Direito&Administrativo

O fato ou a norma? As permissões de serviços públicos firmadas antes da Constituição de 1988, uma discussão sobre segurança jurídica

Este ensaio pretende fazer algumas reflexões acerca da situação das permissões de serviços públicos firmadas em época anterior à CF/88, tendo como pano de fundo a PEC 142/2015.

6/6/2023

Em 1988, quando a Constituição da República Federativa Brasileira foi promulgada, muitos serviços públicos estavam sendo prestados pela iniciativa privada sob a formatação de termo de credenciamento ou ato de permissão, os quais se submeteriam imediatamente à aplicabilidade da obrigação de licitar, tão logo se expirasse o prazo de vigência. Isso porque, naquela ocasião, instaurou-se uma nova normatividade para a execução indireta de serviços públicos e com ela, uma exigência bastante relevante: a realização de licitação prévia.

Nessa linha, este ensaio pretende fazer algumas reflexões acerca da situação das permissões de serviços públicos firmadas em época anterior à Constituição Federal de 1988, tendo como pano de fundo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 142/2015, de autoria do Deputado Fausto Pinatto, aprovada na Câmara dos Deputados e enviada para apreciação do Senado Federal1, considerando a clássica distinção doutrinária havida entre concessão e permissão e suas implicações.

Muito embora o legislador constituinte tenha disciplinado juntamente os institutos da concessão e da permissão por meio do art. 175 da CF/882, antes do advento da Constituição, as distinções fáticas dos institutos instauraram reflexos práticos importantes.

De fato, a Carta de 1998 não contemplou a situação dos credenciados e permissionários de serviços públicos que tinham seus instrumentos vigorando por prazo indeterminado à época de sua promulgação, o que deu azo a um ambiente de insegurança jurídica. A inexistência de norma de transição que contemplasse a situação dos permissionários que, em muitos casos, tinham procedido a vultuosos investimentos para o desenvolvimento dos serviços objetos da permissão nos trouxe até aqui.

Muito embora o Poder Legislativo tenha conferido tratamento legal especial às concessões públicas nos anos posteriores à promulgação da Carta Constitucional, principalmente por intermédio do diploma regulador das concessões e permissões – Lei 8987, de 1995, tal proceder não se refletiu em segurança jurídica igualmente às permissões, que se viram desprovidas de regras claras de transição, mormente aquelas cujos instrumentos continham prazo indeterminado.

Em resposta, a PEC 142/2015, já aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados se encontra atualmente em tramitação no Senado Federal, tem o objetivo de incluir o art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) sugerindo que “Os termos de credenciamento ou permissão de serviços públicos disciplinados por lei específica que à época da promulgação da Constituição Federal estavam vigorando por prazo indeterminado poderão ter prazo e condições fixados em contrato, independentemente de licitação, assegurando-se-lhes renovação por igual período, findo o qual o serviço deverá ser licitado”.

Lembremo-nos que expressamente consideram-se válidas, pelo prazo fixado no contrato, as concessões outorgadas anteriormente à entrada em vigor da lei 8987, de 1995  (art. 42, caput). Logo, há regra legal específica para as concessões, mas não para aas permissões.

Na mesma linha, os parágrafos 2º e 3º do art. 42 da Lei 8987, de 1995 determinaram a realização de diversas providências no sentido de proceder ao levantamento de elementos da concessão que possibilitasse aferir a existência ou não de direito de indenização por partes dos concessionários cujos investimentos não tivessem sido amortizados, com o fim de validar as “concessões em carater precário” firmadas antes da entrada em vigor da norma. Tal tratamento, entretanto, não se estendeu às permissões de serviços públicos, ainda que ostentassem na prática características idênticas às concessões “precárias”, ante o entendimento sedimentado na doutrina. O argumento afeto à legalidade tem sido utilizado, portanto, para fundamentara a recusa da administração de indenizar permissionários.

Se de um lado etores da Administração argumentam que o caráter legal de precariedade de que se revestem as permissões retira-lhes a possibilidade de indenizações, de outro verifica-se a situação de alguns permissionários que detém vínculos mais fortes com o poder público do que o que seria esperado em acordos de permissões dito tradicionais.

Neste ponto, cumpre ressaltar o conceito legal de concessão, que, segundo o artigo 2º da lei 8.987, de 1995, já com redação atualizada pela nova lei de licitações e contratos administraivos, é a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência ou diálogo competitivo, a pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado. Trata-se, portanto, de vínculo contratual que ostenta estabilidade e determinação, ao passo que a permissão é caracterizada pela revogabilidade, indeterminação e precariedade. Vide a redação do art. 40 da lei 8987, de 19953.

Aqui se está a discutir as nuances de casos concretos que se repetem, em que permissões se revestem de características bastante similares às concessões. Contrapõem-se com clareza fato (realidade) e norma (direito).

Neste sentido, é curiosa a previsão do art. 42, parágrafo 2°, da Lei de Concessões4, que trata das ditas “concessões precárias”, despidas de instrumento formal, sem prazo determinado às quais, obviamente, carregam traços que as faz bastante parecidas com as permissões de serviço público.

Entretanto, dita previsão legal não se estendeu às permissões que se revestem de natureza de concessões, embora abundam casos concretos de permissões com prazo alongado ou determinado, que contaram com pesados investimentos por parte do parceiro privado, às quais, podem ser consideradas, de fato, verdadeiras concessões de serviços públicos.

Vale mencionar quanto ao ponto em particular o entendimento de Egon Bockmann Moreira para quem determinados traços jurídicos afastam determinados vínculos reconhecidos formalmente como permissões, para reconhecer que se tratam de verdadeiras concessões, dos quais vale mencionar: a execução de obras públicas; investimentos de longa maturação; sejam outorgados sem licitação (a não ser por inexigibilidade ou dispensa); exijam aportes de recursos públicos e instrumentalizados por meio de um ato unilateral.

Diversos casos práticos exemplificam o que aqui se está a apresentar como é o caso dos transportes coletivos, em que se verificam situações de elementos do vínculo do permissionário fazem com que tal acordo se amolde a verdadeiras concessões de serviços públicos, notadamente no que se refere à necessidade de investimentos pesados por parte do permissionário.

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião do julgamento do Recurso em Mandado de Segurança 18.787, que "adquirido o direito à exploração do serviço de transporte coletivo, não pode a Administração revogá-la, unilateralmente, com prejuízo da empresa permissionária". Levou em conta as obrigações e o vulto dos investimentos empregados pela permissionária.  De forma que há que se considerar que se o legislador tratou de acomodar situações informais de concessões anteriores à lei, igualmente haveria que se reconhecer a natureza de situações constituídas sob a modalidade de permissão que ostente, na prática, características  idênticas às das concessões. Nessa linha, acaso a “permissão” detenha as características de concessão, algumas implicações práticas deveriam se fazer presentes, como o direito ao levantamento de valores eventualmente devidos ou o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro da avença.

Não se pode conceder excessiva valoração da norma em detrimento à realidade dos fatos. Na linha do Poder Legislativo, através da PEC 142/2015, demonstra preocupação com a insegurança jurídica decorrente da situação das permissões já existentes antes do advento da Carta de 1988, entendemos que o nomem juris de determinadas permissões de serviço público não deveriam se sobrepor às características reais de que se revestem as avenças na prática.

Se permissões detiverem a natureza idêntica à de concessões precárias deve-se primar pelo privilégio da realidade e não do rótulo jurídico, a fim de se resguardar a segurança jurídica dos acordos firmadas, notadamente no que se refere a indenizações por investimentos não amortizados e eventuais equilíbrios econômico-financeiro. 

Referência

MOREIRA, Bockmann Egon. Direito das Concessões de Serviços Públicos. Ed. Fórum. 2.ed: 2022.

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1 Disponível aqui.

2 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

3 Art. 40. A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente.

4 As concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses.

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Colunista

Vladia Pompeu é doutoranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pedquisa - IDP. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (2015). Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrolo pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha - 2015). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB (2010). Pós-graduada em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2005). Pós-Graduada em Altos Estudos de Defesa pela Escola Superior de Guerra - ESG (2020). Cursando MBA em Administração Pública pela FGV. Professora de graduação e pós-graduação em Direito Administrativo. Colunista do Portal Migalhas. Estudou Fundamentos do Direito Americano na Thomas Jefferson School of Law 2011 (EUA - 2011). Estudou Noções do Direito Europeu na Università di Roma Tor Vergata (Itália - 2012). Mentora em Liderança pela ENAP e AGU. Idealizadora e Cofundadora do Instituto Empoderar. Autora do livro "Políticas Públicas: conformação e efetivação de direitos (2022). Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006. Ex- Procuradora do Estado do Pará. Ex-corregedora da Agência Nacional de Aviação Civil. Ex-Corregedora-Geral da Advocacia da União. Ex- advogada-Geral da União Adjunta. Ex-aAssessora Especial do Advogado-Geral da União. Ex-diretora da Escola da AGU.