Direito Digit@l

Operações da Polícia Federal e a dualidade ilusória: O impacto legal das mensagens virtuais no mundo real

A revolução digital trouxe à tona uma série de desafios jurídicos, especialmente no que tange à interpretação e aplicabilidade das leis em ambientes virtuais.

9/2/2024

No cenário contemporâneo, a proliferação de tecnologias digitais e plataformas de comunicação instantânea, como o WhatsApp, revolucionou a forma como interagimos e nos expressamos. No entanto, essa revolução digital também trouxe à tona uma série de desafios jurídicos, especialmente no que tange à interpretação e aplicabilidade das leis em ambientes virtuais. Recentemente, diversas operações da Polícia Federal no Brasil destacaram um fenômeno inquietante: a utilização de mensagens trocadas em grupos de WhatsApp como evidências centrais em investigações de atividades ilícitas.

Um argumento frequentemente ouvido entre os investigados é que "são apenas mensagens trocadas no grupo; não são crimes". Esse raciocínio revela uma percepção equivocada e perigosa sobre a natureza da responsabilidade e da accountability1 no âmbito digital. Para desmistificar essa visão, propõe-se uma analogia simples, porém elucidativa: imagine que o grupo do WhatsApp representa uma sala em que diversas pessoas estão reunidas, expressando opiniões, incitando, planejando ou até mesmo conspirando para cometer determinados crimes. A distinção entre esse cenário "físico" e o "virtual" torna-se, portanto, meramente topográfica, pois as consequências legais e sociais em ambos os contextos são idênticas.

A legislação brasileira, fundamentada nos princípios da democracia e do Estado de Direito, não faz distinção entre atos praticados em ambientes físicos ou virtuais. O Código Penal Brasileiro, por exemplo, prevê a punição para delitos como a incitação ao crime (Art. 286), associação criminosa (Art. 288), entre outros, sem especificar o meio pelo qual essas condutas devem ocorrer. Isso significa que a incitação a atividades ilícitas em grupos de WhatsApp pode, sim, configurar crime, sujeitando seus autores às penas previstas em lei.

A persistência da ideia de que o universo virtual é regido por regras específicas de impunidade reflete um desconhecimento sobre como as leis se aplicam no ciberespaço. Essa visão dualista ignora o fato de que a internet e suas plataformas de comunicação são extensões do nosso mundo físico, servindo como espaço para interações sociais, comerciais e, infelizmente, também criminosas. A justiça brasileira vem, progressivamente, reconhecendo a equivalência entre os mundos físico e virtual, aplicando as mesmas normas jurídicas e princípios éticos em ambos os contextos.

É imperativo que os usuários de plataformas digitais, especialmente aqueles envolvidos em grupos de comunicação, estejam cientes de que suas ações no ambiente virtual têm repercussões reais e podem ser objeto de escrutínio legal. O anonimato percebido e a sensação de distanciamento físico não eximem os indivíduos de responsabilidade. Ao contrário, a facilidade de disseminação e a permanência das informações digitais podem ampliar o impacto de condutas ilícitas.

Portanto, é crucial que a sociedade, as autoridades e os operadores do direito trabalhem juntos para promover uma compreensão mais profunda sobre a integração entre o virtual e o real, reforçando que o ciberespaço é, de fato, uma extensão do espaço público, regido pelas mesmas leis e princípios éticos que orientam nossa convivência em sociedade. Somente assim poderemos garantir a segurança jurídica e a ordem democrática no século XXI, assegurando que o avanço tecnológico sirva ao bem-estar coletivo e à justiça, e não ao contrário.

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1 A tradução de "accountability" para o português é "responsabilidade". No contexto de gestão, governança e direito, "accountability" vai além da simples responsabilidade, englobando também a obrigação de prestar contas, ser transparente e responder por suas ações perante os interessados ou autoridades competentes. Principalmente aquele que está investido em um cargo público de destaque, esta responsabilidade é ainda maior.


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Colunistas

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos é advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Foi convidado pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões para discutir temas ligados ao Direito e à Tecnologia. Também atua como professor e coordenador do programa de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) da Escola Superior de Advocacia Nacional do Conselho Federal é o órgão máximo na estrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Foi fundador e presidente da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB/SP (2005-2018). Atuou como Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (2005-2021) e fundou a Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP em 2014. Na área de arbitragem, é membro da Câmara Empresarial de Arbitragem da FECOMERCIO, OAB/SP e da Câmara Arbitral Internacional de Paris. Foi membro do Conselho Jurídico da FIESP (2011-2020) e diretor do Departamento Jurídico da mesma entidade (2015-2022). Atualmente desempenha o papel de Diretor Jurídico do DEJUR do CIESP. Foi coordenador do Grupo de Estudos de Direito Digital da FIESP (2015/2020). Foi convidado e atuou como pesquisador junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010, para tratar da segurança física e digital de processos findos. Além disso, ocupou o cargo de Diretor Titular do Centro do Comércio da FECOMERCIO (2011-2017) e foi conselheiro do Conselho de Tecnologia da Informação e Comunicação da FECOMERCIO (2006-2010). Desde 2007, é membro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Atua como professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2007, nos cursos de Direito e Tecnologia, tendo lecionado no curso de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas, IMPACTA Tecnologia e no MBA em Direito Eletrônico da EPD. Ainda coordenou e fundou o Programa de Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance do Ibmec/Damásio. É Mestre em Direito na Sociedade da Informação pela FMU (2007) e Doutor em Direito pela FADISP (2014). Lecionou na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, Academia Nacional de Polícia Federal, Governo do Estado de São Paulo e Congresso Nacional, em eventos em parceria com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, INTERPOL e Conselho da Europa. Como parte de sua atuação internacional, é membro da International High Technology Crime Investigation Association (HTCIA) e integrou o Conselho Científico de Conferências de âmbito mundial (ICCyber), com o apoio e suporte da Diretoria Técnico-Científica do Departamento de Polícia Federal, Federal Bureau of Investigation (FBI/USA), Australian Federal Police (AFP) e Guarda Civil da Espanha. Além disso, foi professor convidado em instituições e empresas de grande porte, como Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), Banco Santander e Microsoft, bem como palestrou em eventos como Fenalaw/FGV.GRC-Meeting, entre outros. Foi professor colaborador da AMCHAM e SUCESU. Em sua atuação junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), apresentou uma coletânea de pareceres colaborativos à ação governamental, alcançando resultados significativos com a publicação de Convênios e Atos COTEPE voltados para a segurança e integração nacional do sistema tributário e tecnológico. Também é autor do primeiro Internet-Book da OAB/SP, que aborda temas de tributação, direito eletrônico e sociedade da informação, e é colunista em Direito Digital, Inovação e Proteção de Dados do Portal Migalhas, entre outros. Em sua atuação prática, destaca-se nas áreas do Direito Digital, Inovação, Proteção de Dados, Tributário e Empresarial, com experiência jurídica desde 1988.

Leila Chevtchuk, eleita por aclamação pelos ministros do TST integrou o Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT. Em 2019 realizou visita técnico científica a INTERPOL em Lyon na França e EUROPOL em 2020 em Haia na Holanda. Desembargadora, desde 2010, foi Diretora da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Pela USP é especialista em transtornos mentais relacionados ao trabalho e em psicologia da saúde ocupacional. Formada em Direito pela USP. Pós-graduada pela Universidade de Lisboa, na área de Direito do Trabalho. Mestre em Relações do Trabalho pela PUC e doutorado na Universidade Autôno de Lisboa.