As alterações sofridas pelo Estado ao longo do tempo demonstram que a Administração Pública de antes não pode ser a mesma do presente. Assim, para que as demandas sociais, implementadas por meio das políticas públicas, sejam atendidas e a justiça social seja alcançada necessário se faz o acompanhamento da evolução processada pelo Estado. Essa evolução, multidisciplinar que é, reflete-se também na forma como a Administração procedimentaliza as suas contratações.
Nesse sentido, é que "Uma nova lei é uma oportunidade para rever as práticas, os costumes e as concepções. Se, depois de anos fazendo a mesma coisa, os problemas ainda persistem, deve-se pelo menos refletir: Estamos no caminho certo?"1. E a nova Lei de Licitações e Contratos tem nos obrigado a enfrentar essa questão diariamente, sob distintas perspectivas, desde a sua entrada em vigor.
A centralização de serviços e compras na Administração Pública passa a ter importância, como expressão do esforço para alcançar uma Administração Pública verdadeiramente gerencial2. Sem descurar, é claro, da obrigatoriedade de observância do princípio da legalidade, mas, dando-se espaço para que a inovação floresça e se fortifique dentro da Administração Pública, o que deve ser fomentado.9
A lei 14.133, de 1º de abril de 2021, dispôs expressamente em seu artigo 19 e 181 que:
Art. 19. Os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos deverão:
I - instituir instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços; (grifei e sublinhei)
Art. 181. Os entes federativos instituirão centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades desta Lei.
Parágrafo único. No caso dos Municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes, serão preferencialmente constituídos consórcios públicos para a realização das atividades previstas no caput deste artigo, nos termos da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005. (grifei e sublinhei)
Há, portanto, comando normativo para que os órgãos da Administração3, com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos, instituam instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços. No artigo 181, a ordem é direta e impositiva: os entes federativos devem instituir Centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da lei.
A norma ainda possibilitou aos Municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes que preferencialmente constituam consórcios públicos para realizar compras em grande escala, também para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da lei. Apesar do artigo 181 fazer referência expressa à instituição de Centrais de compras entende-se que podem ser criadas Centrais de serviços com possibilidade de previsão em lei específica a ser editada pelo ente respectivo.
A ideia de gestão associada de serviços públicos não é, em sua totalidade, grande novidade. A lei 11.107, de 6 de abril de 2005, que "Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências." foi publicada para atender previsão constitucional exposta no art. 241 da Constituição Federal, onde já se menciona a gestão associada de serviços públicos:
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. (grifei e sublinhei)
A lei 14.133, de 2021, veio então reforçar a cooperação federativa para descentralizar a gestão pública de maneira eficiente em busca de uma melhor prestação dos serviços públicos.
Dessa maneira, os consórcios, enquanto pessoas jurídicas criadas por lei com a finalidade de executar a gestão associada de serviços públicos, são claramente bons instrumentos de gestão centralizada de serviços públicos. Assim, quando um serviço público for considerado de interesse de mais de um ente federado eles poderão se associar para criar consórcio a fim de realizar gestão centralizada, podendo ser instituído como associação pública (autarquias de caráter especial, integrando a administração indireta dos entes consorciados) ou pessoa jurídica de direito privado devendo, nesse caso, atender os requisitos exigidos pela legislação civil.
Destaca-se que a União somente participará de consórcios públicos em que também façam parte todos os Estados em cujos territórios estejam situados os Municípios consorciados (art. 36 do decreto 6.017/2007).
Antes, chegamos à conclusão de que as compras centralizadas para Estados, Distrito Federal, Municípios ou União podem ser feitas por Centrais de compras ou de serviços. Igualmente poderão ser realizadas de maneira compartilhada, nesse último caso utilizando o Sistema de Registro de Preços, regulamentado, em âmbito federal, pelo decreto 7.892, de 23 de janeiro de 2013, ou mesmo, por meio do credenciamento.
A experiência precede a norma, neste ponto.
