De modo recorrente, decisões do STF têm encontrado reações no Congresso Nacional.
Um dos episódios mais marcantes destas reações envolve o tema do controle de constitucionalidade das emendas parlamentares.
O assunto veio à tona quando o STF, por unanimidade, em correta decisão, referendou a medida cautelar proferida pelo Min. Flávio Dino1, suspendendo o emprego de diversos tipos de emendas parlamentares, até que o Congresso Nacional estabeleça regras que garantam transparência na transferência dos recursos2.
A decisão foi considerada, por diferentes lideranças políticas, intromissão indevida do tribunal na atividade política, em capítulo que representou acirramento da tensão entre os poderes3.
Para arrefecer os ânimos, os Ministros do STF reuniram-se com os presidentes do Senado e da Câmara, Procurador-Geral da República, dentre outras autoridades. Anunciou-se que neste encontro foram acordados limites para edição das emendas parlamentares, com base em critérios de transparência, rastreabilidade e correção4.
Foi divulgada nota conjunta sobre o resultado do encontro5, destacando a obtenção de consensos acerca de pontos específicos, em particular no que tange à necessidade de rastreabilidade e transparência das emendas.
A nota sugere que os chefes das Casas Legislativas, vale dizer, políticos, concordam em deixar claro quem indica e para onde vai o dinheiro, além de permitir a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União6.
Se considerarmos o que vem sendo praticado nos últimos anos em termos de falta de transparência no uso das emendas, inclusive de forma crescente, não há exagero em dizer que a nota beira a ingenuidade.
Há um ceticismo, por parte da sociedade, quanto às reais intenções do Congresso para assegurar transparência no trato destas verbas públicas, considerando que, até então, ela não estava em seu radar.
A forma como o Congresso Nacional vem, nos últimos tempos, se apropriando de parcela significativa do orçamento público – praticamente a metade7 –, representa distorção inaceitável dentro de um sistema de governo que se diz presidencialista.
As emendas parlamentares, em sua sistemática atual, comprometem o fundamento da boa governança.
Destinam-se a fortalecer o poder de quem exerce mandato eletivo, criando perniciosa relação de dependência entre benfeitores e favorecidos, em prejuízo do pacto federativo e dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Do ponto de vista da igualdade de chances no processo eleitoral constituem verdadeira deturpação, pois geram inegáveis distorções na livre competição democrática. O motivo é manifesto: em sua maioria, emendas parlamentares têm por finalidade irrigar currais eleitorais dos parlamentares.
Como um candidato que não exerce mandato eletivo concorrerá com aqueles que, pelo poder da caneta, têm a prerrogativa de abastecer seus redutos eleitorais com verbas vultuosas, desprovidas de controle e transparência?
Do ponto de vista da eficiência, a sistemática das emendas parlamentares representa atitude avessa ao planejamento. Isso porque o seu direcionamento está muito mais ligado a interesses clientelistas, do que em relação às reais prioridades da coletividade, o que mantém um padrão de investimentos arbitrários, opostos à racionalidade.
O argumento de que por meio deste expediente se atingem bons resultados, pelo fato de que os parlamentares conheceriam melhor as necessidades locais, esconde a tendência à inaptidão dos investimentos, já que se consumam por meio de preferências pessoais, em detrimento de estudos técnicos de planejamento e gestão pública.
Da mesma forma que o argumento de que o legislativo é o autor da peça orçamentária. Alocar, por meio da lei, uma quantidade de recursos para cada finalidade é bem diferente de definir o emprego das verbas públicas em situações concretas.
Sob a ótica da moralidade e da publicidade, o quadro se agrava quando o uso dessas emendas é desprovido de transparência e de rastreabilidade, o que inviabiliza, por completo, a fiscalização pelos órgãos competentes. Elas catalisam a corrupção, violando a legalidade.
De fato, o modo como as emendas parlamentares vêm sendo executadas no Brasil constitui mecanismo de verdadeira malversação do orçamento público.
São distorções em cima de distorções.
Chega-se ao ápice com as chamadas “emendas pix”, por meio das quais parlamentares podem transferir quantias diretamente para o caixa de prefeituras e governos estaduais, independentemente de critérios minimamente técnicos, no que tange à pertinência dos investimentos.
