Direito&Administrativo

Demissão por improbidade administrativa na nova lei 14.230/21

O tema, que tem conexão próxima com a ética, a moral, a integridade, a honestidade, permeia também, de maneira bem pragmática, debates sobre o papel do Estado na modulação comportamental dos seus agentes e o limite efetivamente transformador da legislação nesse sentido.

5/7/2022

Falar (ou escrever) sobre improbidade administrativa e suas consequências sancionatórias é um assunto até comum nos dias atuais. Isso que não quer dizer, entretanto, que todas as questões relacionadas são de fácil solução ou suscitam discussões meramente acadêmicas. Muito pelo contrário.

O tema, que tem conexão próxima com a ética, a moral, a integridade, a honestidade, permeia também, de maneira bem pragmática, debates sobre o papel do Estado na modulação comportamental dos seus agentes e o limite efetivamente transformador da legislação nesse sentido.

Na década de 1960, a exposição de motivos da Carta Constitucional de 19881 já mencionava a integridade como um valor a ser preservado e justificava o estabelecimento de sanções com vistas a combater a sua falta e a corrupção. Veio a Constituição Cidadã e, nos anos seguintes, a exposição de motivos da lei de improbidade administrativa 8.429/91, apresentava-nos, inclusive para fins didáticos e preventivos, as sanções que seriam impostas àqueles que praticassem atos qualificados como desonestos ou corruptos em face da administração pública2.

Entretanto, uma vez publicada, a lei 8.429/92 como ato de improbidade, não apenas a conduta dolosamente constituída, mas também aquela praticada de forma culposa, mediante imprudência, negligência ou imperícia, relativamente aos atos que causassem lesão ao erário.

Divergências doutrinárias e jurisprudenciais surgiram então quanto à incidência da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa. Seria mesmo justificável e razoável atribuir-se a mesmíssima penalidade para àqueles que causam prejuízo à administração pública quando agem por descuido, desleixo ou desatenção?

O STJ possui julgados em que adota conceito amplo para o ato de improbidade.3 De outro lado, adotando um conceito mais restritivo, o mesmo Tribunal Superior já se manifestara no sentido de que “o conceito jurídico de ato de improbidade administrativa, por ser circulante no ambiente do direito sancionador, não é daqueles que a doutrina chama de elásticos, isto é, daqueles que podem ser ampliados para abranger situações que não tenham sido contempladas no momento da sua definição4. De maneira semelhante, parte relevante da doutrina de direito administrativo disciplinar5 e também a AGU6.

De maneira bem pragmática, temos que até a entrada em vigor da lei 14.230/21, admitia-se a prática de improbidade por meio de conduta praticada com dolo ou culpa (grave, para alguns), a depender a configuração legal aplicável ao caso.

Sob outra perspectiva, sabemos que a consequência para o servidor público federal que pratica um ato ímprobo é a aplicação da pena de demissão por força do art. 132, IV, da lei 8.112/90, combinado com um dos artigos da lei 8.429/92 (art. 9º. 10 ou 11)7,  não podendo ele retornar ao serviço público federal mediante concurso público ou por outro meio de provimento (art. 137, parágrafo único)8.

Deparávamo-nos então, naquela ocasião, com uma questão prática importante: será que a modalidade culposa da improbidade justifica tamanha imposição sancionatória? É justo restringir o retorno ao serviço daquele penalizado “em casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo doloso9.

A recente alteração da lei de improbidade administrativa pela lei 14.230/21, entende que não. A norma passou a considerar atos de improbidade administrativa apenas as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 da lei, ressalvados os tipos previstos em leis especiais. A vontade livre e consciente do autor passou a ser condição si ne qua non para a configuração do ato de improbidade. Não basta a mera voluntariedade do agente.

Para se configurar como ato ímprobo, a ação ou omissão que violar os deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade, e que causar lesão ao erário deverá ter sido dolosa. Também deverá ser dolosa, a ação que resultar em enriquecimento ilícito do agente público, assim como o malferimento aos princípios da administração pública. O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas sem a comprovação de ato doloso com fim ilícito deverá afastar a responsabilização por ato de improbidade administrativa.

Com a substancial alteração da LIA ao decidir pela aplicação da penalidade de demissão pela prática de improbidade administrativa por servidor federal deve a Administração examinar a presença do dolo específico do agente no sentido de alcançar o resultado ilícito previsto nos arts. 9, 10 e 11 da Lei, pois não basta mais a sua voluntariedade, consoante dispõe o novo art. 1º, § 2º, da lei 8.429/92.

A LIA exige, ademais, em seu art. 1110, o fim especial de agir para que haja improbidade, inclusive para fins de sua aplicação por outras leis, de modo que se deve comprovar que a conduta funcional do agente público teve o objetivo de obter vantagem para si, para outrem ou para a entidade.

Para fins de caracterização da conduta ímproba, não deve ser suficiente o genérico descumprimento da norma. E, apesar de não se confundir dolo com má-fé, esta última é condição necessária para a imputação de responsabilidade aos agentes públicos pela prática de um ato ímprobo ou desonesto, ainda que “a aferição do dolo e mesmo a presença da má-fé dificilmente sejam objeto de prova direta11.

