Uma das partes mais importantes – e mais desrespeitadas – da Constituição Federal diz respeito ao dever de proteção do meio ambiente.
Prevê o art. 225 que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
Dificilmente se poderia pensar em redação melhor.
Aqui temos um típico direito de terceira geração, com fundamento no constitucionalismo solidário. De caráter transindividual, a norma impõe ao poder público e aos particulares um verdadeiro dever de hierarquia constitucional.
Mais do que isto, um dever de natureza intergeracional. A obrigação não se limita a garantir o bem-estar das pessoas que já habitam o planeta, mas, igualmente, das futuras gerações.
A afirmação corrente de que o Brasil é um país respeitador do meio ambiente não passa de uma falácia.
Um exemplo que aponta para esta realidade é a inadequação dos planos diretores da imensa maioria dos municípios brasileiros, além das falhas estruturais que minam a atuação efetiva dos órgãos competentes.
As enchentes que devastaram regiões do sul do Brasil, em setembro de 2023, são apenas um dos indícios dos efeitos causados pelas mudanças climáticas, aliadas a uma cultura de omissões e desmandos de todos os tipos.
Os terríveis impactos gerados por eventos catastróficos da natureza deveriam levar as autoridades e a sociedade a refletir sobre os rumos de uma vida com segurança.
Não é o que costuma ocorrer. As tragédias se repetem, mudam apenas os lugares e as vítimas.
Fruto de uma cultura de indiferença, de omissão das autoridades e de uma ilusão quanto a uma falsa zona de conforto.
Os desastres naturais conectam-se a um duplo quadro de vulnerabilidades. O primeiro, físico, decorre de fenômenos climáticos; o segundo, de ordem social, da falência de políticas públicas1.
Resta evidente que as vulnerabilidades físicas são potencializadas pelas vulnerabilidades sociais. Uma retroalimenta a outra.
Quanto mais intensa for a desigualdade social, maior será a tendência a ocupações irregulares e à urbanização desordenada, que geram um processo crescente - por vezes irreversível - de degradação ambiental, catalisador de desastres naturais de diferentes proporções.
Aqui se insere a chamada era do "direito dos desastres".2 Uma disciplina que busca verificar em que medida o sistema jurídico possui mecanismos para lidar com os desafios e consequências geradas pelos desastres ambientais gerados pela ação e omissão humanas.
Atribui-se ao direito a função de fornecer um hígido ambiente regulatório de natureza preventiva e repressiva. Uma perspectiva de aproximação do aspecto jurídico com a dinâmica da política, a partir da formulação de standards mínimos de regulação.
As decisões que se baseiam em medidas preventivas acabam por se revestir de inegável natureza política, considerando realidades orçamentárias e de percepção de prioridades locais e regionais distintas, dentro da ótica transfederativa.
Focado no princípio da subsidiariedade, núcleo da federação, a solução dos problemas começa pelas ações locais.
As catástrofes naturais que decorrem da falta de cuidado com o meio ambiente proporcionam a violação de direitos fundamentais básicos de um elevado grupo de pessoas.
Decorrem da omissão prolongada das autoridades, da falência e da inadequação das políticas públicas vigentes.
Não é exagerado falar que vivemos em uma espécie de estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental.
Maurice Blanchot, quando escreveu a obra "A escrita do desastre" (The Writing of the Disaster), no ano de 1986, já profetizava que pensar nos desastres ambientais, com a dúvida se irão ou não ocorrer, equivaleria a não ter mais nenhum futuro para se pensar nisto.3
Há que ser dar um basta nas omissões, sobretudo em face da atuação preventiva e repressiva por parte dos poderes públicos.
A realidade de grande parte dos municípios brasileiros aponta para um conjunto capilarizado de más decisões sobre a ocupação do solo. Regulações ineficazes. Políticos desconectados do interesse público.
A isto se soma a inaceitável omissão das autoridades judiciais para combater a elaboração de planos diretores absolutamente desconectados de questões urbanísticas e ambientais elementares.
Um cenário favorável às vulnerabilidades que culminam em desastres ambientais.
Os esforços fiscalizatórios são inegáveis instrumentos preventivos, pois agem em momento anterior à ocorrência de catástrofes. Infelizmente, uma realidade distante da maioria dos municípios brasileiros.
Lamentável é a constatação de que este déficit não decorre apenas de carências estruturais. A fiscalização e o planejamento adequados também costumam esbarrar no poder econômico, que influenciando os núcleos de poder, blinda construções irregulares ou faz adaptar as normas às demandas corporativas.
Basta observar o modo como tem ocorrido o parcelamento do solo nas cidades litorâneas brasileiras, um dos tantos exemplos de má gestão.
Fica cada vez mais evidente, dentro da lógica exposta por Rousseau na célebre carta a Voltaire, em 1756, ocasião em que debatiam as causas do terremoto e da enchente que destruíram Lisboa, em 1755, que as catástrofes não decorrem exclusivamente das forças da natureza, mas sim da própria sociedade.
A lógica de Rousseau se aplica como uma luva aos dias atuais: não se deve tornar a natureza ou Deus responsáveis pelos males sofridos pelos homens. Eles os infligem a si próprios.4
Tudo na lógica da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos.
Vale dizer: em matéria de danos ao meio ambiente os homens criam seus próprios infortúnios e a eles cabe evitá-los.
__________
1 FARBER, Daniel A.; CARVALHO, Délton Winter de. (Orgs.) Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. 2 ed. Curitiba: Appris, 2018, p. 73.
2 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
3 BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. Lincoln: University of Nebraska: Press, 1986, p. 2.