É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos de grande envergadura, que incluem a proteção da vida e contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A previsão consta, expressamente, no art. 227 da Constituição Federal.
Fosse este direito respeitado, seria difícil encontrar outro lugar melhor para viver, considerando a beleza da sua construção.
Infelizmente, como costuma ocorrer com outras normas constitucionais relevantes, a proteção das crianças e adolescentes trava na falência de políticas públicas, na eleição de outras prioridades e na omissão reiterada das autoridades.
A onda de violência praticada em creches e escolas pelo país deveria servir de alerta para repensarmos muitas coisas. A começar pelo respeito à Constituição.
Em nenhuma outra passagem o texto constitucional emprega a expressão “absoluta prioridade”. Somente o faz, quando se ocupa da proteção deste grupo vulnerável: crianças, adolescentes e jovens.
Isto tem enorme significado para a definição e correção das políticas públicas, bem como para a responsabilização dos que negligenciam tal dever.
Ela não pode ser interpretada como mero conselho ou intenção. Trata-se de comando imperativo, apto a gerar consequências.
Significa que, ao menos sob o prisma constitucional, o agir dos poderes públicos deve convergir, em primeiro lugar, para a proteção deste grupo.
Os crimes que vêm ocorrendo nas escolas brasileiras atestam, infelizmente, que a absoluta prioridade não passa de uma folha de papel, no sentido de uma autêntica concepção sociológica de Constituição, que cede aos fatores reais de poder na sociedade1.
Há que se mudar, imediatamente, o quadro.
Não há como manter o marco civilizatório às margens da Constituição. Ignorar o pacto constitucional implica se afastar do porto seguro, onde a instituição e o exercício do poder são regulamentados e contidos2.
Estamos diante de um, dentre vários exemplos, de negligência de um dever de proteção estatal de máxima hierarquia.
Um dos recortes que o tema permite diz respeito à necessidade de regulamentar as redes sociais, de forma a prevenir violência nas escolas.
Poucos temas são tão complexos, do ponto de vista dos limites à liberdade de ação geral, como os que dizem respeito à liberdade de expressão e às condições de seu exercício.
Não é por menos que situações que envolvem desinformação, controle de redes sociais etc., são objeto de grandes polêmicas, em vários países.
A preciosidade dos bens envolvidos – crianças, adolescentes e jovens – obriga a construção de um sério debate acerca dos limites que devem ser impostos aos territórios virtuais.
Um debate que não pode ser consumido em si mesmo, que deve resultar em ações concretas, de natureza preventiva e repressiva.
Não se ignora que o calor da emoção, após vivenciarmos tragédias como a de Blumenau/SC, costuma ser contraprodutivo na busca de boas soluções. Todavia, ignorar as dificuldades não significa que não existam.
O constitucionalismo liberal ensina que a regra é a liberdade, fruto de grandes lutas ao longo da história recente da humanidade. Esta mesma história ensina que o agir livre, desprovido de controle, transforma-se em risco coletivo, apto a ameaçar a própria liberdade.
Na prática, quanto maior for a relevância dos bens em jogo, tão mais fortes são os argumentos que justificam restrições pontuais às liberdades constitucionalmente asseguradas, como a de expressão e de acesso à informação.
Esta realidade legitima a imposição de uma moderação aos operadores de redes sociais e assemelhados, no sentido de programar seus algoritmos a não transmitirem informações cujo conteúdo possa ser classificado, de forma incontroversa, como criminoso.
Ela passa, igualmente, por um modelo que combine a reserva de jurisdição (quando a remoção de conteúdos ilícitos depende de ordem judicial) com a autorregulação regulada (quando a remoção pode ser solicitada pelos usuários ou realizada de ofício pelos provedores de aplicações em rede)3.
O dever de proteção das crianças, com absoluta prioridade, justifica a adoção de um modelo regulatório no qual manifestações de incitação à violência nas redes sociais, por seu potencial danoso, devem ser removidas, inclusive de ofício, pelas próprias redes sociais4.
A combinação de modelos encontra respaldo no fato de que a proteção das crianças não é apenas um dever do Estado, mas, igualmente, da família e de toda a sociedade.
Em abril de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma portaria para evitar que crimes como o de Blumenau sejam incentivados por postagens em redes sociais5.
Dentre as obrigações está a previsão de instauração de processos administrativos voltados à apuração de responsabilidades por parte dos operadores das redes, no caso de violação do dever de segurança e de cuidado em face de postagens com conteúdos violentos contra comunidades escolares.
Há previsão do dever de divulgação de relatórios de avaliação de riscos sistêmicos sobre propagação de conteúdos ilícitos, além da obrigação de compartilhamento, entre as plataformas e as autoridades policiais, de dados que permitam a identificação do usuário e dos terminais de conexão empregados para a disseminação dos conteúdos ilícitos.
Imposição às plataformas do dever de impedirem a criação de novos perfis a partir de endereços de IP, em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas.
Instituição de um banco de dados de conteúdos ilegais voltados à prevenção.
Previsão de multas às plataformas em caso de descumprimento das obrigações, que além de conterem somas elevadas, podem implicar suspensão administrativa dos serviços das redes sociais no país.
Várias dificuldades se avizinham.
A primeira, de ordem formal, é em que medida um ato administrativo como uma portaria pode prever uma série de obrigações que representam intervenções duras no campo de atuação das redes sociais?
Intervenções significativas na liberdade requerem reservas legais qualificadas. Deste modo, o ideal seria que tais obrigações estivessem previstas na lei, em sentido formal, tema que atrai as dificuldades inerentes à representação política.
Outra é o emprego recorrente, no texto da portaria, de expressões de conteúdo vago e abstrato que, na prática, podem provocar inúmeras dúvidas interpretativas no momento de aplicação do ato normativo, como, por exemplo, "riscos sistêmicos", "extremismo", "efeitos negativos", "apologia", "circunstâncias extraordinárias" etc.6
O tema é polêmico e, certamente, não encontra consensos fáceis. Em assuntos complexos a crítica é sempre a saída mais fácil.
Entretanto, o simples fato de as autoridades não silenciarem a respeito, ainda que se divirja da forma como a solução foi por ora proposta, constitui aspecto digno de elogio.
Pelos riscos que impõem à coletividade, deixar as mídias sociais fora de qualquer regulamentação não mais se mostra como aceitável. Deve-se debater o tipo de regulação, mas a inexistência não é plausível.
Estamos diante de uma nova perspectiva de direito administrativo sancionador, apto a enquadrar os operadores de redes que se abstêm de cumprir o dever constitucional. Um autêntico diálogo das fontes7, que deve unir diferentes âmbitos jurídicos na realização dos valores máximos da ordem constitucional.
Como envolve crianças, cujo afeto e sentimento de proteção deve guiar toda a sociedade, acima das clivagens que separam, há que se fazer um esforço para superar divergências, na busca do bem maior.
Isto é honrar a expressão constitucional de absoluta prioridade. É fazer a diferença.
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1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17ss.
2 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 49.
3 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Alternativas para a remoção de fake News das redes sociais. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake News e regulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 169ss.
4 HARFF, Graziela; DUQUE, Marcelo Schenk; Discurso de ódio: perspectivas do direito comparado. Revista de Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 48, nº 2, jul.-dez. 2020, p. 264ss.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Termo inspirado na doutrina de Erik Jayme e Claudia Lima Marques. Vide, MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 690ss.