Dinâmica Constitucional

A seletividade que aduba a violência política

A democracia está ameaçada pela crescente violência política e pelo discurso de ódio, exacerbados por polarizações e pela seletividade na aplicação da justiça e na política.

26/7/2024

Afirma-se, volta e meia, que a democracia, ao menos nos moldes que conhecemos, está ameaçada.

O atentado contra o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, traz à tona este debate, que no Brasil já estava em curso por ocasião episódio da facada desferida contra o ex-presidente Bolsonaro, em conjunto com outros episódios lamentáveis, em vários países.

É inegável que a violência política tem crescido, inclusive no Brasil. Há que se nutrir esforços para erradicar esta prática. Para tanto, é necessário compreender os motivos pelos quais ela se dissemina.

Um dos principais, que me atenho nesta oportunidade, diz respeito ao combate à seletividade.

Não há como se conceber a democracia apenas sob a perspectiva dos pontos de vista que consideramos melhores ou mais acertados. Nenhuma democracia vive sem pluralismo de ideias e de concepções.

Não se deve pressupor que uma só pessoa ou grupo podem ser qualificados para governar por méritos de sua sabedoria e virtude, superiores aos demais.1

Quando se espalha a ideia de que a democracia só é possível pela ação de um dos grupos políticos que se envolve nos duros debates, abrem-se as portas para um ambiente de discursos de ódio e violência.

O problema é que nos últimos tempos gerou-se uma cultura, em grande parte impulsionada pelo fenômeno das redes sociais, em torno de narrativas diversas que visam a desconstituir adversários políticos ou ideologias das quais se discorda.

Não precisa muito esforço para uma narrativa qualquer se converter em discurso de ódio. Basta que seja defendida e replicada de forma acrítica, para se tornar um vetor de intolerância.

Uma das maiores preocupações que advêm do discurso de ódio, além das violações aos direitos fundamentais e à intangibilidade da dignidade humana, centra-se na necessidade de preservação da dimensão democrática.

É aí que surge o problema, que deveria servir de alerta a todos que, de fato, prezam pela democracia: Percebe-se uma grande seletividade no modo como as instituições jurídicas e os partidos políticos tratam estas narrativas.

Com isto quero dizer que não existe “ódio do bem”. Discurso de ódio é discurso de ódio! Pouco importa o lado do qual se origina.

No embate entre pseudogrupos progressistas e conservadores a prática do ódio seletivo é comum.

Entre nós é fácil perceber que os dois grupos que demarcam com maior intensidade o antagonismo político – salvo nas posturas clientelistas que beneficiam a ambos, perante as quais a união e o amor florescem –, têm opiniões perigosamente insultuosas, um em relação ao outro.

Nesta disputa fratricida pouco importa o que é dito. Se vem do lado que pertenço, está correto ou no máximo constitui excesso de retórica, gafe ou deslize. Mas se for do outro, torna-se digno da mais alta reprovação, inclusive criminal. O banimento se impõe.

Diante de muitas barbaridades que se projetam na vida pública e nas ditaduras ao redor do mundo, é fácil perceber o silêncio obsequioso de diferentes grupos, a depender de quem são os aliados de plantão. A justificativa seria a manutenção da causa maior, seja qual for.

Esta conduta omissiva prova que, em muitos casos, a causa não vale nada, o que está em jogo é a desconstituição do adversário e o acesso ou a manutenção permanente no poder.

Ou seja: O discurso assediador pode vir disfarçado de expressão política, que em nada contribui para o debate democrático.2

A defesa dos direitos fundamentais e do regime democrático tem que ser universal. Todos, sem exceção, têm que respeitar os fundamentos da República, esculpidos no art. 1.º da Constituição Federal, dentre os quais o pluralismo político faz parte.

A democracia guarda espaço para um amplo leque de concepções, desde que alinhadas às molduras básicas da ordem constitucional. Dentro destas molduras, vários pontos de vista, ainda que ruins, podem ser defendidos, é do jogo.

Cabe ao discurso racional, por meio de argumentos, desconstituir as más soluções.

Não se pode excluir do debate uma concepção, apenas porque frontalmente discordamos do seu teor. Não sendo o caso da defesa de posições que, claramente, constituem crimes, impõe-se a tolerância, ainda que isto nos cause desconforto.