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1 BRASIL. Exposição de motivos do ministro da justiça e negócios interiores. Brasília, 12 dez. 1966. Disponível aqui.

2 BRASIL. Exposição de motivos GM/SAA/0388, de 14/8/91, do sr. ministro de Estado da Justiça. Diário do Congresso Nacional, de 17/8/91. Disponível aqui.

3 Ao tratar do tema no Recurso Especial – REsp 1.177.910/SE, depois de destacar que improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente que necessariamente deve atingir bem ou interesse privado e público ao mesmo tempo, considerou ser indispensável, para a caracterização como improbidade, que a conduta do agente seja dolosa e incida nos tipos previstos nos arts. 9º e 11 da lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave nas hipóteses do art. 10 (AIA 30-AM, Corte Especial, DJe 28/9/11); apontou, ainda, que a referida mitigação somente poderia ocorrer em casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo. Mas como justificar, nesse último caso, a expulsão de um servidor público federal de forma definitiva dos quadros da administração pública em razão de um ato sem gravidade?

4 STJ. REsp 1.558.038-PE, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª turma. Julgado em 27/10/15, DJe 9/11/15.

5 COSTA, José Armando. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Editora Brasília Jurídica. 1.ed., 2000, p. 22, 33 e 34.

6 Parecer GQ-200, de 19/8/99, no sentido de que o ato ímprobo deve ser necessariamente doloso.

7 STJ. MS 19.881/DF, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe de 1/7/15.

8 Sobre o tema cabe destacar a recente decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na ADI 2975/DF, Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 137 da lei 8.112/90 e determinou a comunicação do teor desta decisão ao Congresso Nacional, para que delibere, se assim entender pertinente, sobre o prazo de proibição de retorno ao serviço público nas hipóteses do art. 132, I, IV, VIII, X e XI, da lei 8.112/90, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que julgavam improcedente a ação direta; parcialmente o ministro Marco Aurélio, apenas quanto à comunicação formalizada ao Legislativo; e os ministros Roberto Barroso e Nunes Marques, que julgavam parcialmente procedente a ação. Plenário, sessão virtual de 27/11/20 a 4/12/20.

9 Idem. RESP 1.177.910/SE (Informativo 577). Precedentes. REsp 1.081.743-MG, 2ª turma, julgado em 24/3/15. REsp 1.177.910-SE, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/15, DJe 17/2/16. 1ª seção.

10 Lei 8.429/92. [...] Art. 11. [...] § 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo decreto 5.687, de 31/1/06, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. § 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste art. a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei. 

11 FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, São Paulo, p. 1-31, set./dez 2019. Disponível aqui

12 ADVOCACIA – GERAL DA UNIÃO. Parecer GQ-200, de 19 de agosto de 1999. DOU de 19/8/99. Disponível aqui.

13 BRASIL. Lei 8.429/92. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências (redação dada pela lei 14.230/21). Diário Oficial da União. Brasília, 3/8/92.

14 Exposição de Motivos do Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Brasília, 1212/66. Disponível aqui.

15 Exposição de Motivos GM/SAA/0388, de 14/8/91, do Sr. ministro de Estado da Justiça. Diário do Congresso Nacional, de 17/8/91. Disponível aqui

16 COSTA, José Armando. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Editora Brasília Jurídica. 1.ed., 2000.

17 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

18 FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, São Paulo, p. 1-31, set./dez 2019. Disponível aqui

19 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP 1.177.910/SE (informativo 577). Precedentes. RESP 1.081.743-MG, 2ª turma, julgado em 24/3/15. REsp 1.177.910-SE, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/15, DJe 17/2/16. 1ª Seção.

20 RESP 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª turma. Julgado em 27/10/15, DJe 9/11/15.

21 MS 19.881/DF, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe de 1/7/15.

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Colunista

Vladia Pompeu é doutoranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pedquisa - IDP. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (2015). Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrolo pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha - 2015). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB (2010). Pós-graduada em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2005). Pós-Graduada em Altos Estudos de Defesa pela Escola Superior de Guerra - ESG (2020). Cursando MBA em Administração Pública pela FGV. Professora de graduação e pós-graduação em Direito Administrativo. Colunista do Portal Migalhas. Estudou Fundamentos do Direito Americano na Thomas Jefferson School of Law 2011 (EUA - 2011). Estudou Noções do Direito Europeu na Università di Roma Tor Vergata (Itália - 2012). Mentora em Liderança pela ENAP e AGU. Idealizadora e Cofundadora do Instituto Empoderar. Autora do livro "Políticas Públicas: conformação e efetivação de direitos (2022). Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006. Ex- Procuradora do Estado do Pará. Ex-corregedora da Agência Nacional de Aviação Civil. Ex-Corregedora-Geral da Advocacia da União. Ex- advogada-Geral da União Adjunta. Ex-aAssessora Especial do Advogado-Geral da União. Ex-diretora da Escola da AGU.