De fato, diante da premência crescente de ações voltadas para o aumento da eficiência na gestão dos recursos públicos e o anseio da sociedade para que a prestação de serviços públicos seja feita com melhor qualidade resultando em políticas públicas eficientes que atendam à evolução da sociedade, a Administração Pública Federal Brasileira (APF) verificou a necessidade de implementar modelos e procedimentos para o aperfeiçoamento da estratégia de compras por meio da criação da Central de Compras e Contratações do Governo Federal (CENTRAL), através do decreto 8.189, de 21 de janeiro de 2014.
A Central de Compras e Contratações do Governo Federal foi criada a partir da constatação da existência replicada de áreas que executam atividades-meio comuns e contínuas nas instituições, o que acaba por resultar em sobrecarga dessas estruturas que passam a direcionar a força de trabalho para as atividades comuns perdendo, portanto, o foco necessário nas atividades finalísticas.
Atualmente a CENTRAL integra a estrutura da Secretaria de Gestão (SEGES) do Ministério da Economia (art. 2º do Anexo I do decreto 9.745, de 8 de abril de 2019) e suas atribuições encontram-se dispostas no art. 131 do regulamento mencionado. De forma bastante sucinta, é de sua competência desenvolver, propor e implementar modelos para aquisição, contratação, alienação e gestão centralizadas de bens e serviços de uso comum, no âmbito dos órgãos e entidades da APF.
Pode-se dizer, portanto, que a CENTRAL tem como escopo inicial o mapeamento da demanda de toda APF que, num segundo momento, poderá resultar na contratação centralizada de bens e serviços de uso em comum. A finalidade é gerar ganho de escala nas compras e economizar, além de proporcionar a utilização de menor força de trabalho na fase licitatória processual. Além disso, a padronização dos itens demandados viabiliza uma atuação estratégica das aquisições, imprimindo ganhos de qualidade e maior eficiência na gestão dos recursos públicos.
Ora, mas qual seria então a grande novidade trazida pela lei 14.133, de 2021? Qual a diferença entre as Centrais de Serviços Compartilhados e as novas Centrais de Compras e Serviços?
As Centrais de Compras e Serviços governamentais, elencadas na lei 14.133, de 2021, ampliando a ideia da CENTRAL, reúnem vários órgãos com interesse em comum e seu principal objetivo é superar dificuldades e gerar benefícios aos órgãos envolvidos nos níveis econômico, social e político. Assumiria função comparável a uma distribuidora de bens/serviços comuns com o objetivo de obter dos fornecedores condições de negociação melhores com ganhos de escala.
Por sua vez, as Centrais de Serviços Compartilhados são "unidades governamentais" que prestam serviços de apoio a mais de um ministério (incluindo suas agências) ou a mais de um setor do governo (o governo central, as unidades gestoras da seguridade social, os governos territoriais)4.
Percebe-se, entretanto, que o modelo escolhido para ser adotado no Brasil foi o da Central de Compras e Serviços, no qual retiram-se as funções de apoio, que são replicadas entre as diversas entidades governamentais, e centraliza-se em uma unidade que vai se dedicar apenas aos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços.
O que, de fato, parece não ter sido alterado é a necessidade perene de se exigir uma atenção quando da criação das Centrais de compras, em especial quanto à adoção de mecanismos adequados para controle e direção com o fim de evitar que os riscos, já tão conhecidos na gestão das aquisições públicas, não sejam por elas também cometidos.
Referências
MAURÍLIO H. Corrêa Engel. Análise da aplicabilidade das experiências em Centrais de Serviços Compartilhados a um modelo para a APF. Disponível aqui. Acesso em Julho de 2022.
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, 47(1) janeiro-abril 1996. Trabalho apresentado ao seminário sobre Reforma do Estado na América Latina organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado e patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Brasília, maio de 1996. Disponível aqui. Acesso em: julho de 2022.
Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021.
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1 Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos/organizador Leandro Sarai – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Pág. 3.
2 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, 47(1) janeiro-abril 1996. Trabalho apresentado ao seminário sobre Reforma do Estado na América Latina organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado e patrocinado
3 Expressão que nos termos do artigo 6º, inciso IV, da lei nº 14.133/2021, refere-se à órgão ou entidade por meio do qual a Administração Pública atua. p. 4.
4 MAURÍLIO H. Corrêa Engel. Análise da aplicabilidade das experiências em Centrais de Serviços Compartilhados a um modelo para a APF. Disponível aqui. Acesso em Julho de 2022.