O bom método do emprego do orçamento envolve, necessariamente, benefícios à coletividade por meio do financiamento de políticas públicas eficazes, rigor fiscal e auditabilidade.
Não se pode admitir que o Congresso se aproprie de parcela significativa do orçamento, de modo a drenar a capacidade dos ministérios de, por meio de seu corpo técnico, formularem planos estratégicos de investimentos nas prioridades nacionais.
Distorções que, em diferentes graus, reproduzem-se em várias espécies e emendas parlamentares.
Delimitado o quadro disfuncional, o ponto da análise centra-se na busca de diálogos institucionais.
Há quem diga que o STF não deveria submeter-se a diálogos com lideranças políticas, inclusive no tema em questão.
Em verdade, não há nada de errado em dialogar. O diálogo é da essência da democracia.
Reuniões institucionais não representam, por si só, violação aos princípios constitucionais. Pelo contrário, podem servir de sustentáculo para a sua observância.
O problema não reside na possibilidade de diálogo entre os poderes, mas sim no tipo de concessão que cada poder está disposto a fazer, de acordo com a sua agenda de interesses.
É evidente que os interesses políticos são muito mais amplos que os jurídicos. Do lado do STF, o interesse deveria ser um só: o irrestrito cumprimento da Constituição. Tudo que perpassar este limite, corre o risco de ser enquadrado como conduta antirrepublicana e, portanto, inconstitucional.
De modo geral, a constitucionalização excessiva do direito leva ao engessamento da política, o que, em casos extremos, acarreta prejuízos à democracia8.
Neste sentido, um espaço de tolerância se impõe. A questão é a sua extensão.
No tema da intervenção do STF na sistemática das emendas parlamentares não parece ter havido excessos. Esses vêm ocorrendo, como apontado, por parte do Legislativo.
Como base jurídica da coletividade, a Constituição exige o cumprimento de princípios diretivos aptos a orientar o exercício das tarefas estatais, em um cenário de unidade9.
A teoria dos diálogos institucionais parte do pressuposto de que todos os poderes podem convergir e interagir, reciprocamente, a partir de interpretações distintas sobre o modo de realizar e cumprir a Constituição10.
Significa que diálogos entre os poderes podem construir pontes e consensos possíveis sobre o modo de cumprir a Constituição, dentro das peculiaridades de atuação de cada um dos atores envolvidos.
O que não se pode admitir é que os diálogos sejam instrumentalizados pela lógica da retaliação, que é o que está acontecendo.
O Congresso, visando a retomar o controle do emprego das emendas parlamentares, ameaça, sem constrangimento, desengavetar propostas de alteração da Constituição que restringem poderes do STF11, concordando em recuar caso seus pleitos sejam atendidos pelo tribunal12.
Não se pode, igualmente, admitir que o STF ceda à pressão, como forma de manter suas prerrogativas.
Por meio dos diálogos institucionais, o Judiciário deve compartilhar com o Legislativo e o Executivo os valores políticos delineados pela Constituição, de modo a resolver os conflitos e proteger a integridade e a própria eficácia do processo político13.
Uma espécie de busca de boas respostas para dilemas coletivos14.
Entristece admitir que o cumprimento da Constituição pode ser colocado de lado por força do apego ao poder.
Entristece, ainda, constatar que más medidas podem ser tomadas pela pura lógica da retaliação, assim como boas medidas, pela lógica da barganha, sejam colocadas de lado para manter privilégios marcados pela disfuncionalidade.
Há um longo percurso a ser completado na busca da racionalidade e da depuração das instituições políticas e jurídicas.
Fortalecer as instituições por meio de correções pontuais é o principal caminho, dentro dos marcos da Constituição.
De resto, rumamos para o caos.
Que os bons diálogos institucionais afastem os maus.
__________
1 ADIs 7.688, 7.695 e 7.697 e ADPF 854.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 GRIMM, Dieter. Constitutionalism: past, present & future. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 308.
9 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999. Rnd. 114.
10 FISHER, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton: Princeton University Press, 1988. p. 03.
11 Disponível aqui.
12 Disponível aqui.
13 FISHER, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton: Princeton University Press, 1988. p. 246ss.
14 MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 31.