Esta deve ser a natureza da democracia, pois é dura e barulhenta e nem sempre é capaz de fornecer as melhores soluções.

Em uma verdadeira democracia, até mesmo os idiotas têm vez, desde que não sejam autores de crimes e não fomentem práticas anticonstitucionais.

Convém lembrar que a definição do que constitui, ou não, crime, também não pode ser seletiva.

O problema surge quando ativistas dos bons costumes ou das boas pautas se convertem em guardiões do discurso alheio, espécie de destemidos paladinos do bem ou da moralidade, sem dedicar o mesmo zelo aos seus próprios discursos ou à conduta dos seus correligionários.

A técnica é a rotulagem, que leva ao chamado “cancelamento”, uma espécie de demonização digital. Comuns são os rótulos de comunista, nazista, fascista, ladrão, esquerdopata, genocida, extremo, ultra e por aí vai.

A tolerância seletiva a discursos de ódio que negam o pluralismo é a porta de entrada para a violência política, mediante a corrosão do fórum público.

Há que se perceber que o livre mercado de ideias – e isto não mudou a partir da concepção original inspirada em John Stuart Mill, no clássico On Liberty3 - exige um ambiente de segurança, tanto em relação ao que pode ou não ser dito quanto em relação aos meios e critérios disponíveis para contenção dos excessos.

O espaço de debate carece de segurança, na forma de um autêntico bem público, que não pode ser corroído pela postura omissiva dos órgãos de controle.

Admitir discurso de ódio por parte de determinados grupos, apenas porque se afirmam como solução mais conveniente em relação às que são disponibilizadas na arena política, acaba por minar este espaço público, em particular o de deliberação democrática.

O resultado é que cada vez se torna mais difícil e menos natural manter um espaço de tolerância, em um ambiente seguro de debate.4

Um dos princípios que as instituições políticas devem observar para o pleno exercício da democracia é a defesa das fontes de informações diversificadas5, o que no mundo atual não pode prescindir de medidas aptas ao combate à desinformação e ao discurso de ódio.

Assegurar um ambiente minimamente hígido de confronto de ideias é condição para que se construa uma cultura de transição entre grupos e decisões políticas, a partir da qual a maioria obtém legitimação democrática.6

Eis a conclusão: Há que se edificar um consenso mínimo no sentido de que o discurso de ódio transcende as paixões políticas, pois pode se manifestar de qualquer lado, mesmo em defesa das melhores causas.

Ao defender o indefensável, catalisa-se a violência política, como ondas que reverberam por todos os espaços.

Tolerar o ódio é legitimar a violência, que hoje pode atingir apenas quem discordamos ou desprezamos, mas que, mais cedo mais tarde, tende, como a troca de ventos, a se voltar contra nós mesmos.

Os clássicos advertiram que sempre deverá existir um método constitucional capaz de dar eficácia aos dispositivos constitucionais.7

Sobretudo em anos eleitorais, às autoridades jurídicas cabe uma postura de absoluta rejeição à seletividade, punindo toda a sorte de manifestações que se enquadrem em discursos de ódio ou prática deliberada de desinformação, sob pena de, ao seu modo, também contribuírem para um ambiente de violência política.

A causa jamais poderá se sobrepor à defesa intransigente dos direitos fundamentais, da dignidade humana e do princípio democrático.

A violência política é, sim, potencializada pela seletividade no seu combate.

Se não estivermos à altura deste desafio de romper a seletividade, a história se encarrega de nos trazer inúmeros exemplos sobre a direção que os rumos acabam tomando.

___________

1 DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Trad. de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 245.

2 TSESIS, Alexander. Dignity and speech: the regulation of hate speech in a democracy, Wake Forest Law Review, v. 44, 2009, p. 505s

MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario: Batoche Books, 2001. p. 50ss.

4 WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard, 2012. p. 4.

5 DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília, DF: Editora UnB, 2001. p. 99s.

6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999. Rnd. 143

7 HAMILTON, Alexander. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers, n.º LXXX. From the New York Packet, December 4, 1787. Disponível aqui.

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Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque