Dinâmica Constitucional

O descaso dos eleitores com o Legislativo

A democracia é um regime complexo. O que funciona bem em um lugar, pode não ter o mesmo sucesso em outro.

23/9/2022

A democracia é um regime complexo. O que funciona bem em um lugar, pode não ter o mesmo sucesso em outro.

O êxito de um regime democrático depende de uma série de fatores. Três se destacam.

1. Instituições eficazes e fortalecidas, com uma configuração apta a lidar com as exigências de cada época.

2. Patamares socioeconômicos e culturais adequados, que permitam à população compreender o seu papel na manutenção da democracia.

3. Valores éticos mínimos, que orientem a escolha de bons representantes e mantenham um controle efetivo.

Portanto, a manutenção de uma democracia funcional requer constantes investimentos.

Quando um dos pilares é fortalecido, os demais são impulsionados, em benefício do todo. Quando um vai mal, os outros tendem a ruir.

Por depender simultaneamente de vários elementos, que não são fáceis de serem obtidos, a manutenção da ordem democrática representa um autêntico desafio.

O quadro revela que uma democracia não vive apenas de eleições, ainda que o sufrágio universal, livre e justo seja um dos seus traços mais marcantes.

Pesquisas revelam que a maioria da população mundial está convencida das vantagens da democracia, ao mesmo tempo em que muitos, em diversos países, estão decepcionados não apenas com os representantes eleitos, mas também com o funcionamento do próprio sistema.

Os motivos são claros: problemas na economia, desemprego, ineficácia dos direitos sociais, insegurança, receio do futuro e, logicamente, má administração e corrupção por parte de governos e partidos1.

No Brasil, uma característica que ajuda a desprestigiar a democracia é a atitude, dominante na população, de indiferença frente às escolhas para o Poder Legislativo.

Às vésperas das eleições gerais, fica mais fácil perceber.

A atenção preponderante do eleitor se dirige, quando muito, à figura dos candidatos à presidência da República.

São poucas as pessoas que prestam, igual atenção, aos cargos destinados ao Legislativo.

Quando somos questionados em quem votamos nas eleições passadas para os cargos de deputado e senador, tendemos a não recordar.

Já quando indagados sobre o voto para presidente, a memória costuma estar mais fresca.

O fato de o processo eleitoral direcionar os holofotes para a chefia do Poder Executivo, em particular para figura presidencial, coloca os candidatos ao Congresso Nacional em posição secundária.

A imensa maioria do eleitorado não pesquisa as opções que se apresentam ao Legislativo, deixando para decidir em cima da hora, muitas vezes recorrendo a dicas de que tem o mesmo déficit.

O assunto preponderante nas eleições diz respeito aos candidatos à presidência.

Nós vivemos em uma sociedade que não percebe a importância que os congressistas detêm para o desenvolvimento nacional.

Esta indiferença tem cobrado um preço elevado.

Falta ao povo a noção de que grande parte das reformas que necessitamos, com urgência, são medidas que dependem da vontade dos deputados e senadores.

É o Congresso Nacional que detêm a última palavra em assuntos relevantes para a população, como as reformas política, trabalhista, previdenciária, tributária, administrativa, dentre outras.

A palavra final em matéria orçamentária, decisiva para o êxito dos direitos sociais e das políticas públicas, também cabe ao Legislativo.

A atualização das leis, o enfrentamento de temas sensíveis à nação e o próprio combate à corrupção, que tantos prejuízos gera ao Brasil, passam, igualmente, pelo Congresso.

O próprio sistema de freios e contrapesos, responsável pela atuação segura e equilibrada de todos os poderes públicos, encontra nos representantes eleitos papel primordial.

Apesar disto, costumamos tratar a escolha dos deputados federais e senadores com desprezo. Igual atitude se reproduz nas eleições no âmbito dos estados.

Este cenário se deve a uma série de fatores.

Inicia na escolha por um sistema presidencialista de governo, cuja cultura, difícil de remover, tende a colocar e a centralizar na pessoa do Presidente um poder que, em verdade, não possui.

Não é exagerado dizer que os presidentes eleitos representam, no imaginário da população, uma figura paternal ou maternal, com poder quase mágico.

