Direito Digit@l

Musk e Moraes e o embate pela soberania digital

A ubiquidade do poder econômico das big techs em face do poder político territorial dos Estados, em um contexto de evolução tecnológica exponencial.

3/5/2024

O artigo discute os riscos crescentes de ataques cibernéticos a infraestruturas críticas em um mundo cada vez mais interconectado. Os autores argumentam que, devido à natureza sem fronteiras do ciberespaço, é difícil prevenir e responder eficazmente a esses ataques. Destacam a vulnerabilidade de sistemas essenciais e a necessidade de uma estratégia de segurança robusta que contemple punições severas e cooperação internacional para mitigar os riscos de ataques cibernéticos catastróficos.

Partindo-se do conceito de soberania digital ofertado por Dra. Dora Kaufman, é possível admitir que ela se refere “à capacidade dos Estados em assegurar o controle sobre o ambiente on-line (ciberespaço), ou seja, garantir que as suas regras sejam respeitadas pelos diversos intervenientes no mundo on-line; a expressão concerne ao controle dos dados, padrões e protocolos, processos, serviços e infraestrutura”1.

Entretanto, a professora da PUC/SP reconhece que o referido controle é fragilizado pelo fato de que o desenvolvimento e a implementação das tecnologias e serviços digitais no ocidente estão sob o domínio das big techs americanas”2.

Inserida neste cenário está a batalha travada entre Elon Musk, dono da “X”, e o ministro Alexandre de Moraes, que nada mais é do que um desdobramento lógico do confronto entre o poder econômico, proporcionado pela hegemonia tecnológica, e o poder estatal, representado pela capacidade de impor suas próprias decisões.

No entanto, a controvérsia detém, em seu âmago, a disputa pela preservação de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a soberania. E, embora este conceito apresente constante evolução desde suas concepções clássicas, tais como o Leviatã de Hobbes, é possível perceber que suas variações permanecem ligadas a duas ideias distintas, elencadas por Dalmo de Abreu Dallari:

“(…) apesar do progresso verificado, a soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica (destaques nossos)”3.

Sob essa perspectiva, nota-se que a evolução desenfreada dos recursos de comunicação online, contemplada na sociedade informacional, demanda regulamentação por nomas das mais diversas naturezas. E estas vão desde aquelas compreendidas como soft law até as próprias decisões expedidas pelo Poderes Judiciários dos Estados soberanos.

Em verdade, ao proferirem suas decisões, os juízes manifestam o seu poder de “criar o direito”. Não é por outra razão de Fredie Didier entende que “o conteúdo da decisão judicial é a norma do caso concreto; isto é, a norma jurídica individualizada estabelecida pelo magistrado na conclusão/dispositivo do pronunciamento e que certifica o direito a uma prestação (fazer, não fazer ou dar coisa), reconhece um direito potestativo ou ainda tão somente declara algo”4.

Contudo, este mesmo doutrinador estabelece um contraponto entre as noções de conteúdo e de eficácia da decisão judicial. Na sua concepção, “o efeito (ou eficácia) da decisão é a repercussão que a determinação dessa norma jurídica individualizada pode gerar e que vincula, de regra, as partes do processo”. Daí concluir ser “muito importante distinguir o conteúdo dos efeitos da decisão judicial. É a partir do conteúdo que se pode traçar um esboço dos efeitos que a decisão está apta a produzir.

Distinguindo entre as decisões de natureza declaratória, constitutiva e condenatória o autor destaca que esta última classificação, corresponde às decisões impõem prestação e, com isso, reconhecem a existência do direito a uma prestação e permitem a realização de atividade executiva no intuito de efetivar materialmente essa prestação. Nesse caso, a decisão que impõe tal prestação tem por conteúdo a certificação da existência de um direito subjetivo do autor e a “imposição ao réu do cumprimento do respectivo dever; tem por efeito viabilizar que o credor possa valer-se de medidas executivas para buscar a satisfação desse seu direito”5.

No caso das decisões que determinam o bloqueio da conta de usuário pela “X” no Brasil, a norma jurídica criada pela decisão judicial é a quela que proíbe a atuação online no ambiente dessa plataforma por aqueles que tiveram sua conta bloqueada.

Contudo, ainda com recurso ao magistério do professor Fredie Diddier, o direito, a uma prestação, “quando certificado pelo juiz, precisa ser concretizado no mundo físico, o que somente vai acontecer se o demandado cumprir a ordem que lhe é dirigida”. Razão pela qual o autor conclui que, em tal hipótese, o “bem da vida buscado, quando se lança mão de uma ação de prestação, é a própria prestação, ou seja, o resultado do fazer ou do não fazer, a própria coisa ou a quantia cuja entrega ou pagamento se pretende. É por isso que se diz que o direito certificado precisa ser concretizado no mundo físico.”

