Não existe Rio Grande do Sul sem o Brasil, assim como não existe Brasil sem o Rio Grande do Sul.
Esta é uma forma válida de compreender o federalismo.
O Brasil é uma República federativa, marcada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (art. 1.º CF).
Esta união indissolúvel não deve ser marcada apenas pela característica física, frente à impossibilidade do direito de secessão, cláusula pétrea da Constituição.
Mais do que isto, implica manutenção da unidade em igualdade mínima de condições de vida, em particular no tema do direito dos desastres, ordem do dia.
As enchentes do ano de 2024 que devastaram grande parte do território do Rio Grande do Sul despertam para a necessidade de fortalecimento do pacto federativo, sob a perspectiva da cooperação.
Como toda criação humana, a organização federativa visa ao aperfeiçoamento de situações pré-existentes. Não é uma construção estanque, mas um mecanismo em constante aprimoramento.
A característica chave de uma federação é a descentralização territorial do poder político e administrativo ou, em outras palavras, a divisão espacial do poder.
Esta divisão remete ao que se pode chamar de lição da experiência, tendo demonstrado suas virtudes inicialmente na prática política, antes de ser adotada pelo constitucionalismo, como um meio de limitação do poder.1
Como toda configuração institucional, o federalismo experimentou um longo caminho evolutivo. Seu ápice reside na vertente cooperativa, focada no princípio da subsidiariedade2.
O federalismo cooperativo visa a atingir o máximo em eficiência, partindo do pressuposto de que a ação conjunta e coordenada leva a resultados melhores, em relação aos que são obtidos a partir de um cenário de rivalidade e competição entre os entes federados.
Parte do pressuposto de que devem existir, na busca da eficiência e racionalidade, permanentes contatos entre os entes central e parciais3.
O federalismo cooperativo caracteriza-se pela adoção de diversos instrumentos de colaboração e de coordenação entre os entes federados. Os mais evidentes são os mecanismos de inter-relação competencial, de coordenação, de auxílio e de cooperação.
Estes são os mecanismos que devem se fazer presentes em um modelo de prevenção dos desastres naturais e de reconstrução das cidades devastadas.
Em comum, todos têm a característica de serem capazes de produzir resultados cooperativos, no sentido de conciliar o exercício dos diversos poderes das partes e de suas ações conjuntas4.
A Constituição Federal de 1988, embora não tenha adotado, expressamente, um modelo de federalismo cooperativo, possui traços inequívocos de que abre o caminho para a experiência.
Dentre outras passagens, cita-se a que se refere às competências administrativas comuns dos entes federados, quando afirma que “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (art. 23, parágrafo único).
Em construção semelhante, a Constituição prega que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos” (art. 241).
É neste sentido que se deve interpretar a competência privativa da União para “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (art. 21, XVIII).
O dever de auxílio imediato e eficaz da União aos entes atingidos pelas calamidades naturais é inerente à ordem constitucional e ao pacto federativo.
Não há como construir um sistema eficaz de prevenção de catástrofes naturais – o que, decerto, faltou ao Estado do RS – se não se verificar uma atuação conjunta dos entes da federação, balizada por critérios técnicos aptos a colocar de lado preferências partidárias e ideológicas.
Este é o maior desafio institucional que iremos enfrentar.
O cenário de emergência climática que assola o mundo contribui, significativamente, para o agravamento do problema. Preservar o meio ambiente é uma tarefa permanente, que não pode mais ser colocada de lado.
Paralelamente, a adoção de medidas eficazes estruturais e não estruturais de proteção é fundamental.
As primeiras, de característica estrutural, compreendem o conjunto de obras projetadas pela engenharia, com base em estudos técnicos, aptas a fazer frente, na maior medida possível, às forças da natureza.
As segundas, de natureza não estrutural, dizem respeito às ações e políticas públicas, inclusive de caráter normativo, voltadas à prevenção e à redução dos danos. Englobam medidas de planejamento e gerenciamento do uso do solo, formulação de planos diretores, programas de educação ambiental e estratégias de defesa civil.
É neste âmbito que o direito e a política assumem papel decisivo, bem como a ação dos órgãos de controle.
A partir daí, é fácil perceber que a ação deve começar no próprio município, lugar em que as tragédias, de fato, ocorrem. É justamente nos Municípios que costumam se verificar as maiores omissões e equívocos no planejamento urbano.
Estamos a falar sobre a máxima expressão do princípio da subsidiariedade na federação.
