Direito&Administrativo

Responsabilidade do parecerista jurídico: O que o acórdão nº 7.289/2022 do Tribunal de Contas da União nos ensina a este respeito?

A intrínseca relação entre responsabilização e liberdade de atuação do advogado público sempre nos exige bastante atenção, especialmente quando a análise se insere no contexto de casos submetidos às instâncias de controle.

25/4/2023

A intrínseca relação entre responsabilização e liberdade de atuação do advogado público sempre nos exige bastante atenção, especialmente quando a análise se insere no contexto de casos submetidos às instâncias de controle. Para além disso, reflexões mais profundas sobre o papel a ser exercido pelo parecerista jurídico devem necessariamente ser igualmente contempladas O Supremo Tribunal Federal menciona a este respeito no julgamento do HC 158086, em 18.09.2018:

Atribuir responsabilidade integral ao parecerista pode acarretar dois reveses ao funcionamento da Administração Pública. Em primeiro lugar, o parecerista estaria menos propenso a trazer teses inovadoras, ainda que razoáveis, das quais poderia advir soluções mais adequadas ao interesse público in concreto. Em vez de viabilizar políticas públicas, o advogado público se tornaria um mero burocrata, atando-se a procedimentos mais longos, difíceis e custosos. Esse engessamento não corresponde a um retorno em moralidade pública, mas em ineficiência. Em segundo lugar, a responsabilização plena dos advogados públicos por suas opiniões jurídicas ocasionaria a assunção, por estes, da função de administradores.

 A sensível relação noticiada fica ainda mais latente quando nos deparamos com o Acórdão nº 7289/2022 da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União – TCU no qual houve responsabilização do parecerista jurídico municipal que aprovou minuta de edital de licitação contendo exigências que, na análise daquele Tribunal, teriam restringido indevidamente a competitividade do certame.

De fato, a jurisprudência do TCU sedimentou-se ao longo dos anos no sentido de que pareceres jurídicos emitidos com fundamento no art. 38, parágrafo único, da lei 8.666/1993, são obrigatórios e vinculantes já que "As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração". Por outro lado, em casos de discordância do gestor com os termos do parecer, ele deve expor os motivos de seu dissenso, garantindo assim sua autonomia decisória-gerencial sem afetar a independência técnico-jurídica do parecerista.

Soma-se ao entendimento acima argumentações no sentido de que caso o gestor decida por seguir a opinião manifestada no parecer jurídico a fundamentação contida no parecer agregaria ao seu ato decisório, dessa forma, caberia responsabilização do parecerista jurídico quando configurado erro grave, inescusável ou culpa em sentido amplo, aqui incluído o dolo ou a culpa stricto sensu, na prática do ato considerado irregular.

Outras decisões do TCU exemplificam a adoção desta posição como os Acórdãos nº 512/2003, 1.536/2004, 1.898/2010, 1.380/2011, 1.591/2011, 1.857/2011, 689/2013 434/2016 todos do Plenário. Também o Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre o tema: MS nº 24.073/DF, MS nº 24.631/DF, MS nº 24.584/DF.

No caso específico do Acórdão nº 7289/2022 da Primeira Câmara, a fundamentação sustentou-se numa atuação com erro grave e inescusável do parecerista jurídico ao aprovar minuta de edital contendo exigências que, segundo análise do TCU, restringiram indevidamente a competitividade do certame.

Pois bem, ao menos três reflexões são cabíveis em relação ao que foi deliberado.

Quanto à primeira delas, deve ser feita a devida separação entre cláusulas estritamente técnicas, as quais o parecerista jurídico não tem como opinar mesmo aprovando minuta de edital de licitação, daquelas cláusulas aos quais incumbe análise de juridicidade por parte do parecerista.

A segunda reflexão diz respeito à previsão contida na lei 13.327, de 29 de julho de 2016, art. 38, § 2º, indicando que "No exercício de suas funções, os ocupantes dos cargos de que trata este Capítulo1 não serão responsabilizados, exceto pelos respectivos órgãos correicionais ou disciplinares, ressalvadas as hipóteses de dolo ou de fraude."

No que se refere a terceira reflexão necessária, temos que avaliar o caso da emissão de parecer jurídico por procuradores estaduais ou municipais não abrangidos pela lei 13.327, de 2016, bem como definir de quem será a responsabilidade pela aplicação de eventual sanção quando configurado erro grave nessas hipóteses.

No tocante ao primeiro ponto, importante decisão foi proferida no MS 35196 Agr pelo Supremo Tribunal Federal nos seguintes termos:

A responsabilidade do parecerista deve ser proporcional ao seu efetivo poder de decisão na formação do ato administrativo, porquanto a assessoria jurídica da Administração, em razão do caráter eminentemente técnico-jurídico da função, dispõe das minutas tão somente no formato que lhes são demandadas pelo administrador. A diversidade de interpretações possíveis diante de um mesmo quadro fundamenta a garantia constitucional da inviolabilidade do advogado, que assegura ao parecerista a liberdade de se manifestar com base em outras fontes e argumentos jurídicos, ainda que prevaleça no âmbito do órgão de controle entendimento diverso.

Sobre o segundo ponto, o Supremo Tribunal Federal no MS 24.631/DF, julgado em 09/08/2007, decidiu que "É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa".

Conclui-se, sob pena de redundância, sobre a impossibilidade de responsabilização do advogado público pelo conteúdo de parecer meramente opinativo, como regra geral. Excepcionam-se os casos em que se configure erro grosseiro ou culpa. E, na última situação, deve haver submissão às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias para apuração de eventual responsabilidade.

Em contrário, o Tribunal de Contas da União decidiu no Acórdão 615/2020 – Plenário: "Os ocupantes de cargos da Advocacia Pública Federal, nos casos que abarquem a esfera de competência do TCU, podem ser responsabilizados pelo Tribunal, mesmo quando não tenham atuado com dolo ou fraude."