E é neste plano que se insere a disputa pela soberania que este texto buscou esclarecer. A despeito de posições políticas assumidas em um cenário extremamente polarizado, cumpre evidenciar que a determinação expedida pelo Supremo Tribunal Federal deve ser respeitada, ao menos que este órgão seja desprovido, via processo democrático (ex. impeachmant), da legitimação que recebeu do povo, que é a fonte da qual emana quaisquer dos poderes estatais. É o escrutínio público, então, o lugar adequado para a elaboração das normas regulamentadoras para a atuação das gigantes de tecnologia, bem como os impactos de suas atuações sobre sistema jurídico-político brasileiro6.

E não é outra a visão da mais abalizada doutrina sobre o tema. Diversos pensadores internacionais têm enriquecido profundamente o debate sobre a soberania digital. A seguir, destacamos alguns autores cujas ideias serão consideradas nesta análise.

Na fronteira do conhecimento digital, Shoshana Zuboff desbrava o território do capitalismo de vigilância, alertando-nos sobre como as corporações tecnológicas moldam a soberania dos Estados e dos cidadãos através da exploração massiva de dados. Essa análise crítica é essencial para entendermos as nuances das decisões judiciais brasileiras em relação à soberania e eleições, onde a coleta de dados se apresenta como uma questão central7.

Por seu lado, Julie E. Cohen, na sua incisiva obra "Between Truth and Power", explora as tensões entre direito, política e tecnologia. Ela argumenta que os tribunais e juízes enfrentam novos desafios frente às interferências que plataformas digitais, alinhadas com governos estrangeiros dominantes, podem exercer sobre a soberania nacional8.

Vis-à-vis, Luciano Floridi, como um filósofo da informação, aborda a ética da informação e sublinha a importância de robustas políticas de governança dos dados. Ele sugere que auditorias de segurança cibernética, como as realizadas na Europa com plataformas como o TikTok, podem servir de modelo para assegurar uma gestão responsável dos dados dos cidadãos brasileiros9.

Mutatis mutandis, Joseph S. Nye, Jr. enfoca em como a ciberguerra e a cibersegurança são fundamentais na manutenção da soberania nacional. Ele propõe que as plataformas digitais estabeleçam acordos globais para proteger os dados dos usuários de serem repassados a entidades que praticam espionagem internacional10.

Finalmente, Bruce Schneier nos lembra da importância crítica da segurança dos dados e da infraestrutura digital. Ele questiona quais infraestruturas podem ser os próximos alvos e como podemos protegê-las, evidenciando a centralidade dessa segurança para a soberania nacional na era digital11.

Essas perspectivas são indispensáveis para modelar políticas que equilibrem o poder crescente das big techs com a necessidade de manter a soberania estatal e individual, visando um futuro em que a tecnologia promova a equidade e a justiça global12.

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1 KAUFMAN, Dora. Democracia e soberania digital. Disponível aqui. Acesso em: 04 abril 2024.

2 “No primeiro trimestre de 2023, por exemplo, 65% do market-share da computação em nuvem pertencia à AWS/Amazon (32%), Microsoft Azure (23%) e Google Cloud (10%); como indicam os números, os data centers dessas corporações armazenam e processam mais da metade dos dados do planeta, incluindo os dados de áreas críticas aos governos. A título de ilustração, o contrato de computação em nuvem do Departamento de Defesa dos EUA (Joint Enterprise Defense Infrastructure ou JEDI) no valor aproximado de US$ 10 bilhões por 10 anos, em 25 de outubro de 2019 foi concedido à Microsoft, em novembro do mesmo ano a licitação foi contestada pela AWS/Amazon, resultando no seu cancelamento em 6 de julho de 2021 e o lançamento de um novo programa em 7 de dezembro de 2022 (“Joint Warfighter Cloud Capability”, JWCC). Esse novo programa foi entregue à Amazon, Google, Microsoft e Oracle. É crescente a percepção de que os serviços em nuvem são a solução para processar, transferir e armazenar dados de forma segura e protegida; com base nessa percepção, observa-se mundo afora um movimento das organizações públicas e privadas de migração dos data centers próprios para os serviços em nuvem. Como “dado” é o ativo estratégico da Economia de Dados, modelo econômico que tende a predominar no século 21, seu acesso e controle pelo setor privado ameaça a soberania digital dos Estados, tema particularmente sensível à União Europeia (UE). Estabelece-se um conflito entre o clamor da Europa por preservar sua soberania digital e o fato real de que parte significativa dos dados dos europeus são armazenados e processados por empresas americanas (parte menor, por empresas chinesas); esse conflito entre os Estados e as empresas é assimétrico.” KAUFMAN, Dora. Democracia e soberania digital. Disponível aqui. Acesso em: 04 abril 2024.

3 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. p.74.

4 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Decisões declaratórias e constitutivas não têm eficácia imediata. 

5 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Decisões declaratórias e constitutivas não têm eficácia imediata. 

6 Nessa ordem de ideias, Sthefano Scalon Cruvinel esclarece que “à medida que avançamos nesta era digital, é de suma importância que continuemos a debater e buscar soluções que garantam a liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que protegemos nossas democracias e sociedades da disseminação de desinformação e da manipulação online, como é o caso das deep fakes e das fake news.