Muito mais do que uma nomenclatura, representa a ideia de que o gestor que está mais próximo da realidade tem, em princípio, melhores condições – e obrigação – de identificar os problemas e propor as devidas soluções.
O sentido do princípio da subsidiariedade informa que a responsabilidade e o poder de decisão recaem, na federação, sobre a menor comunidade social, que deveria estar melhor capacitada para a solução dos problemas que lhe são submetidos. Algo, ainda, bem longe da realidade brasileira.
Seu foco é a distribuição e a tomada de deveres e responsabilidades frente às tarefas colocadas pela Constituição aos entes federados5.
As decisões legislativas ou administrativas devem ser tomadas no nível político mais baixo possível, ou seja, pelas instâncias que estão mais próximas das decisões que são definidas, efetuadas e executadas6.
O princípio da subsidiariedade funciona, portanto, como critério de delimitação das tarefas estatais.
Estas considerações já permitem abordar o grande problema que engessa a federação brasileira: a excessiva concentração de recursos financeiros nas mãos do ente central (União), que coloca grande parte dos Municípios na condição de entes subalternos, fragilizados.
Não basta o gestor municipal estar ciente das medidas que deva tomar, se não dispõe de recursos financeiros para a sua implementação.
Por outro lado, há um problema que não pode mais ser desconsiderado, objeto, inclusive, de reflexão já feita neste espaço: a inflação municipalista7.
Não há como negar que existem muitos Municípios no país que não dispõem, a rigor, de condições financeiras de se autossustentar. Refiro-me àqueles que praticamente consomem tudo que arrecadam na manutenção da máquina pública.
De nada adianta ser município, ente autônomo da federação, se não for capaz de reunir um conjunto de recursos aptos a cumprir as suas obrigações constitucionais. O tema da incorporação e fusão de Municípios nesta situação tem que voltar ao debate nacional.
O mesmo se diga quando nos pequenos Municípios não se faz presente um corpo técnico apto a planejar com eficiência o conjunto das medidas antes referidas.
É aí que se insere o tema do federalismo cooperativo em sua essência. O ente maior deve auxiliar o menor, seja pela transferência de recursos de forma ágil, desburocratizada e fiscalizada, seja pela disponibilização de assessoria técnica permanente.
Isto vale na relação entre todos os entes da federação: a União auxilia os Estados e Municípios, assim como os Estados auxiliam os seus Municípios.
Em uma lógica mais evoluída de federalismo cooperativo, há que se incentivar que até mesmo Estados e Municípios prestem auxílios em favor de outros, ainda que localizados em diferentes regiões do país.
Em suma, o princípio da subsidiariedade, que deve guiar a federação, está fortemente ligado à função de integração, como garantia de preservação do próprio Estado federal8.
Como conclusão, a única forma de se proteger eficazmente contra as emergências climáticas é por meio da federação, por atitudes preventivas e estratégias de reconstrução.
Quando mais a União cruzar os braços e mais um Estado-membro acreditar que o problema não é dele, mais estaremos próximos do fracasso de um projeto de nação.
__________
*Esta reflexão ocorre no curso da condução de um projeto de pesquisa institucional, financiado pela CAPES, intitulado "A promoção de medidas não-estruturais de prevenção das vulnerabilidades dos Municípios da região hidrográfica da bacia do Guaíba com áreas suscetíveis de inundações", financiado pelo Edital Emergencial II – n° 28/2022 (CAPES), relacionado ao Programa Emergencial de Prevenção e Enfrentamento de Desastres Relacionados a Emergências Climáticas, Eventos Extremos e Acidentes Ambientais, denominado de "vulnerabilidade social e direitos humanos".
1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 273.
2 ŠARCEVIC, Edin. Das Bundesstaatsprinzip. Eine staatsrechtliche Untersuchung zur Dogmatik der Bundesstaatlichkeit des Grundgesetzes. Tübingen: Mohr, 2000, p. 172ss.
3 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 426.
4 ROVIRA, Enoch Alberti. Federalismo y Cooperacion en la Republica Federal Alemana. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986, p. 461.
5 Isensee, Josef. Subsidiaritätsprinzip und Verfassungsrecht. Eine Studie über das Regulativ des Verhältnisses von Staat und Gesellschaft. 2. Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 2001, p. 378.
6 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 92.
7 Disponível aqui.
8 OETER, Stefan. Integration und Subsidiarität im deutschen Bundesstaatsrecht. Untersuchungen zur Bundesstaatstheorie unter dem Grundgesetz. Tübingen: Mohr, 1998, p. 566ss.