Lembremo-nos, então, que: 1) a Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016, em seu art. 38, § 2º dispõe que no exercício de suas funções os ocupantes dos cargos nela previstos, ressalvados os casos de dolo ou de fraude,  serão responsabilizados pelos respectivos órgãos correcionais ou disciplinares; 2) o STF entendeu no mesmo sentido da lei referida, limitando às hipóteses aos pareceres de natureza meramente opinativa; 3) o Tribunal de Contas da União adotou a posição de responsabilização ampla pelo Tribunal mesmo nos casos de culpa e erro grosseiro.

Ainda importa destacar que existe uma zona de interpretação nebulosa quanto à configuração do que é o erro grave. O TCU, por meio do Acórdão nº 2860/2018 – Plenário, decidiu:

82. Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório desta Corte de Contas. Segundo o art. 138 do Código Civil, o erro, sem nenhum tipo de qualificação quanto à sua gravidade, é aquele "que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio" (grifos acrescidos). Se ele for substancial, nos termos do art. 139, torna anulável o negócio jurídico. Se não, pode ser convalidado.

83. Tomando como base esse parâmetro, o erro leve é o que somente seria percebido e, portanto, evitado por pessoa de diligência extraordinária, isto é, com grau de atenção acima do normal, consideradas as circunstâncias do negócio. O erro grosseiro, por sua vez, é o que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do negócio. Dito de outra forma, o erro grosseiro é o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave.

Sobre o assunto, importante e necessária reflexão trouxe o TCU no Acórdão nº 63/2023 – Primeira Câmara quando pontuou que:

84. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "culpa grave é caracterizada por uma conduta em que há uma imprudência ou imperícia extraordinária e inescusável, que consiste na omissão de um grau mínimo e elementar de diligência que todos observam" (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, p. 169) ."

23. Esse entendimento foi externado e seguido em inúmeras outras deliberações, de minha lavra e de outros Ministros, a exemplo dos Acórdão 2370/2022-TCU-Plenário, 2.326/2022-Plenário, 7.539/2022-1ª Câmara e 3.768/2022-2ª Câmara, dentre várias outras, apenas para citar as mais recentes.

24. Em minha visão e com as devidas vênias às posições eventualmente contrárias, associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada pelo homem médio significa tornar aquela absolutamente idêntica à culpa comum ou ordinária, visto que este sempre foi o parâmetro para se aferir tal modalidade de culpa. Além de inadequada, essa posição parece negar eficácia às mudanças promovidas pela Lei 13.655/2018, que buscou instituir um novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização.

À vista disso, se entendermos que o conceito de erro grave já foi suficientemente esclarecido, precisamos agora decidir quais são condutas aceitáveis de "pessoa de diligência normal" ou o que é "inobservância de um dever de cuidado", bem como sobre a eventual diferenciação entre culpa grave, erro grosseiro inescusável e culpa comum e a quem cabe definí-las no caso concreto.

Em vista do exposto até este momento e considerando as decisões citadas podemos inferir que deve haver uma distinção sobre a instância que detém a competência para responsabilização de advogados pareceristas quando emitam parecer no exercício de suas funções, seja de caráter obrigatório e vinculante ou na hipótese de manifestação jurídica opinativa.

De acordo com o STF, tratando da emissão de parecer meramente opinativo não caberia responsabilização do advogado público, salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, devendo nesse caso haver submissão às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias. Já para o TCU, caberia sua atuação, por meio de atribuição de responsabilidade, nas duas situações, quando presentes casos de dolo ou fraude, incluídos também o erro grave ou grosseiro.

Acreditamos que, uma vez verificada atuação inadequada de advogado parecerista, entendida aquela que praticada com dolo, fraude, erro grosseiro ou culpa grave admite-se a sua responsabilização, seja pela emissão de perecer de caráter vinculante ou opinativo. Entretanto, caberá sempre às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias avaliar a configuração in concreto dos elementos subjetivos referidos (dolo, fraude, erro grosseiro e culpa grave), aplicando a penalidade cabível. Assim, não caberia ao TCU fazer essa avaliação quanto aos advogados públicos federais, por expressa previsão legal a respeito (lei 13.327, de 29 de julho de 2016, em seu art. 38, § 2º).

__________

1 I - de Advogado da União; II - de Procurador da Fazenda Nacional; III - de Procurador Federal; IV - de Procurador do Banco Central do Brasil; V - dos quadros suplementares em extinção previstos no art. 46 da Medida Provisória nº 2.229-43, de 6 de setembro de 2001 .

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Vladia Pompeu é doutoranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pedquisa - IDP. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (2015). Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrolo pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha - 2015). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB (2010). Pós-graduada em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2005). Pós-Graduada em Altos Estudos de Defesa pela Escola Superior de Guerra - ESG (2020). Cursando MBA em Administração Pública pela FGV. Professora de graduação e pós-graduação em Direito Administrativo. Colunista do Portal Migalhas. Estudou Fundamentos do Direito Americano na Thomas Jefferson School of Law 2011 (EUA - 2011). Estudou Noções do Direito Europeu na Università di Roma Tor Vergata (Itália - 2012). Mentora em Liderança pela ENAP e AGU. Idealizadora e Cofundadora do Instituto Empoderar. Autora do livro "Políticas Públicas: conformação e efetivação de direitos (2022). Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006. Ex- Procuradora do Estado do Pará. Ex-corregedora da Agência Nacional de Aviação Civil. Ex-Corregedora-Geral da Advocacia da União. Ex- advogada-Geral da União Adjunta. Ex-aAssessora Especial do Advogado-Geral da União. Ex-diretora da Escola da AGU.