Assim, é importante que continuemos a debater e buscar soluções que promovam a transparência, a responsabilidade e a educação digital, visando fortalecer nossas democracias e preservar a integridade de nossos espaços online.” CRUVINEL, Sthefano Scalon. A regulamentação das redes sociais em meio à disputa entre Big Techs e governo. Disponível em: Acesso em 02 maio 2024.

7 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. PublicAffairs,o 2019. Disponível em: [Google Books). Acesso em 02 maio 2024.

8 COHEN, Julie E. Between Truth and Power: The Legal Constructions of Informational Capitalism. Oxford University Press, 2019. Disponível em: [Oxford Academic). Acesso em 02 maio 2024.

9 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere is Reshaping Human Reality. Oxford University Press, 2014. Disponível em: [Google Books). Acesso em 02 maio 2024.

10 NYE, Joseph S., Jr. The Future of Power. PublicAffairs, 2011. Disponível em: [Google Books). Acesso em 02 maio 2024.

11 SCHNEIER, Bruce. Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World. W.W. Norton & Company, 2015. Disponível em: Google Books). Acesso em 02 maio 2024.

12 MONTEIRO, Renato Leite; SANTOS, Coriolano Aurélio de Almeida Camargo. Estruturas críticas: o próximo alvo. Migalhas, 15 dez. 2009. Disponível aqui.

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Colunistas

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos é advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Foi convidado pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões para discutir temas ligados ao Direito e à Tecnologia. Também atua como professor e coordenador do programa de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) da Escola Superior de Advocacia Nacional do Conselho Federal é o órgão máximo na estrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Foi fundador e presidente da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB/SP (2005-2018). Atuou como Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (2005-2021) e fundou a Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP em 2014. Na área de arbitragem, é membro da Câmara Empresarial de Arbitragem da FECOMERCIO, OAB/SP e da Câmara Arbitral Internacional de Paris. Foi membro do Conselho Jurídico da FIESP (2011-2020) e diretor do Departamento Jurídico da mesma entidade (2015-2022). Atualmente desempenha o papel de Diretor Jurídico do DEJUR do CIESP. Foi coordenador do Grupo de Estudos de Direito Digital da FIESP (2015/2020). Foi convidado e atuou como pesquisador junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010, para tratar da segurança física e digital de processos findos. Além disso, ocupou o cargo de Diretor Titular do Centro do Comércio da FECOMERCIO (2011-2017) e foi conselheiro do Conselho de Tecnologia da Informação e Comunicação da FECOMERCIO (2006-2010). Desde 2007, é membro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Atua como professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2007, nos cursos de Direito e Tecnologia, tendo lecionado no curso de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas, IMPACTA Tecnologia e no MBA em Direito Eletrônico da EPD. Ainda coordenou e fundou o Programa de Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance do Ibmec/Damásio. É Mestre em Direito na Sociedade da Informação pela FMU (2007) e Doutor em Direito pela FADISP (2014). Lecionou na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, Academia Nacional de Polícia Federal, Governo do Estado de São Paulo e Congresso Nacional, em eventos em parceria com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, INTERPOL e Conselho da Europa. Como parte de sua atuação internacional, é membro da International High Technology Crime Investigation Association (HTCIA) e integrou o Conselho Científico de Conferências de âmbito mundial (ICCyber), com o apoio e suporte da Diretoria Técnico-Científica do Departamento de Polícia Federal, Federal Bureau of Investigation (FBI/USA), Australian Federal Police (AFP) e Guarda Civil da Espanha. Além disso, foi professor convidado em instituições e empresas de grande porte, como Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), Banco Santander e Microsoft, bem como palestrou em eventos como Fenalaw/FGV.GRC-Meeting, entre outros. Foi professor colaborador da AMCHAM e SUCESU. Em sua atuação junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), apresentou uma coletânea de pareceres colaborativos à ação governamental, alcançando resultados significativos com a publicação de Convênios e Atos COTEPE voltados para a segurança e integração nacional do sistema tributário e tecnológico. Também é autor do primeiro Internet-Book da OAB/SP, que aborda temas de tributação, direito eletrônico e sociedade da informação, e é colunista em Direito Digital, Inovação e Proteção de Dados do Portal Migalhas, entre outros. Em sua atuação prática, destaca-se nas áreas do Direito Digital, Inovação, Proteção de Dados, Tributário e Empresarial, com experiência jurídica desde 1988.

Leila Chevtchuk, eleita por aclamação pelos ministros do TST integrou o Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT. Em 2019 realizou visita técnico científica a INTERPOL em Lyon na França e EUROPOL em 2020 em Haia na Holanda. Desembargadora, desde 2010, foi Diretora da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Pela USP é especialista em transtornos mentais relacionados ao trabalho e em psicologia da saúde ocupacional. Formada em Direito pela USP. Pós-graduada pela Universidade de Lisboa, na área de Direito do Trabalho. Mestre em Relações do Trabalho pela PUC e doutorado na Universidade Autôno de Lisboa.