos principais pilares das estruturas políticas, econômicas e sociais" (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2017), mas ganhou amplitude com o passar dos anos. O próprio Conselho da OCDE sobre Integridade Pública defende o deslocamento do foco das políticas de integridade ad hoc para uma abordagem dependente do contexto, comportamental e baseada em risco, com ênfase em cultivar uma cultura de integridade em toda a sociedade.
Um sistema de integridade adequado abrangeria assim uma gestão de alto nível, responsabilidades bem definidas, utilização de dados e indicadores para avaliação com base em riscos e clareza na definição e comunicação de regras e valores que devem se refletir nas normas e políticas organizacionais. E, neste contexto, claramente deveríamos encontrar valores e indicadores relacionados à raça e gênero, afinal não há como imaginarmos integridade sem um status social de igualdade entre os seres humanos. De outra via, qualquer conduta discriminatória deve ser qualificada como irregularidade administrativa ou conduta ante ética.
Conceituando-se integridade como o “alinhamento consistente e à adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público” (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) 2017), a OCDE plantou a semente que hoje nos permite discutir a utilização dos instrumentos de integridade para promover uma maior igualdade de gênero e de raça no âmbito das instituições públicas.
Pensar na integridade pública com “foco na mudança de comportamentos pode ser um grande desafio, mas é necessário. Só assim podemos avaliar o que está sendo feito para além do cumprimento dos requisitos mínimos da legislação” (Carlos Mauro… [et al.] 2021). Entretanto, esse caminho ainda está para ser construído, uma vez que atual política pública de integridade do Poder Executivo Federal, consubstanciada no Decreto n. 11.529, de 17 de maio de 2023, que se propõe a “estabelecer padrões para as práticas e as medidas de integridade” sequer menciona a equidade de gênero e raça dentre suas metas e indicadores. Não há sequer previsão da discriminação racial e de gênero como risco à integridade pública.
Importante destacar que a integridade era, até o surgimento do SIPEF (política pública anterior), normativamente reconhecida como o princípio da governança pública e uma das condições mínimas a serem exigidas dos líderes públicos pelo Decreto n. 9203, de 22 de novembro de 2017. Esse mesmo normativo determina, ainda, que os órgãos e as entidades da administração direta, autárquica e fundacional devem instituir programa de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção, estruturado nos seguintes eixos: comprometimento e apoio da alta administração; existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade; análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.
Vê-se que antes também não havia interrelação entre programas de integridade e o combate à discriminação de gênero e raça, pelo menos, não de forma direta. Inobstante, esse instrumento ter sido conceituado, pela própria legislação, como “conjunto estruturado de medidas institucionais para prevenção, detecção, punição e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades e de outros desvios éticos e de conduta”3 e, em que pese, casos de discriminação e assédio já eram penalizados pela própria Administração Pública Federal.
O SIPEF, enquanto uma política pública de integridade do Poder Executivo Federal, foi instituído com o objetivo de coordenar e articular as atividades relativas à integridade e estabelecer padrões para as práticas e medidas a ela relacionadas. Sob a coordenação da Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção da Controladoria-Geral da União, as unidades responsáveis pela gestão da integridade passaram a implementar a integridade na prática.
Atualmente substituído pelo SITAI - Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal, regulamentado pelo Decreto n. 11.529, de 16 de maio de 2013), que avançou ainda mais no que se refere a possibilidade de tratar questões voltadas à promoção de maior equidade racial e de gênero no setor público.
A nova política pública de integridade do Poder Executivo Federal amplia o programa de integridade para entendê-lo como o “conjunto de princípios, normas, procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades, ilícitos e outros desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional”4. Com mais propriedade agora, podemos imaginar a inserção de indicadores e metas relacionados à igualdade de gênero e racial em seu contexto. Porém ainda não vislumbramos, de maneira clara, como isso será estabelecido de maneira prática.
Cabe à Controladoria-Geral da União, enquanto órgão central do SITAI5, detalhar essa norma programática e estabelecer uma agenda efetiva que concretize a relação entre a política pública de integridade federal no Brasil e o incremento do patamar civilizatório relacionado a raça e gênero. Aguardamos por isso ansiosamente...
Referências
Carlos Mauro… [et al.] (2021): Muitos - Como as Ciências Comportamentais podem tornar os programas de Compliance Anticorrupção mais efetivos. 1 ed.: Editora Brasileira de Arte e Cultura.
(17/07/2023): D10756. On-line Disponível aqui, Última verificação em 07/10/2023.
(17/05/2023): D11529. On-line Disponível aqui, Última verificação em 07/10/2023.
Manual de Integridade Pública da OCDE | OECD iLibrary (2023). On-line Disponível aqui, Última atualização em 07/10/2023, Última verificação em 07/10/2023.
Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) (2017): Recomendação do Conselho da OCDE sobre Integridade Pública. On-line Disponível aqui.
Silva, Vládia Pompeu (2022): Políticas públicas. Conformação e efetivação de direitos. Indaiatuba (SP): Foco.
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1 Adotamos o conceito de políticas públicas, construído por nós, a partir da teoria de Joaquin Herrera Flores, como o “processo que direciona o agir do governo e atuação da administração pública, estruturada pelo direito e conformada a partir do inter-relacionamento entre Estado e sociedade, com a finalidade de concretizar a dignidade humana a todos os cidadãos Silva 2022, pág. 33
2 Segundo a OCDE, alguns países optam por uma única estratégia nacional de
integridade ou anticorrupção, embora isso não seja indispensável. Independentemente da forma, uma abordagem estratégica para a integridade pública deve conter todos os seguintes elementos: análise de problemas (identificação, análise e mitigação de riscos) desenho da estratégia (priorização de objetivos, consulta e coordenação políticas); desenvolvimento de indicadores com linhas de base, marcos e metas; elaboração do plano de ação, distribuição de responsabilidades e cálculo dos custos das atividades; implementação, monitoramento, avaliação e comunicação dos resultados do monitoramento e da avaliação, incluindo avaliação prévia à implementação. Manual de Integridade Pública da OCDE | OECD iLibrary 2023, pág. 44
3 Artigo 2°, do Decreto n. 10756, de 27 de julho de 2021.
4 Artigo 3°, inciso, II.
5 Artigo 5°, inciso I, do Decreto n° 11.529, de 2023.