Eleger as verdadeiras prioridades é uma das características que colocam líderes na condição de estadistas. Algo raro no Brasil, o que ajuda a explicar os motivos pelos quais as crises insistem em nos abraçar.
A reforma do pacto federativo é uma destas prioridades. Na agenda política, segue em um plano distante.
Em verdade, desde os primórdios da República o Brasil não respirou o verdadeiro espírito federativo.
Quando a Constituição Republicana de 1891 foi promulgada se importaram – ainda que aos pedaços – diversos institutos do sistema norte-americano, como a forma e o sistema de governo.
Foi, de fato, na forma de Estado – Federação – que mais nos afastamos da então referência estadunidense.
Tivemos como referência o país que mais pratica o ideal de descentralização territorial do poder político e administrativo, mas ao colocarmos em prática, fizemos tudo ao contrário.
Os pais fundadores dos EUA (Founding Fathers), se vivos estivessem, ficariam estarrecidos com a nossa capacidade de distorcer institutos e sistemas.
Colamos ao nome do país o selo de federação, sem praticá-la à contento.
A forma federativa de Estado é uma ideia voltada à eficiência. Parte do pressuposto de que a centralização de poderes e competências dentro de um país é algo contraprodutivo.
O ideal de descentralização territorial do poder afirma-se como o núcleo do pensamento federativo, focado no princípio da subsidiariedade.
Mais do que uma nomenclatura, representa a ideia de que o gestor que está mais próximo da realidade tem, em princípio, melhores condições de identificar os problemas e propor as devidas soluções.
Uma ideia que advém da própria racionalidade, praticada, inclusive, como sinônimo de boa governança em instituições públicas e privadas.
O pacto federativo, em especial o grau de descentralização territorial do poder, deve-se pautar por critérios mínimos de funcionalidade.
Os árduos debates sobre a reforma tributária de 2023, que certamente se prolongarão nos próximos anos, são a prova de que o pacto federativo é matéria cuja importância, entre nós, adquiriu aspecto acessório.
Quando se tem em mente que o cerne de um sistema tributário diz respeito à forma de financiamento dos poderes públicos, surge a questão: como é possível alterar o sistema tributário sem que se discuta, paralelamente, o pacto federativo?
Uma federação na qual um ente passa a depender de outro(s) está fadada ao fracasso.
O mesmo ocorre quando se constrói uma federação às avessas, em que a centralização de poderes do ente central é o traço marcante.
A doutrina especializada há muito alerta: nas últimas décadas forjou-se um sentimento de preocupação quanto à sorte da federação no Brasil, devorada por um centralismo cada vez mais absorvente1.
O próprio STF desenvolveu nas últimas décadas uma jurisprudência que converge para a centralização de poder da União.
Decisões como a que estabelece que leis municipais proibindo a cobrança de estacionamento em shopping centers seriam inconstitucionais, por tratarem de questão típica de direito civil – matéria de competência legislativa privativa da União2, são apenas um exemplo.
Por justiça, deve-se reconhecer que o STF, durante o período da pandemia, proferiu um conjunto de decisões acertadas que fortaleceram o pacto federativo, sobretudo as que retiraram das mãos do governo federal a exclusividade das decisões em matéria de promoção da saúde, típica questão de competência legislativa concorrente3.
Se esta será uma tendência, ou o retorno à jurisprudência do “shopping center”, só o tempo irá dizer.
Por seu turno, a Constituição Federal de 1988, apesar de ter conduzido os Municípios à condição de entes da federação, dotados de autonomia política e administrativa, relegou ao menor dos entes a uma posição frágil na distribuição das fatias que compõem o bolo tributário.
Quando os Municípios ficam com uma diminuta parcela das receitas tributárias globais, o cenário de estabilidade econômica mostra-se adverso.
A Constituição também não se preocupou em condicionar a existência dos Municípios, ou mesmo a criação de novos, ao cumprimento de metas mínimas de viabilidade econômica.
Em suma: o sistema constitucional vigente não colocou os devidos freios à criação de Municípios, tampouco à sua manutenção.
É bem verdade que o Congresso Nacional não cumpriu devidamente o seu papel, já que insiste em não regulamentar o art. 18, § 4.º da Constituição Federal, que trata de pressupostos para a criação de novos Municípios no país.
O próprio STF reconheceu o estado de mora legislativa na matéria, contribuindo para frear aquilo que se poderia denominar de “inflação municipalista”.
Dados atuais mostram a gravidade do problema. Segundo o IBGE, o Brasil possui, atualmente, 5.570 Municípios4.
Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), publicada em agosto de 2023, revelou um dado alarmante: 51% das cidades estão atualmente com as contas no vermelho.
O fato deve-se ao pequeno crescimento da arrecadação e à expansão generalizada do gasto público, em especial das despesas de custeio, que tocam à manutenção da máquina pública5.
A raiz do problema parece residir em dois fatores.
O primeiro é que desde o advento da República Federativa não se desenvolveu no país a cultura da federação. Não é por menos. Como várias outras criações, ela nos foi imposta de cima para baixo, por um canetaço do governo central de então.
O segundo, mais atual, é que a inflação municipalista tem origem em questões típicas da política nacional, de caráter clientelista. Em bom português: interesses políticos.
Antes de se destinar à melhora das condições de vida das pessoas, objetivo constitucional permanente, a criação de novos municípios acaba servindo como trampolim para a consolidação de lideranças políticas locais, com forte influência na máquina pública, que dela se utilizam para fins eleitoreiros.
Recentemente, o protagonismo das emendas parlamentares6, que afasta a racionalidade na administração do orçamento público, torna a expansão municipalista ainda mais atrativa.
A receita é clara. Pouco importa que muitos Municípios se mostrem inviáveis do ponto de vista financeiro.
Deste que sejam atraentes do ponto de vista político, a conta acaba fechando na lógica da consolidação de currais eleitorais que perpetuam o poder de políticos e dos seus familiares.
Urge o aperfeiçoamento do pacto federativo.
A começar pela distribuição mais equilibrada das fatias tributárias entre os entes da federação, passando pela maior descentralização político-administrativa, inclusive em face de competências legislativas e, em particular, pela adoção de critérios mais rígidos para a manutenção de municípios.
A fusão e a incorporação de municípios deficitários deve ser uma prioridade, sob pena de o federalismo brasileiro adquirir elevada disfuncionalidade, já a partir da base.
Se não for assim, corromperemos a própria ideia matriz do federalismo, consolidando o princípio da subsidiariedade às avessas.
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1 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 188.