A Câmara dos Deputados, em votação na calada da noite, às vésperas do início do recesso de 20221, aprovou um projeto de lei que flexibiliza a Lei das Estatais (lei 13.303/2016)2.
Se convertido em lei, o PL 2.896/20223 facilitará não apenas o aparelhamento político da administração indireta, como, também, a corrupção, contrariando o interesse público.
O estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista foi uma conquista da sociedade brasileira. Aprovado no governo Temer, representou uma espécie de reação aos desdobramentos dos grandes escândalos de corrupção que envolveram, sobretudo, a Petrobrás.
O objetivo da norma foi agregar às estatais regras de governança corporativa, transparência, gestão de riscos e controle interno, visando a proteger o patrimônio público e o dos seus acionistas.
Criou-se, dentre outras medidas, um conjunto rígido de regras voltado a impedir interferências políticas na administração desse tipo de empresas, bem como a redução dos gastos com publicidade.
Com ampla maioria, a Câmara dos Deputados decidiu facilitar a alocação de políticos nas estatais, bem como ampliar seus gastos com publicidade. Um enorme retrocesso, típico daquilo que a política vem proporcionando aos brasileiros nos últimos tempos.
Atualmente, o tema pende de aprovação pelo Senado.
A redação original da Lei das Estatais proíbe a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria das empresas, de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.
A intenção da lei é clara: evitar o aparelhamento político das estatais.
A mudança aprovada pela Câmara dos Deputados fixou o prazo mínimo de desligamento para 30 dias. Ou seja, o prazo que separa a atividade política e a investidura em um alto cargo em estatais foi reduzido de três anos para apenas um mês.
As regras, caso aprovadas pelo Senado, passarão a ser aplicadas, inclusive, para as agências reguladoras.
Na mesma toada, a Câmara dos Deputados aprovou a ampliação dos gastos das estatais com publicidade e a mudança de limites de gastos em ano eleitoral4.
Pelas regras atuais, as despesas das estatais com publicidade não podem ultrapassar, em cada exercício, o limite de 0,5% da receita operacional bruta do exercício anterior.
Este limite, contudo, pode ser ampliado até 2% da receita bruta, por proposta das respectivas diretorias, quando devidamente justificada com base em parâmetros de mercado, sujeita à aprovação dos conselhos de administração.
Com a inovação, o patamar máximo de 2% com despesas com publicidade torna-se padrão, facilitando a sua aprovação.
Tomando-se por base o faturamento das estatais no ano de 2021, R$ 998,8 bilhões, os valores relativos à publicidade que ficariam à disposição dos governos tangenciariam a cifra de R$ 20 bilhões.
Considerando a experiência negativa que os gastos com publicidade oficial proporcionaram na história recente do país, a medida mostra-se, nitidamente, temerária.
Caso a modificação da lei das estatais venha a ser aprovada pelo Senado, estaremos diante de um retrocesso histórico.
Um dos aspectos decisivos para a engenharia constitucional de uma nação passa pela construção de um modelo que prime pela autonomia e imparcialidade da administração pública.5
Mecanismos rígidos de controle e de governança corporativa visam a prevenir a ocorrência de corrupção. O projeto da Câmara dos Deputados vai em direção contrária.
A corrupção é um problema endêmico no Brasil. A forma como as nossas instituições políticas e de governo estão configuradas, favorece a prática de atos contrários aos princípios constitucionais da administração pública.
Falta à classe política nacional, ao menos em sua maioria, a noção de que quanto mais recorrermos a estruturas arcaicas de organização dos poderes públicos, mais nos aproximaremos do colapso.
O problema está nitidamente associado ao sistema presidencialista de governo, aliado ao sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados.
No Brasil, elege-se um Presidente da República que cumula as funções de chefia de Estado, de governo e da própria administração pública federal.
Além da exercer funções que, em seu conjunto, podem se mostrar incompatíveis, o Presidente eleito pelas urnas não possui maioria política no Congresso Nacional, capaz de garantir a governabilidade.
Não há outra saída, se não aderir a um amplo espectro de coalizões, muitas delas de natureza espúria, sob pena de inviabilizar o próprio governo.
O problema é que o apoio político tem um preço alto, que costuma ser pago, dentre outras moedas – a da moda é o orçamento secreto – pelo loteamento de cargos na administração.
É neste ponto que o comando das estatais entra como uma luva na mira dos partidos que pretendem ingressar na base de governo.
Como se não bastasse, pela lógica do sistema de eleição proporcional, os deputados federais ficam praticamente desvinculados de um eleitorado que os possa responsabilizar pelas más escolhas. Não possuímos um sistema distrital de votação, com possibilidade de recall.
O sistema é corruptor.
Uma boa arquitetura institucional livra o país de desmandos.
A autonomia e independência das estatais são instrumentos de grande valor para um Estado democrático de direito.
São elas que contribuem para a indispensável separação entre Estado, governo e administração, sem a qual uma democracia fica impossibilitada de adquirir funcionalidade.
As nocivas interferências da política e das ideologias de plantão, no lugar da boa técnica e da governança, têm minado a administração pública como um todo.
Elas vêm emperrando o desenvolvimento racional e sustentável do país, catalisando a corrupção institucional, que há muito nos asfixia.
Se por um lado governo e administração são dependentes um do outro no aspecto funcional, por outro, o respeito à Constituição exige que a administração atue com autonomia, independência e responsabilidade própria diante das forças políticas.6
A flexibilização da lei das estatais, mais do que um retrocesso histórico, é a prova da falta de conexão de parte expressiva dos nossos representantes políticos com os interesses nacionais.
O caminho é a institucionalidade e não o oportunismo político. É pensar no futuro e não apenas nas conveniências do presente.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 212ss.
6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 536s.