Passa pelo modelo de eleição proporcional dos deputados, que dificulta as boas escolhas, gerando inegável e ao mesmo tempo perigoso desinteresse por parte da população, sobretudo pelas questões que seguem:

a) Um candidato a deputado pode receber votos de qualquer eleitor do seu estado, afastando-o dos seus eleitores;

b) Favorece a eleição de candidatos ligados a corporações, instituições ou de celebridades dos mais variados seguimentos, já que o elevado número de votos que se faz necessário para eleger um deputado beneficia tais perfis, em um ambiente de extrema pulverização de candidaturas;

b) Torna a campanha excessivamente cara, beneficiando aqueles que detêm poder econômico e os rostos mais visíveis, candidatos à reeleição, diminuindo, assim, a igualdade de chances;

c) Pelo fenômeno dos puxadores de votos, ao se votar em um, se elege outro por “tabela”, configurando um modelo em que o eleitor, principal ator do processo, não tem controle de quem está elegendo com seu voto;

d) Apresenta ao eleitor centenas de opções para o mesmo cargo, tornando impossível conhecer os perfis e as propostas de cada candidato. Isto faz com que o eleitor se sinta confuso e perdido, no momento de escolher.

E culmina no fato de que a capacidade funcional dos governos eleitos depende das possibilidades de aprovarem seus projetos perante o Poder Legislativo – a chamada governabilidade, que é costurada por meio de coalizões e ajustes políticos diversos.

Apesar disto, a lógica das eleições não é conduzida pela obtenção da governabilidade, mas por um cenário hiperpartidário, que beira o caos e provoca o desinteresse da população pelos candidatos ao Congresso Nacional.

Se poderia ainda acrescentar a incompreensível figura do suplente de Senador, eleita na prática sem votos, já que não se revela de forma transparente nas campanhas e, ao substituir o titular, passa a desempenhar a representação em sua plenitude.

O que dizer frente à intolerável duração de oito anos para o mandato dos senadores?

Ainda que a população eleja um senador visando a facilitar a governabilidade do presidente eleito, pode ocorrer a troca de governo com a inevitável manutenção de quem foi eleito (ou suplente) no pleito anterior.

Apesar de todos estes fatores, o povo, em geral, tende a acreditar que os presidentes são responsáveis por todos os acertos ou erros que o país apresenta.

Desconhece-se, assim, que o sistema político brasileiro deposita no Congresso Nacional enorme responsabilidade pelas ações e omissões de natureza política.

Isso não significa que a escolha de um bom candidato à Presidência seja algo irrelevante.

Pelo contrário. Bons presidentes colaboram, em elevada medida, para a obtenção de bons resultados, assim como os maus atrapalham.

O poder de agenda dos governos eleitos influencia a pauta dos debates legislativos, auxiliando na aprovação das medidas necessárias à boa condução do país.

Mas, repita-se: quem decide, ao fim e ao cabo, são os membros do Congresso Nacional, aqueles que geralmente desconhecemos, cuja trajetória nos é estranha e a atuação é ignorada.

Enquanto insistirmos em tratar a eleição dos membros ao Legislativo como uma obrigação de caráter secundário, meramente formal e desinteressante, dificilmente colheremos bons frutos na democracia.

Somente por meio de reformas de natureza institucional e política, o quadro vigente poderá ser modificado.

Um sistema eleitoral distrital para a eleição dos deputados federais e estaduais seria um ótimo começo. A redução do mandato dos senadores para quatro anos, também é uma medida necessária.

A opção por um sistema de governo parlamentarista, que separe as chefias de Estado, de governo e da administração, com foco na governabilidade e na responsabilidade política do chefe de governo, não pode sair do radar das reformas prioritárias.

Enquanto as reformas não vêm, todos nós devemos atuar como agentes de transformação cívica.

Esta transformação começa pela formação de um juízo seguro, quanto às nossas escolhas eleitorais, em particular no ângulo que mais descuidamos: o Congresso Nacional.

__________

1 HOFMEISTER, Wilhelm. Os Partidos Políticos e a Democracia. Seu papel, desempenho e organização em uma perspectiva global. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2022, p. 25. Disponível aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque