Em uma democracia funcional a alternância de poder deve ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição.
Nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1
O que se tem visto no Brasil, após a proclamação do resultado das eleições presidenciais de 2022, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas.
Pessoas comparecendo à frente de quartéis solicitando intervenção das Forças Armadas, caminhoneiros bloqueando estradas, atos de violência envolvendo manifestantes, discussões sem fim em grupos, são apenas parte dos sintomas de uma sociedade que se deixou contaminar pelo extremismo.
Quando estes tempos de incerteza passarem, deveremos reunir nossos esforços para achar uma resposta, minimamente confiável, à pergunta "onde foi que erramos".
Penso que erramos quando não fomos capazes de configurar um sistema político institucional que oferecesse maior resistência ao populismo.
Erramos, quando as nossas instituições se omitiram no momento em que deveriam ter tomado providências em face de atos deploráveis na história recente da República – cada um poderá eleger os seus – ou quando não souberam manter a necessária autocontenção, desestabilizando o necessário equilíbrio entre os Poderes.
Erramos ao não combater narrativas seletivas, que particularizam negacionismos explícitos. Algo do tipo: tudo o que o meu adversário – que, em verdade, é tratado como inimigo – faz, é errado. Já o que os meus aliados fazem, é pura expressão do exercício legítimo de poder, ancorado pela democracia.
Seguimos errando quando não fomos capazes de entender que o exercício da liberdade requer responsabilidade, e que direitos não são absolutos, em particular a liberdade de expressão, tão potencializada pela revolução do mundo digital.
O modo como as diferentes plataformas e redes de comunicação atuam, em contraposição à responsabilidade jurídica e social que delas se espera, ainda é tema muito incipiente entre nós.
Viver em bolhas de pensamento único nunca foi tão perigoso. O bom debate se esvaiu, o ambiente se tornou tóxico.
A intimidação digital, na forma de desinformação deliberada e discursos de ódio, remove os perfis moderados do bom debate. É muito fácil ser hostilizado à cada manifestação no fórum público virtual.
Os algoritmos empregados pelas plataformas digitais, cujo funcionamento é guardado a sete chaves, tornam o acesso à informação cada vez mais tendencioso e problemático.
Atualmente, no mundo digital não mais importa tanto onde buscamos a informação, mas sim quem decide que tipo de informação receberemos.
Este estado de coisas contribuiu para que o Brasil mergulhasse em um clima social insalubre, em que amizades e relações familiares se esvaem, numa fração de segundos.
Está mais do que na hora de percebermos que grande parte do comportamento irracional deriva de tentativas de manipulação por parte de pessoas que têm como objetivo primordial chegar ou se manter indefinidamente no poder.
Mais do que nunca, verdadeiros estadistas se fazem necessários. É o momento em que todos os poderes públicos devem refletir sobre seus erros, deixando vaidades de lado, adotando a humildade como régua, na busca de pacificação.
Não há mais espaço para incendiar o debate. A hora é de trabalhar institucionalmente.
Isto começa pelo reconhecimento do resultado das eleições e pela noção de que, na ausência de provas minimamente idôneas, inclusive quanto à sua origem e autoria, não há que se falar em fraude.
Nunca ficou tão claro que deslegitimar o jogo eleitoral faz parte de uma estratégia para enfraquecer as instituições e o próprio regime democrático.
Ao Poder Judiciário não cabe morder a isca, caindo na armadilha de responder desproporcionalmente, ao ponto de dar munição àqueles que usam dos instrumentos da democracia para, no fundo, eliminá-la.
Chegou a hora de praticarmos uma democracia defensiva, uma evolução do conceito de democracia militante,2 para protegermos nossas instituições em um ambiente de paz social.
Há que se entender que o recurso aos fins supremos do ordenamento, formulados de modo abstrato e, portanto, passíveis das mais variadas interpretações, não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição.3
Requerer intervenção militar, seja qual nome se dê a tão desvairada hipótese, representa não apenas o desconhecimento mais elementar da ordem constitucional democrática, como também a tentativa de subverter as bases do ordenamento jurídico.4
Toda a correção de rumos, por mais complexa que seja, deve seguir os caminhos regulares, que não passam por qualquer tipo de intervenção armada.
Já passou o momento de percebermos que à chefia de Estado cabe a função de preservação da unidade estatal.
Atualmente, parece que lutamos contra tudo e contra todos. Dentre toda gama de problemas que isso traz, está o fato de não percebermos que no sistema presidencialista de governo a chefia de Estado é exercida em conjunto com a de governo e da administração, atrelada a partidos e ideologias específicos.5
Quando uma única pessoa, em uma democracia, não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional.6
É aqui que entra a importância de um poder moderador, que no sistema presidencialista de governo não se faz presente.
E é aqui, também, que muitas vozes se equivocam ao sustentarem que o art. 142 da Constituição Federal,7 que trata das Forças Armadas, seria a solução para impasses como o que estamos vivendo, por meio de intervenção de natureza militar.
Não cabe às Forças Armadas exercerem função moderadora. À uma, porque força armada não modera, impõe. À duas, pelo fato de estarem submetidas à autoridade do Presidente da República, em relação de hierarquia.
Passou da hora de os estadistas trabalharem para uma reforma institucional que torne a democracia brasileira mais resistente às tentativas de golpe de toda espécie.
Enquanto teorias da conspiração permanecerem no centro do debate, o que interessa, de fato, não é posto em pauta. Este é um dos motivos, diga-se de passagem, para se adubar a todo o tempo estes discursos conspiratórios.
Fica a reflexão trazida por Barack Obama, em um dos seus grandes discursos, quando pontuou aspectos importantes para a estabilidade democrática.8
A democracia é dura, duvidosa, barulhenta e, por certo, nem sempre inspiradora. Às vezes se perde um argumento e até mesmo a eleição. Quem perde a eleição deve fazer reflexões e aprender com seus erros e, quem sabe, voltar mais forte nas próximas eleições.
O que não se pode é colocar em dúvida o processo eleitoral sem argumentos e provas plausíveis.
É por isso que Barack Obama conclui: a presunção de boa-fé do povo, nas suas escolhas, é essencial para uma democracia vibrante e funcional.
Amar a democracia é saber a hora de passar o bastão.
__________
1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189.
2 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss.
3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33.
4 Disponível aqui.
5 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 93ss.
6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535.
7 Art. 142 CF. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
8 Disponível aqui.